Lelê Teles: O fraterno carroceiro, o pobre do motorista e os ladrões de coca-cola

Tempo de leitura: 3 min

Ladrões de coca-cola

Por Lelê Teles*

voltava do trabalho caminhando, como sempre faço.

dedico-me ao exercício peripatético desde a tenra juventude.

caminhava, então, margeando a estrada de ferro abandonada que rasga a cidade de aracaju quando um carroceiro freou sua diligência.

do alto, o cocheiro gritou: vou até o final do trilho, o senhor não quer uma carona?

não queria, mas não seria deselegante com este fraterno desconhecido.

subi, tal qual um fidalgo do século XIX.

troc, troc, troc…

enquanto o cavalo trotava eu pensava: tantos carros passaram por mim antes deste miserável.

uns, pilotados por amigos, chegavam mesmo a buzinar; parar, nunca.

tá osso esse natal não é meu senhor?, perguntou-me o cocheiro, puxando conversa.

era véspera da festa do papai noel e em datas festivas costuma-se substituir qualquer indagação climatológica pelo assunto do dia.

pra mim, respondi meio fleumático, o que não pode faltar no dia de hoje é isso que o senhor me deu agora: amor e solidariedade.

ele sorriu com os poucos dentes que lhe restavam, concordando.

o cavalo eriçou a crina, ergueu o rabo e peidou.

a carroça é o único veículo cujo escapamento está virado para a cara do condutor.

eu trabalhei nesse prédio, falou-me o homem – insensível aos flátulos do animal rocinante – apontando um lindo edifício residencial.

conheço o homem que o construiu, é meu amigo, o engenheiro Alb…

o cocheiro não me deixou concluir. ah, foi preciso muito homem pra construir esse prédio, meu senhor. um homem só não faz isso, não.

eu mesmo recolhia o entulho e jogava na boca do mangue, meu filho trabalhou de ajudante de pedreiro e o meu genro assentou o piso com a turma dele.

era gente pra burro: soldador, eletricista, mestre de obra…

com mil diabos, eu pensei, esse sujeito faz parte da história desse edifício, mas na placa só constava o nome do meu amigo engenheiro.

o carroceiro emendou ainda: olhe, quando falam das pirâmides, sempre dizem o nome de um faraó e atribuem a ele a construção.

o diabo é que o tal faraó nunca deve ter dado uma martelada num prego.

ao dizer isso ele gargalhou, quixotescamente, seguido pelo relincho do cavalo, que parecia entender tudo o que o colega dizia.

eu ouvi em silêncio e fiquei pensando: você lê a bíblia e não sabe quem foi a costureira diligente que cingiu a túnica do cristo e que, diligentemente, remendava-lhe os furos provocados pelo roçar na relva seca e espinhosa do caminho.

não sabemos quem costurava suas sandálias de couro de burro.

tampouco sabemos o nome do cabra que construiu a cruz.

menos ainda quem foi o camponês que plantou e regou a semente cuja árvore, ao invés de fruto, deu a madeira ao carpinteiro insensível construtor de cruzes.

em meio a estes pensamentos percebo, do outro lado da pista, na mão contrária à nossa, uma aglomeração de carros.

pessoas descem dos carros, das motos, dos ônibus.

ao chegar mais perto, percebemos, tombado, um caminhão carregado de garrafas pets de coca-cola e a multidão a saqueá-lo.

um motorista, de camisa polo com a estampa de um jogador de golf, deixa no carro a esposa e os três filhos – que provavelmente voltavam da escola – e vai furtar os refrigerantes.

grande exemplo!

belo presente de natal para família, garrafas furtadas.

como formigas sobre o açucareiro, o povo avançava e enchia mochilas, sacolas, porta-malas.

o motorista parou o ônibus e o trocador correu para furtar pra ele e pro colega; os passageiros, oportunistas, avançaram sobre a mercadoria.

motoboys, carros de transporte escolar e outros com logos de firmas, uma pick up toro, uma hilux…
menos o carroceiro.

o carroceiro, assistindo toda aquela barbárie, me disse: veja só, meu senhor, quem destes aí não teria dois reais para comprar uma garrafa destas?

agora imagine o senhor, continuou ele, que o pobre do motorista, além de pagar pelo prejuízo do caminhão, ainda terá que se responsabilizar pela mercadoria.

e os jornais, emendou o cavalo relinchando, amanhã falarão do saque, das garrafas e até do fabricante. e nós vamos ficar sem saber o nome do infeliz que dirigia aquela geringonça e o tamanho do prejuízo que ele terá que arcar.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista.

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Comentários

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Zé Maria

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Não nos diga que não podemos cobrar um Imposto
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ROBERT REICH
https://twitter.com/RBReich/status/1607852577395298304

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