O que o Malafaia não diz sobre a “guerra” aos decapitadores

Tempo de leitura: 9 min

isis

Terror islâmico a serviço dos cristãos do Ocidente

Da Redação

De repente, por conta de um vídeo do pastor Silas Malafaia, cristãos se mobilizam para denunciar o terrorismo muçulmano, sem a menor ideia do que de fato se passa no Oriente Médio. Denunciam Dilma Rousseff como refém de terroristas que cortam cabeças. Repetem bobagens descontextualizadas, superficiais, ahistóricas. Pregam a cruzada moralista que já resultou na matança de milhões em nome da religião. É a eles que o Viomundo dedica a tradução deste artigo, com a esperança de que aprendam a ler. Para eles, um pequeno glossário. “Ocidente” basicamente significa Estados Unidos + Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, a aliança militar dirigida desde Washington. ISIS é o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, o grupo sunita que atua hoje dentro da Síria e do Iraque e que nos últimos três anos recebeu grande apoio ocidental:

Desestabilizando a Síria

Esta guerra não tem como alvo o ISIS, mas Assad

por DAN GLAZEBROOK, no Counterpunch

Vendo o debate no Parlamento britânico na última quinta-feira, sobre se o Reino Unido deveria, uma vez mais, lançar ataques contra o povo sofrido do Iraque, foi impressionante notar quanto se admitiu o fracasso da política britânica no Oriente Médio.

Que o ISIS foi encorajado, ou mesmo criado, pela insistência do Ocidente em apoiar a insurgência armada na Síria nos últimos três anos — jogando dinheiro, armas e treinamento (inclusive em relações públicas) nas mãos de guerrilheiros de todos os tipos — tudo isso foi admitido por parlamentares de todos os partidos, assim como a realidade de que foi precisamente o estado desfuncional que resultou da ocupação do Iraque que permitiu ao ISIS criar raízes no país. Mas os mesmos parlamentares, quase todos, em seguida passaram a explicar que votariam (“relutantemente”, “com o coração pesado”, etc etc etc) em favor da moção do governo [por bombardeios aéreos contra o ISIS]. O argumento implícito foi de que, sim, temos cometido erros nos últimos três anos (ou nos últimos onze); mas agora temos a chance de acertar; na verdade, é precisamente porque ajudamos a criar a “besta” que agora devemos ajudar a matá-la.

Praticamente todos os ataques britânicos no Oriente Médio foram justificados da mesma maneira.

O bombardeio da Líbia foi supostamente o reconhecimento de que o tratamento britânico dado ao Iraque — ocupação com forças terrestres — foi contraproducente e provocou ressentimento; derrubar Kadafi usando forças líbias — e do Qatar — apoiadas por cobertura aérea do Ocidente, assim sendo, foi apresentado como “superação” dos “erros” cometidos na invasão do Iraque de 2003.

Mas aquela invasão havia sido apresentada, a seu tempo, como reversão de “erros” prévios, da política britânica de apoiar os “ditadores” da região (isso foi usado por Tony Blair sempre que críticos diziam que o Reino Unido tinha dado apoio total aos supostos crimes cometidos pelo Iraque, os crimes que Blair citava para justificar sua invasão).

O suposto apoio do Reino Unido a Saddam Hussein durante os anos 80 (se encorajar uma guerra auto-destrutiva contra o Irã pode ser classificado de apoio) foi em si, sem dúvida, apresentado na época como um avanço sobre a política britânica dos anos 50, de manter o Iraque sob um rei escolhido pelo ministério das Relações Exteriores britânico.

Cada guinada da política externa do Reino Unido, assim, vem acompanhada da admissão de que temos feito a coisa errada até agora; mas agora estamos fazendo a coisa certa; que a interferência de antes era um erro, mas que a inteferência de agora vai acertar as coisas; que a violência de antes foi um pecado, mas que esta violência vai expiá-lo.

O fato é que não vai.

E não vai porque, apesar das aparências, não houve nenhuma mudança. Na verdade, nunca houve genuína autocrítica por parte dos que decidem a política externa do Reino Unido; a autocrítica só existe para justificar a próxima etapa da sangria; ela nunca é apresentada, como deveria, como nota de rodapé trágica de um desastre, mas como preâmbulo de um novo capítulo sangrento. A política de fato nunca mudou. Sempre teve o mesmo objetivo — acabar com qualquer tentativa de desenvolvimento independente do Iraque.

Quando o rei do Iraque apoiado pelo Reino Unido não conseguia mais segurar as forças que pediam a modernização do país, os britânicos tentaram reduzir a influência dos comunistas apoiando um golpe da direita do Partido Baath [o de Saddam Hussein]. Quando o próprio Partido Baath promoveu uma bem sucedida modernização do país nos anos 70, o Reino Unido fez tudo o que pode para encorajar a guerra contra o Irã, garantindo que a riqueza dos dois países fosse desperdiçada, com atraso de décadas para ambos.

Três anos depois do fim da guerra, o Reino Unido se envolveu em ataques aéreos que devastaram a infraestrutura do Iraque, seguidos de sanções contra o regime de Saddam num nível que o mundo nunca tinha visto, o que resultou na morte de 500 mil crianças e causou a renúncia sucessiva de três integrantes de alto escalão das Nações Unidas, em protesto.

Quando a justificativa ‘legal’ para as sanções estava prestes a expirar — com o Iraque quase totalmente desarmado — veio a invasão de 2003, que acabou impondo uma Constituição que institucionalizou o sectarismo e criou um sistema político no qual a ‘democracia’ foi reduzida a uma competição para maximizar os favores de um setor às custas de todos os demais. O resultado é que a minoria sunita se tornou inimiga implacável do governo iraquiano, levando ao desastre que agora assistimos.

Em todos os casos, a cada intervenção externa, o resultado tem sido surpreendentemente consistente — a capacidade do Iraque de realizar seu enorme potencial foi frustrada. A suposta conversão dos que fazem a política externa do Reino Unido é, se inspecionada de perto, mera guinada tática. Nossos parlamentares deveriam admitir tal continuidade, ao invés de enganar os eleitores — e a si próprios — de que agora o leopardo mudou suas manchas.

E assim chegamos aos dias de hoje. Esta guerra — apresentada como uma nova guerra contra um novo inimigo, o ISIS — na verdade é a continuação da guerra que já dura três anos contra a Síria — em si a continuação da guerra secular contra o desenvolvimento e a independência dos estados do norte da África e da Ásia ocidental, na verdade uma guerra contra todo o Sul do mundo.

O fato de que tantos parlamentares presentes ao debate deram apoio a ataques aéreos e o fizeram admitindo que eles vão fracassar, fornece uma pista de que esta guerra não é o que dizem ser. Na verdade, o governo do Reino Unido é incapaz e não tem a intenção de destruir o ISIS.

Incapaz porque, como todos os analistas militares sérios concordam, bombardeios aéreos não podem destruir uma organização como o ISIS. Como o jornalista Patrick Cockburn escreveu pouco antes do debate no Parlamento britânico, “ainda que os bombardeios causem danos ao ISIS na Síria e no Iraque, não serão suficientes para derrotar o grupo e podem nem mesmo contê-lo”. O contínuo progresso do ISIS em direção a Bagdá nesta semana serviu particularmente para comprovar este ponto.  Mas a relutância dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido em coordenar seus esforços com os de quem luta contra o ISIS e seus aliados faz tempo — ou seja, a Síria, o Irã e o Hezbollah — é que realmente demonstra a falta de sinceridade do Ocidente.

Por que não perseguir uma estratégia eficaz?

Porque a derrota do ISIS não é, na verdade, o objetivo.

O ISIS e seus amigos favoreceram a política externa do Reino Unido nos três últimos anos, agindo como a vanguarda da guerra de atrito encomendada pelos anglo-americanos contra a Síria. O uso de milícias sectárias como ferramenta da política externa faz parte do pedigree britânico.

O Grupo de Luta Islâmico líbio (afiliado da Al Qaeda na Líbia) foi baseado em Londres durante décadas, até que foi jogado contra o Estado líbio em março de 2011, seus serviços prestados aos chefes imperiais incluindo uma tentativa de assassinato de Kadafi em 1996, organizada pelo serviço secreto britânico, o MI6.

A Irmandade Muçulmana foi cultivada pela inteligência britânica como forma de solapar o socialismo pan-arábico de Nasser no Egito, nos anos 60, mas já tinha sido usada antes contra movimentos progressistas liberais, como o Wafd.

Mais infame ainda foi o uso dos ‘mujahadeen’  — os guerreiros da liberdade — no Afeganistão, dos quais nasceram tanto a Al Qaeda quanto o Tabilã. Receberam apoio total do Reino Unido na guerra contra a União Soviética e forças progressistas do Afeganistão.

Isso tudo sem mencionar a integração de esquadrões da morte ao exército britânico na guerra contra os republicanos da Irlanda nos anos 70 e 80 — que as autoridades britânicas passaram anos dizendo tratar-se de invenção de paranóicos fantasiosos, até que foram expostos numa investigação do próprio governo.

Não há razão para acreditar que o Reino Unido desistiu de sua estratégia de usar esquadrões da morte como instrumento de sua política externa; na verdade, numa época de declínio econômico relativo dos antigos poderes coloniais do mundo, provavelmente os esquadrões ganharão mais importância. Com os cortes de gastos públicos provocando declínio equivalente na capacidade militar, a estratégia de explorar gangues sectárias contra poderes independentes não só deve continuar, mas crescer.

Assim sendo, o que a guerra contra o ISIS pretende alcançar?

Em primeiro lugar, vai afetar o próprio ISIS. Como Cockburn mencionou em seu artigo, provavelmente vai forçar o ISIS a “reverter para guerra de guerrilha, o que tem sido sua tática desde que os Estados Unidos começaram os bombardeios, em 8 de agosto”.

Cockburn notou que “nos últimos dias os guerrilheiros do ISIS mataram 40 soldados iraquianos com bombardeios suicidas e capturaram outros 68, assim como atacaram uma instalação do Exército a oeste de Bagdá”. Em outras palavras, os ataques aéreos vão garantir que o ISIS continuará seu papel de gangue do terror, em vez de evoluir para algum tipo de semi-governo que administre território.

Isso é bom para o governo britânico, que quer ver o ISIS focado em desestabilização, em vez de na tentativa de ‘criação de um Estado’, por mais frágil que seja. Ataques aéreos podem ser bem sucedidos em transformar o IS — uma formação proto-estatal — de volta em ISIS, um esquadrão da morte sectário, o papel originalmente atribuído a ele pelos planejadores imperiais.

No entanto, há uma diferença crucial entre o ISIS pré-abril de 2011 e o ISIS agora sob ataque aéreo do Ocidente. Desta vez, ele vai se beneficar da credibilidade que até agora lhe era negada — a credibilidade de quem pode se apresentar como força anti-Ocidente, antiimperialista.

Porque, nos últimos três anos, é obvio que o ISIS e o Ocidente estavam do mesmo lado, cantando a música de despedida de Assad. A nova credibilidade vai dar ao ISIS mais recrutas, mais apoio, mais financiamento. Um incentivo ainda maior virá da imagem de força quando o ISIS demonstrar que sobreviveu aos ataques aéreos. Nada é tão bem sucedido quanto o sucesso, diz o ditado, e a imagem de perseverança contra ‘todas as apostas’ dará ao ISIS um apelo que antes ele não conseguia ter.

E quanto à ‘guerra contra Assad’? Longe de ser encoberta pela ‘guerra contra o ISIS’, ela é a fundação desta. Impedidos de bombardear a Síria em agosto de 2013 pela reação russa, chinesa e iraniana — e nervosismo parlamentar tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido — o Ocidente agora pode bombardear a Síria.

Inteligentemente, David Cameron desenhou a moção apresentada ao Parlamento como autorização para atacar  no Iraque — mantendo a Síria fora do debate — mas insistiu que as operações poderiam ser expandidas para a Síria sem aprovação parlamentar, depois que os bombardeios começassem.

Agora somos informados de que o Ocidente poderá ser ‘forçado’ a intervir na Síria porque Assad fracassou em derrotar o ISIS, mas a verdade é precisamente o oposto — o Ocidente está na Síria porque o ISIS e seus amigos, recipientes de total apoio diplomático, financeiro e militar do Ocidente nos últimos três anos, fracassaram em derrotar Assad.

Os Estados Unidos — ao lado do Reino Unido — agora atuarão na Síria de forma a ter maior controle sobre a guerra que, na maior parte deste ano, tem sido vitoriosa para as forças estatais de Assad. Por isso, tem se falado em uma invasão da Síria pela Turquia e no treinamento de mais insurgentes na Arábia Saudita (mais 5000, aparentemente) — é a estufa onde se reproduz o mesmo sectarianismo violento do ISIS.

O objetivo é de que, se alguém conquistar território do ISIS na Síria, não deve ser a força secular do governo (a única capaz de governar o país, nas palavras do general norte-americano Martin Dempsey), mas a força da OTAN ou de aliados parecidos com o ISIS.

Por que Cameron diz que esta guerra vai durar anos? Porque sabe que vai escalar. Vai escalar porque o ISIS é apenas o alvo preliminar, o pretexto. O alvo final, como sempre foi, é o Estado sírio. É revelador, quanto a isso, olhar para o padrão do bombardeio dos Estados Unidos na Síria até agora. Segundo noticiou a Reuters na semana passada, os ataques aéreos “parecem ter a intenção de impedir que o Estado Islâmico atravesse as fronteiras para o Iraque, onde também controla território”. Em outras palavras, o objetivo não é destruir o ISIS na Síria — mas, tanto quanto possível, manter o ISIS na Síria.

Simon Jenkins, escrevendo no diário britânico Guardian, está entre os que argumentam que os ataques aéreos não vão destruir o ISIS. Não são, portanto, um ato de política externa, mas apenas um espetáculo de machismo. Discordo. Política externa é política externa, não um jogo; só parece ser algo mal pensado para quem não vê seus reais objetivos — ou ingenuamente acredita que sejam os que os governos dizem que são.

Noam Chomsky argumenta que os estados devem ser cobrados pelas consequências previsíveis de seus atos. Eu iria além. Pelo menos no caso de estado poderosos e prósperos, com centenas de anos em experiência de agressão militar, devemos considerar que tais consequências são parte de seus objetivos estratégicos.

Assim, se as ações do Reino Unido não vão destruir o ISIS, mas mantê-lo focado em desestabilizar o Iraque a Síria, devemos assumir que isso é parte do objetivo britânico.

Se não conseguirem degradar e desmoralizar o ISIS, mas dar a ele prestígio e credibilidade, devemos assumir que este é um dos objetivos britânicos.

E se o ISIS for pretexto para que o Ocidente assuma maior controle da guerra contra a Síria, abrindo caminho para ocupação pela Turquia, para bombardeios contra a infraestrutura síria, para coordenação de grupos insurgentes cuja ideologia e métodos são papel carbono dos do ISIS, novamente, não deveríamos considerar que são meras consequências oportunistas da guerra contra o ISIS — mas de objetivos em si do Ocidente.

Dan Glazebrook é jornalista político e autor de Divide and Ruin: The West’s Imperial Strategy in an Age of Crisis [Dividir e Arruinar: A estratégia imperial do Ocidente na idade da crise]

Leia também:

Adriano Diogo: Pena de morte para jovens negros e pobres já está em vigor


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

O Mar da Silva

Quem são os maiores aliados do ‘ocidente’ aqui no Brasil? E quais os resultados dessa aliança para o nosso desenvolvimento?

É preciso a união de ignorância e viralatismo para pensar que o ‘ocidente’ vai fazer qualquer coisa em nome da democracia no mundo usando a guerra como pretexto.

Alemao

O ódio aos EUA é tão cego que nem se dão conta que o governo que aí está segue a cartilha progressista que mira o debacle dos EUA.

    Mário SF Alves

    Só o debacle?

    Otimiiiista…..

    Não, caro alemão, a coisa há de vir, sim, e não será um simples debacle, não. Será uma revolução social. Tá em dúvida? Pergunte ao Michael Moore.

Marat

Os constantes massacres perpetrados pelos EEUU e seus lacaios europeus, que mataram centenas de milhares de iraquianos, líbios e árabes em geral, não sensibilizaram Malafaia?

Marat

Silas Malafaia é um fanático e fundamentalista. No fundo, no fundo, é mais um moneyteísta!

Elton Ribeiro

Sou cristão, mas reconheço que muitos que se dizem cristãos fazem com superficialidade analises sobre o conflito no oriente médio. Não entendem que a “besta” foi criada por intervenção americana no oriente médio com intuito de agradar parceiros (Sunitas) entre outros males. E que agora busca apoio moral (com peso na consciência) para destruir o estado islâmico. Parceiros sunitas que fomentaram o estado islâmico e que agora reconhecem que eles passaram da conta. Enfim, saiba que há cristãos conscientes. Cristãos e muçulmanos árabes são vitimas da mesma fonte.

Urbano

Desconhecimento, maledicência, ódio e burrice são o forte dessa gente, que forma um batalhão enorme de zumbis a seguir a oposição ao Brasil, numa fidelidade canina.

Deixe seu comentário

Leia também