Flavio Wittlin: Betinho, um imprescindível que o tempo não vai levar

Tempo de leitura: 2 min
O busto, ladeado pela irmã e o “artivista” Julio Andrade, que faz o Betinho na série do Globoplay “No Fio da Navalha”. Foto: Flavio Wittlin

Flagrante da inauguração do busto. Foto: Flavio Wittlin

Betinho, um imprescindível que o tempo não vai levar

Por Flavio Wittlin*, especial para o Viomundo

Um dia marcante na paisagem carioca e do Brasil.

Em 21 de março, na enseada de Botafogo, no Rio de Janeiro, foi instalado o magnífico busto de Herbert de Souza, o Betinho, um lutador inigualável do povo brasileiro.

Presentes autoridades – o prefeito do Rio, Eduardo Paes, e deputados – representantes de movimentos sociais, ONGs, “artivistas” (como autodefiniu-se Julio Andrade, que encarna o Betinho na série no Fio da Navalha, no Globoplay), além dos Comitês da Ação da Cidadania.

Entrevistado por este repórter improvisado, Daniel de Souza, filho do Betinho, que hoje preside o Conselho  da Ação da Cidadania, afirmou que a inauguração do busto transcendia a homenagem ao pai ao fazer “referência ao valor da solidariedade”.

Daniel de Souza, presidente do Conselho da Ação da Cidadania. Foto: Flavio Wittlin

Com relação ao flagelo da fome, Daniel responsabilizou a dupla Temer-Bolsonaro pelo “desmonte das políticas públicas”, indicando que o “estrago foi muito grande, tendo que recuperar agora anos do programa Bolsa Família, referência no mundo de combate à fome”.

João Paulo Garcia, diretor operacional do Afro Reggae, disse faltar “palavras para mencionar a grandeza do Betinho”.

Ele declarou que o Afro Reggae “no combate à fome, tem um parceiro maior que é a Ação da Cidadania”.

Marcando presença no festivo tributo ao Betinho estava a “artivista” e ex-deputada federal, Bete Mendes.

Bete Mendes, atriz e ativista social. Foto: Flavio Wittlin

Ela denunciou que a fome “é gravíssimo problema”, relembrando o lema por ele perpetuado: “Quem tem fome tem pressa”.

O emocionante ato contou também com a participação da incansável ativista Glorinha, irmã de Betinho, Henfil e Chico, expoentes indelevelmente postos no altar da história.

Glorinha (com a camiseta estampando a imagem do irmão Betinho) ao lado de outras companheiras. Foto: Flavio Wittlin

*Flavio Wittlin é médico, mestre em saúde pública e educomunicador em saúde.

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Comentários

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Zé Maria

.

Para Definir o Pólo Ideológico:

O Betinho era de Esquerda.

Por isso, foi Perseguido pela
Ditadura Militar e teve de se
exilar na Década de 1970, para
não ser Preso e Torturado.
.
.
Do Brasil Solidário ao Brasil Solitário

(Artigo Escrito quando da Passagem
de Um Ano da Morte de Herbert de Souza,
o Betinho, Criador da Campanha Nacional
Contra a Fome.)*

São Paulo, Domingo, 9 de Agosto de 1998

Por EMIR SADER*

A vida de Herbert de Souza, o Betinho, transcorreu durante os anos
mais importantes da vida brasileira, dos quais ele foi protagonista,
analista, crítico e de alguma forma vítima.

Falar dessa trajetória é tomar parte no acerto de contas de uma geração
com o seu passado.

Betinho participou da geração que aderiu à militância política ainda nos
anos 50, militou ativamente ao longo da década seguinte no país, saiu
para o exílio – onde viveu nos anos 70 – e retornou ao Brasil com a anistia
(em 1979), para participar do processo de transição do ditadura militar
para a democracia, vivendo dentro desta suas contradições, incertezas,
esperanças e limitações.

Pode-se distinguir três perfis políticos diferenciados do Betinho
ao longo dessa trajetória:
o de militante e dirigente da Ação Popular;
o de participante – ainda que brevemente – na experiência
de governo de João Goulart, já próximo do golpe militar de 1964; e
o de dirigente de organizações não-governamentais, que marcou
mais profundamente sua projeção política na sociedade brasileira.

A geração do Betinho foi a primeira sobre a qual o Partido Comunista
perdeu o monopólio da luta anticapitalista no Brasil.

Até ali o PCB ocupava o centro da luta anticapitalista,
tendo à sua direita o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro )
– partido popular do getulismo – e à sua esquerda distintas
formas de crítica ao stalinismo -desde grupos trotskistas
organizados até a intelectualidade marxista libertária.

Os primeiros anos da década de 60 viram surgir um complemento
desse quadro, com a fundação da primeira cisão chinesa no mundo,
a do Partido Comunista do Brasil (PC do B), tendo ainda o PCB
como referência, apesar da sua crítica a esse partido.

A maior novidade na esquerda daqueles anos, no entanto, foi o surgimento
de novas organizações, dentre elas as Ligas Camponesas, movimento social
de novo tipo no campo do Nordeste, assim como o grupo marxista
Política Operária (Polop) e a Ação Popular, originária da Juventude
Estudantil Católica (JEC) e da Juventude Universitária Católica (JUC),
da qual Betinho participou desde a fundação como dirigente.

As mobilizações populares durante o governo de Jango (1961-64)
e aquelas de resistência à ditadura militar (pós-64) viram, pela
primeira vez no Brasil, a generalização do fenômeno da militância
política revolucionária em amplas camadas da população.

Betinho foi um representante significativo daquela geração que,
desde sua primeira juventude, aderiu à idéia mesma de militância
política, naquele momento intrinsecamente associada a duas outras
características:
militância revolucionária e militância partidária (ver, a propósito,
“No Fio da Navalha”, de Betinho, Ed. Revan).
Era uma adesão voluntária, generosa, a entrega do que se tinha de melhor
– as melhores energias intelectuais e práticas – à luta contra a exploração,
a dominação e a alienação.

Não preocupava aquela geração o destino individual, porque a certeza
da vitória fazia com que outros – se não nós mesmos – gozassem os frutos
de uma luta que buscava dar acesso para a grande maioria àquilo que
nós mesmos em parte dispúnhamos.

Não se buscavam vantagens pessoais; ao contrário, se sacrificavam bens
materiais, conforto, vínculos familiares e futuro profissional pela luta política
emancipadora.

Foi o momento mais generoso de parte significativa da geração que hoje
representa um segmento da elite brasileira e olha de diferentes maneiras
para o seu passado.

Uma parte deles foi perfeitamente enfocada num artigo de Francisco
de Oliveira, em seu texto “Aves de Arribação”, assim que o fim da ditadura
abriu caminho para a ascensão individual dos que até ali estavam nas filas
da oposição.

Nesse artigo se constatava a facilidade com que parte daquela intelectualidade se dessolidarizava com os destinos do povo brasileiro
e buscava um lugar nas elites dominantes em processo de reconstituição
– em postos estatais ou em grandes empresas privadas.

Se considerarmos o caráter conservador que assumiu a transição política
originada na ditadura militar, podemos ter idéia da reinserção social desses
elementos da intelectualidade brasileira.

Eles constituem um dos padrões de comportamento originários da geração
dos anos 60:
os que tomam sua militância como um “idealismo de juventude”, um período
que consideram com um sorriso piedoso nos lábios.

Alguns nomes são óbvios, foram até companheiros de Betinho em sua
trajetória militante.

Eles são apenas a ponta do iceberg de uma fração que sobreviveu
à militância, se reciclou – de cabeça e de identificação social – e
hoje constitui uma franja de quadros inseridos na elite executiva
e política dirigente do país.

Seu passado não lhes pesa, porque romperam com ele, teórica
e praticamente, mesmo se, com essa ruptura, mudaram radicalmente
sua relação com as classes populares.

Sentem-se, da mesma forma que antes, na direção do que acreditam
ser o norte do progresso, com um economicismo reciclado, sempre
rumo à “modernidade”, só que desta vez a serviço do grande capital
financeiro.

Outros fizeram do exercício memorialístico seu exorcismo.
Um olhar dos anos 70, com todo seu narcisismo, projetado sobre o passado,
construiu com essa ótica retrospectiva uma visão que tirou todo conteúdo
político da década de 60.

Teria sido apenas uma “aventura de liberdade individual”, uma “incessante
descoberta de outras dimensões da vida”.

Betinho teve uma trajetória diferente.

Militou na clandestinidade depois de 1964.

No exílio, compartilhou o clima de derrota e de balanço, de solidariedade
e de reiteração da disposição de dar continuidade à luta contra as injustiças,
ainda que por outros meios.

Depois da passagem pelo processo de fundação daquele que posteriormente seria o PDT [de Leonel Brizola], logo Betinho
passou a personificar outro enfoque da luta social e política.

É como se sua visão dos anos 60 tivesse sido outra:
além de seu caráter indissociavelmente político, havia a ampliação
do sentido da luta política.

Tratava-se de uma redefinição da mobilização social e ética, com vista
à socialização da política e do poder, para a realização de transformações
não menos radicais do que aquelas pregadas nos anos 60.

Se o tema inicial de reinserção do Betinho no cenário político brasileiro
foi a luta contra a fome, e com ela a defesa da solidariedade,
logo se acrescentaram os temas da terra e do emprego.

Resgatava-se uma parte substancial do que o Brasil tinha
como dívida histórica acumulada com a grande maioria
da sua população.

O enterro do Betinho, há exatamente um ano, se constituiu
numa comoção nacional.

O presidente da República não se fez presente, numa espécie
de represália pelas críticas de Betinho ao projeto Comunidade
Solidária e à política econômica do governo.

Betinho deixava de incomodar os responsáveis pelas políticas
econômicas – e pela produção e reprodução em massa da miséria
e do abandono.

Deixava de incomodar aqueles que pretendem, com políticas focalizadas
e emergenciais, diminuir a expropriação de direitos da política econômica –
alma (financeira) de um governo sem alma social -, como se fosse possível
atacar o imenso estoque de pobreza acumulada e reproduzida no país pelas
políticas das elites ao longo das décadas.

Por que o Betinho incomoda tanto?
Por que ele se transformou num personagem central do Brasil
neste final de século?
O que, em sua trajetória, permitiu que ele ocupasse esse lugar?
O que significou e significa?

A cordialidade brasileira já foi analisada e criticada em prosa e verso.

O próprio Chico Buarque – que passou de “maior gênio da música popular
brasileira” a autor “repetitivo”, conforme passou de apoiador acrítico
de FHC – já falou do Brasil como “o país da cordialidade perdida”.

Um país que, apenas saído da repressão, teve seus problemas sociais
agudizados, seus sentimentos egoístas aprofundados, aumentando
a fragmentação social que tende a fazer da vida de cada um a luta
individualizada pela sobrevivência.

Como foi possível isso, ao mesmo tempo em que se constituía um consenso
nacional jamais obtido antes em torno das eleições diretas e do déficit social
como os problemas centrais do país?

A passagem da década de 80 para a de 90 representou simultaneamente
uma virada no consenso nacional, tal como ele foi fabricado no país.

Do déficit social passou-se ao déficit fiscal, como aquele que seria o nó
a ser cortado para resolver os problemas pendentes do Brasil.

Foi uma operação ideológica iniciada ainda no governo Sarney e consolidada
no governo FHC, passando pelo de Fernando Collor.

Sarney inaugurou a criminalização dos direitos, ao afirmar que
a Constituição de 1988 – chamada por Ulysses Guimarães de
“Constituição Cidadã”- garantia ‘direitos excessivos’, tornando
o Estado brasileiro ‘ingovernável’.

Ao mesmo tempo, sua política econômica se autoproclamou de
“feijão-com-arroz”, isto é, uma forma pouco inspirada de tentar
enraizar no Brasil o “laissez faire” do neoliberalismo.

Fernando Collor encarnou esse projeto da forma mais acabada até então,
porém seu fracasso atrasou a concretização do novo consenso, retomado
por FHC ainda em 1994, quando ministro da Economia.

O diagnóstico apontava o déficit público como a fonte de todos os males
do país, que seriam debelados com a desregulamentação geral e irrestrita
da economia que se seguiu.

Essa política representou o mais radical processo de destituição de direitos
da história brasileira, jogando a maioria da população na economia informal,
excluindo-a dos direitos elementares e assestando um golpe profundo nos
mecanismos de solidariedade social.

Ao mesmo tempo, o diagnóstico do governo criminalizava as reivindicações
populares, qualificadas de “privilégios”, enquanto privilegiava as
necessidades do capital financeiro para fechar as contas deficitárias
e manter a moeda estabilizada.

Paralelamente, difundiu-se um discurso que hoje convida a deixar
ao mercado a “alocação de recursos”, a abandonar qualquer veleidade
de transformação do mundo, conforme aos melhores valores humanos,
a conviver com milhões de “inimpregáveis”, a limitar as urgentes
necessidades ao equilíbrio monetário, a deixar-se governar por leis
supostamente inelutáveis, que mal escondem o reinado do capital
especulativo.

Convida-se ao abandono dos sonhos, da utopia, da justiça social,
da solidariedade.

Convida-se ao esquecimento do Betinho, para que o desemprego, a fome,
a exclusão apareçam como um destino, e não como o resultado de políticas
fundadas em interesses minoritários.

Busca-se a consolidação de um tipo de sociedade contra a qual o Betinho
elevou suas forças gigantescas, ao gritar que “quem tem fome – e não tem
emprego, nem terra – tem pressa”.

*Professor de Sociologia e Escritor. Autor de “O Poder, Cadê o Poder?”.

*(O Artigo Acima é uma Versão Resumida de um Texto Maior Apresentado
no Seminário “Brasil: País do Passado?”, na Universidade Livre de Berlim,
em Junho de 1998.)

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs09089807.htm

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