Dennis de Oliveira: Que espaço existe nas instituições brasileiras para se discutir racismo?

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Em outubro de 2021, a histórica ativista Sueli Carneiro deixou o Conselho Editorial da Folha após artigo do colunista Leandro Narloch. Para o professor Dennis de Oliveira, ao considerar legítimo conceder espaço a um articulista que relativiza o racismo e as dores da escravidão, a Folha não considera a existência do racismo e a opressão do escravismo uma questão resolvida. Fotos: Natália Carneiro e reprodução de rede social

Racismo e pluralidade no jornal Folha de S. Paulo

Ao considerar legítimo conceder espaço a um articulista que relativiza o racismo e as dores da escravidão, o jornal não considera a existência do racismo e a opressão do escravismo uma questão resolvida

por Dennis de Oliveira*, no Unidade

A saída de Sueli Carneiro, filósofa e ativista negra, do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo no dia 7 de outubro de [2021] repercutiu nas redes sociais. Sueli Carneiro passara a integrar o colegiado, que foi totalmente remodelado com o objetivo, segundo o jornal, de reforçar a diversidade.

No dia 29 de setembro, o colunista Leandro Narloch publicou o artigo Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro.

O texto relativiza as dores da escravidão ao falar da existência de mulheres negras que foram “sinhás”, utilizando a mesma lógica de raciocínio que Narloch adota na obra de sua autoria, Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil: transforma exceções em regras.

Demitido da CNN por homofobia, Narloch foi contratado pela Rádio Jovem Pan e voltou a assinar uma coluna no jornal dos Frias este ano ( já teve uma passagem por lá entre 2016 e 2018).

Houve inúmeras críticas ao artigo de Narloch, algumas delas publicadas na própria Folha de S. Paulo, como a de Thiago Amparo, também membro do Conselho Editorial, em que exige que o jornal se retrate desta publicação.

O ombudsman José Henrique Mariante no dia 2 de outubro também criticou o artigo e apresentou uma reflexão sobre o tema.

A argumentação da direção da redação do jornal, segundo publicado na coluna do ombudsman, é: “O pluralismo é pilar do projeto do jornal, como defendido e explicado no Manual da Redação (…) A melhor resposta para um ponto de vista que repudiamos é a publicação do contraditório na arena pública”.

Mariante questiona os limites dessa pluralidade. E dá como exemplo o fato de que entre os vários médicos que assinaram colunas no jornal para discutir a epidemia do coronavírus nenhum deles apoiava as teses negacionistas disseminadas pelo governo Bolsonaro. Este corte provavelmente ocorreu porque se trata de uma questão resolvida pela ciência. Não há relativismos.

Aplicando o mesmo raciocínio ao caso em questão, depreende-se que, ao considerar legítimo conceder espaço a um articulista que relativiza o racismo e as dores da escravidão, o jornal não considera a existência do racismo e a opressão do escravismo uma questão resolvida. No limite, ela ainda comporta questionamentos.

Grande dilema do jornalismo

O grande dilema do jornalismo hegemônico é se legitimar socialmente como uma instituição autônoma de defesa dos direitos do cidadão e do esclarecimento como mecanismo de fomentar a esfera pública e, ao mesmo tempo, garantir a sua sobrevivência como empresa capitalista submetida a uma situação extremamente desfavorável.

A atividade jornalística perdeu o monopólio da novidade por conta das tecnologias da informação e comunicação.

Diante disso, algumas empresas resolveram abandonar qualquer resquício ainda existente de um “esclarecimento jornalístico”, vendendo a alma ao diabo.

O absurdo chega a tal ponto que um site “jornalístico” chamado The News apresentou três coberturas diferentes do discurso de Bolsonaro na ONU – uma favorável, uma crítica e outra “isenta” levando ao ápice o que Octavio Ianni fala da transfiguração da ideologia em mercadoria.

Outras empresas ainda tentam manter um certo ar de sobriedade como forma de garantir sua legitimidade pública. O mantra da “pluralidade de visões” virou uma marca na Folha de S. Paulo, é o resultado deste dilema entre manter uma “áurea” de instituição do esclarecimento e atuar como empresa capitalista.

Imperativo categórico

O filósofo Immanuel Kant defendia a ideia de que o contrato moral precede o contrato social, isto é, para que o contrato social (base dos arranjos institucionais da democracia) seja efetivo, é necessário que os sujeitos atuem dentro de determinados princípios éticos.

E nesta discussão da ética da filosofia kantiana, o conceito de imperativo categórico é a base. Para Kant, o imperativo categórico coloca como dever do ser humano agir como se espera que todos os demais ajam em benefício de todos. Neste sentido, neste contrato moral não haveria espaço para atitudes que, se praticadas, seriam prejudiciais para a humanidade no seu conjunto.

Quando o jornal Folha de S. Paulo opta por não dar espaço para quem defende teses negacionistas em relação ao coronavírus nas suas páginas é uma ação ética no sentido do imperativo categórico kantiano.

Isso porque, se tais teses forem admitidas como válidas, o conjunto da humanidade será prejudicado (e não apenas os que defendem tais teses). A epidemia sairia totalmente do controle e a tragédia seria muito maior.

Agora, ao admitir a defesa que relativiza a escravidão e o racismo, o jornal não coloca tais atitudes como contrárias ao imperativo categórico. Em outras palavras, a existência de comportamentos racistas ou negacionistas quanto aos horrores da escravidão não seria prejudicial ao conjunto da humanidade.

Esse olhar não é contraditório com o fato de o jornal ter criado uma editoria de diversidade, ter realizado recentemente um programa de trainee para negras e negros ou mesmo ter convidado pessoas negras para integrar o seu Conselho Editorial.

Para o jornal, o racismo no Brasil é um tema passível de ser relativizado. E tal posicionamento é justamente fruto do que falei anteriormente do dilema do jornalismo hegemônico: na busca desenfreada para manter certa legitimidade junto ao seu público, é fato que o jornal atinge leitores de classe A e B que simpatizam com o racismo e até com as ideias de Narloch.

Simpatizam por conta de privilégios: o racismo garante, por exemplo, que tenham à sua disposição mulheres negras para trabalhar em condições precárias como faxineiras e domésticas.

A advertência de Joel Pinheiro da Fonseca, também membro do Conselho Editorial, de que o jornal precisaria “moderar” as críticas a Bolsonaro para “não afastar leitores do veículo que simpatizam com Bolsonaro” sintetiza isso.

O que o episódio da saída de Sueli Carneiro traz como grande questão é: qual o espaço existente nas instituições da sociedade brasileira para se discutir racismo?

* Dennis de Oliveira é jornalista, professor do curso de Jornalismo da Universidade de S. Paulo, membro da Cojira e autor dos livros Introdução aos estudos de jornalismo (Abya Yala, 2020) e Racismo estrutural – uma perspectiva histórico-crítica (Dandara, 2021). Coordenador da Rede Antirracista Quilombação. Diretor da ABEJ (Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo). Site: http://dennisoliveira.info


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Zé Maria

Negros de Pele Clara

Por Sueli Carneiro, no Correio Brasiliense, via Geledés (29/05/2004)

Uma das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente hegemônicos o privilégio de serem representados em sua diversidade.
Assim, para os publicitários, por exemplo, basta enfiar um negro no meio de uma multidão de brancos em um comercial para assegurar suposto respeito e valorização da diversidade étnica e racial e livrar-se de possíveis acusações de exclusão racial das minorias.
Um negro ou japonês solitários em uma propaganda povoada de brancos representam o conjunto de suas coletividades.
Afinal, negro e japonês são todos iguais, não é?

Brancos não.
São individualidades, são múltiplos, complexos e assim devem ser representados.
Isso é demarcado também no nível fenotípico em que é valorizada a diversidade da branquitude: morenos de cabelos castanhos ou pretos, loiros, ruivos, são diferentes matizes da branquitude que estão perfeitamente incluídos no interior da racialidade branca, mesmo quando apresentam alto grau de morenice, como ocorre com alguns descendentes de espanhóis, italianos ou portugueses que, nem por isso, deixam de ser considerados ou de se sentirem brancos.
A branquitude é, portanto, diversa e multicromática. No entanto, a negritude padece de toda sorte de indagações.

Insisto em contar a forma pela qual foi assegurada, no registro de nascimento de minha filha Luanda, a sua identidade negra.
O pai, branco, vai ao cartório, o escrivão preenche o registro e, no campo destinado à cor, escreve: branca.
O pai diz ao escrivão que a cor está errada, porque a mãe da criança é negra.
O escrivão, resistente, corrige o erro e planta a nova cor: parda.
O pai novamente reage e diz que sua filha não é parda.
O escrivão irritado pergunta, “Então qual a cor de sua filha?”.
O pai responde, “Negra”.
O escrivão retruca, “Mas ela não puxou nem um pouquinho ao senhor? [*]

É assim que se vão clareando as pessoas no Brasil e o Brasil.
Esse pai, brasileiro naturalizado e de fenótipo ariano, não tem, como branco que de fato é, as dúvidas metafísicas que assombram a racialidade no Brasil, um país percebido por ele e pela maioria de estrangeiros brancos como de maioria negra.
Não fosse a providência e insistência paterna, minha filha pagaria eternamente o mico de, com sua vasta carapinha, ter o registro de branca, como ocorre com filhos de um famoso jogador de futebol negro.

Porém, independentemente da miscigenação de primeiro grau decorrente de casamentos inter-raciais, as famílias negras apresentam grande variedade cromática em seu interior, herança de miscigenações passadas que têm sido historicamente utilizadas para enfraquecer a identidade racial dos negros. Faz-se isso pelo deslocamento da negritude, que oferece aos negros de pele clara as múltiplas classificações de cor que por aqui circulam e que, neste momento, prestam-se à desqualificação da política de cotas.

https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro

[*] Para quem não sabe, essa é uma ilustração perfeita do que é o “Racismo Estrutural” que permeia as Instituições no Brasil.

Chicão

Não existe racismo no Brasil.
O Brasil é uma democracia racial.
Há igualdade de oportunidades para brancos e negros.
Liiii tudo.

Zé Maria

Chamar a Folha de S.Paulo de ‘instituição brasileira’ é um elogio que não merece.

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