Coutinho Júnior: O que o Globo não viu no assentamento Itamarati

Tempo de leitura: 4 min

por José Coutinho Júnior, especial para o Viomundo

No dia 5 de maio, o jornal O Globo publicou uma matéria intitulada “De antigo império da soja à maior favela rural no interior do Brasil”. O repórter visitou o assentamento Itamarati, no Mato Grosso do Sul, e, de acordo com a matéria, o assentamento é a prova concreta de que a Reforma Agrária no Brasil fracassou.

De acordo com O Globo, a maioria dos assentados, carentes de assistência técnica e meios para produzir, arrenda seus lotes para grandes fazendeiros: “sem financiamentos ou assistência técnica, os pequenos agricultores não conseguem sobreviver da lida no campo. Até traficantes de drogas arrendam terras por lá. Tem fazendeiro que arrenda até 15 lotes”.

O Globo também alega que os “silos e armazéns de grãos estão apodrecendo”, e que “a prefeitura de Ponta Porã aguarda até o dia em que o Incra conceda a área para o município. Ali, quer que nasça uma nova cidade”.

No ano passado, estive no assentamento para fazer uma matéria sobre a produção do Itamarati para uma revista especial que o MST irá lançar.  Por isso, posso afirmar que a reportagem do jornal não corresponde à realidade.

“A maior favela rural do Brasil”, como afirma o título da reportagem, conta com duas formas de trabalhar a produção agrícola: áreas individuais e coletivas. Nos lotes individuais de até 10 hectares, as famílias produzem frutas e vegetais, como acerola, laranja, mandioca e criam animais. Essa produção é voltada ao consumo interno e venda em pequena escala.

Já as 66 áreas coletivas têm por volta de 120 hectares e um pivô de irrigação [ é uma estrutura da área coletiva que, quando ligada, rega a área coletiva em diversos pontos ao mesmo tempo], capaz de concentrar a produção em larga escala, de onde se extraem os alimentos para a comercialização. Há plantação de milho, soja, amendoim, feijão e pastagem para o gado.

A produção em larga escala passa então para as cooperativas, criadas pelos assentados para desenvolver o assentamento. Dados da Cooperativa dos Agricultores Familiares do Itamarati (Cooperafi), responsável pela produção de leite e grãos do assentamento, apontam que a produção de leite no Itamarati chega a 500 mil litros por mês; soja, milho e feijão atingem um milhão, 800 mil e 200 mil sacas por safra, respectivamente.

Os silos e armazéns de grãos estão longe de apodrecer. Pelo contrário, a Cooperafi revitalizou o maquinário que já existia na fazenda e se encontrava deteriorado, e hoje o Itamarati, com dez silos ativos, armazena 70 mil sacas de grãos em cada um, além de contar com um silo maior capaz de comportar 1,5 milhão de sacas. Este silo maior se encontra desativado, mas Jacob Alberto Bamberg, presidente da Cooperafi, afirma que ele terá pelo menos 25% de sua capacidade reformado ainda este semestre.

O Itamarati conta com uma segunda cooperativa, chamada Cooperativa Agroindustrial Ceres (Coopaceres). Essa cooperativa é responsável pela produção de sementes: na safra do ano passado, 180 produtores do assentamento receberam sementes e produziram 500 toneladas de feijão. Parte dessa produção e das sementes foi exportada para a Venezuela, que comprará mais mil toneladas na próxima safra.

O arrendamento de lotes e a falta de assistência técnica por parte do governo são problemas de fato enfrentados pelo Itamarati. No entanto, à medida que as iniciativas das duas cooperativas se solidificam, esses problemas começam a ser superados.

A Cooperafi contratou técnicos que atualmente vivem no assentamento, especializados na recuperação do solo, além de uma veterinária, também residente lá. Além disso, há planos de construção de um laticínio para agregar mais valor ao leite, de frigoríficos e de cisternas para o período das secas.

O assentamento Itamarati surgiu de uma ocupação em 2002. Nos dois primeiros anos de assentamento, porém, os agricultores perderam muito dinheiro por conta de uma seca.

Segundo Olívia de Moraes, diretora do colégio Carlos Pereira, “nos dois primeiros anos de assentamento as pessoas foram convencidas por agrônomos da região de que estas terras eram uma mina de ouro, e que todos ficariam ricos rápido. A maioria dos produtores investiu nas lavouras, mas como tivemos um período de seca, eles perderam tudo. Muitos inclusive deixaram o assentamento por conta desses primeiros anos”.

Some-se a isso o fato de que a produção de leite na região era alvo de um cartel das empresas leiteiras, que obrigavam os produtores a vender o litro de leite a R$ 0,30 centavos, e muitos produtores deixaram seus lotes ou passaram a arrendá-los por não ver uma saída.

Somente após o surgimento das cooperativas (a Coopaceres surgiu em 2006 e a Cooperafi, em 2010), é que a situação começa a melhorar para os assentados: hoje, o litro do leite, graças à Cooperafi, é vendido a R$0,78 centavos.

As sementes de feijão produzidas pela Coopaceres começam a se difundir, aumentando a produção do grão no assentamento, oferecendo mais uma alternativa economicamente viável aos produtores. Assim, mais produtores deixam de arrendar para voltar a produzir, pois notam que isso é economicamente viável agora.

A reportagem de O Globo é mais uma tentativa de desacreditar a Reforma Agrária frente à opinião pública por meio da manipulação dos fatos. Estranho é que na mesma página o jornal publica uma matéria sobre os resultados positivos da Reforma Agrária no Rio Grande do Sul, mas não cita uma única vez que a cooperativa em questão é organizada pelo MST. É uma pena que a nossa grande imprensa seja capaz de um jornalismo tão ruim e tendencioso.

Leia também:

A quem não interessa o desenvolvimento da agricultura camponesa?

Stedile: Dilma está cega e sendo enganada por puxa-sacos


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Ricardo Homrich

Moro no Mato Grosso do Sul e fiquei chateado (para não falar outra coisa) qdo vi essa foto.
Essas “casas” estão em um trecho da antiga ferrovia, na beira da rodovia.
Como se fosse um acampamento novo no assentamento.
Mas por kms e kms nessa estrada pode-se ver os lotes individuais, com as ortas e frutas citadas além das casa de ALVENARIA, muitas ampliadas (e bem) por seus moradores.
O Globo parece ter esquecido também de informar que o grande fazendeiro, antigo dono, ofereceu sua área para a reforma agrária.
Gosto muitos do sistema de cooperativas.
Acho que a mídia vendida daqui não repercutiu essa reportagem do “jornalão” aí pq sabe que nós nativos conhecemos esse assentamento.

P.S. Inclusive sobre a questão das drogas, várias autoridades se de mais lotes, mais população nas zonas de fronteira. Áreas enormes nas mãos de alguns facilita a passagem de tudo qto é ilícito e dificulta o policiamento.

    Ricardo Homrich

    *hortas.

Ziegler: "Quando uma criança morre de fome no mundo, ela é assassinada" – Viomundo – O que você não vê na mídia

[…] Coutinho Júnior: O que o Globo não viu no assentamento Itamarati […]

abolicionista

Um povo despolitizado é um povo fraco. Quando toda a capacidade de ação política se esvai, a luta de classes se torna uma causa humanitária. É por isso que o PT precisa perder as próximas eleições. Seu projeto desenvolvimentista não fomenta a luta ideológia e a tomada de consciência de classe. Esse tipo de condução política nos conduzirá diretamente a soluções fascistas assim que eclodir a próxima crise. Gostaria que não fosse assim, mas o PT realmente desperdiçou a grande oportunidade histórica de mudar os corações e mentes do povo. Não será fácil e nem rápido o processo de reconstrução de uma força política popular genuína no Brasil.

Carlos Ribeiro

Eu não preciso ler jornais
Mentir sozinho eu sou capaz.
Já dizia o Poeta.

Fabio Passos

A globo so ve os interesses da minoria branca e rica…

Fernandes

Se o diabo é o pai da mentira; a globo é a mãe.

Marcos Collet

Alguns “jornalistas” tem o péssimo hábito de falar mal do que não conhecem e tomam o todo por uma parte, especialmente aqueles ligados a grande mídia. Tive o prazer de trabalhar por 3 anos no P.A. Itamarati com um grupo de produtores ligados a agricultura orgânica, experiência simplesmente fantástica, com poucos recursos mas com uma vontade e determinação admiráveis eles estão produzindo não só grãos, frutos, hortaliças, leite, algodão e etc., mas conhecimento e dignidade ( muitos assentados estão fazendo curso superior e de pós graduação) e assim transformando a realidade local, mas isto infelizmente aqueles “jornalistas” não publicam.

Roberto Locatelli

Isso é só uma amostra de como a Globo mente, distorce e, principalmente, falsifica. Faz muito tempo que não assisto.

O texto cita, en passant, uma futura revista do MST. Que venha logo!!

H.92

Pois o que a globo faz não é jornalismo, é mentira. Simples assim.

Deixe seu comentário

Leia também