Andrew Levine: O estado palestino como ‘ameaça existencial’

Tempo de leitura: 8 min

A Nova “Ameaça Existencial”

Por ANDREW LEVINE, no Counterpunch

Tradução de Pedro Germano Leal

A menos que a administração Obama obtenha sucesso em oferecer a Mahmoud Abbas uma oferta que ele não possa recusar – ou mesmo se ela conseguir isso, mas os eventos saírem de controle – a Assembleia Geral da ONU vai votar, em breve, a concessão do status de país-membro da ONU ao estado da Palestina, que será proclamado em breve. Uma vez que os Estados Unidos, e provavelmente também o Reino Unido e a França, irão vetar a resolução no Conselho de Segurança, aquilo que acontecer na Assembleia Geral será em grande medida simbólico – um gesto através do qual a maioria dos povos do mundo, incluindo muitos no Ocidente, expressam solidariedade com o movimento nacional Palestino. Com os EUA apoiando Israel ao máximo, a Palestina ainda estará longe de se tornar um Estado de pleno direito.

Ainda assim, o que acontecer na ONU poderá se tornar uma virada no jogo. Em conjunto com a ascensão de movimentos democráticos na região, o colapso das alianças de Israel com a Turquia e o Egito, o crescimento do movimento de boicote-desinvestimento-sanções no Ocidente, e o surgimento, em Israel, de sua própria versão da primavera árabe, existe uma sensação geral, tanto internacionalmente, quanto em Israel, de que os tempos estão mudando – e não é no sentido que confortaria os amigos do status quo.

Portanto, pode-se esperar uma nova onda de histeria e, junto com ela, uma série de declarações sobre como Israel enfrenta uma “ameaça existencial”.

Apenas recentemente é que essa expressão entrou no léxico político, graças, principalmente, à “diplomacia pública” israelense. Ela pode soar portentosa [a expressão], mas tudo o que significa, literalmente,  é que a existência de alguém ou algo está em risco.  Se for assim, o mundo está repleto de ameaças existenciais. Mas a expressão é raramente usada, exceto quando se refere a Israel, e seu emprego real tem muito pouco a ver com a ameaça ser realmente séria ou até mesmo real.

É neste sentido que o aspirante programa de armas nucleares do Irã ou o próprio Irã são ameaças existenciais, ao lado do “terrorismo” Palestino. Uma ameaça existencial cria um excelente casus belli, uma justificativa para guerra.

Embora vaidosamente, pode-se argumentar, pelo menos, que existe a necessidade de que Israel se defenda contra a violência perpetrada por um “estado pária” ou terroristas empenhados em causar sua destruição. Mas é difícil para qualquer um, especialmente para apologistas de Israel, aplicar um argumento similar em relação à ameaça existencial que está adiante. Afinal, conferir legitimidade a Estados incipientes é um dos mais antigos papéis das Nações Unidas sob a égide das leis internacionais, e foi justamente numa votação como essa, que dará boas-vindas à Palestina à comunidade das nações, que o nascente Estado de Israel se baseou para garantir a própria legitimidade sessenta e três anos atrás.

O que é provável que aconteça na Assembleia Geral vai perturbar os defensores do status quo e constranger os oficiais do governo israelense, pessoas não facilmente dadas ao constrangimento. É também certeza de que o fato acentue a resistência palestina à ocupação israelense. Uma terceira intifada pode irromper. É desnecessário dizer que o rolo compressor israelense é mais do que suficiente para se defender de qualquer desafio militar que os quartéis palestinos consigam conceber. Mas será necessária alguma atitude, da parte de Israel (e da parte das facções palestinas que atuam – sem intenção, mas objetivamente – como parceiros em manter o status quo no lugar) para que o conflito que está por vir tome um caminho militar. O que o governo israelense e seus amigos temem é que, desta vez, um novo levante poderá ter peso moral o bastante para influenciar a opinião pública a tal ponto que se perderá a Europa e que mesmo a carta branca dos Estados Unidos poderá ser suspensa, ao menos parcialmente.

Se assim for, os defensores do status quo estão certos em se preocupar – pelo status quo. Mas isso constitui uma ameaça existencial? É difícil dizer, porque nunca foi claro o que se supõe ser ameaçado pelas ameaças existenciais que Israel se propõe a enfrentar: é a sua existência como um estado que não pertence aos seus cidadãos, mas ao povo judeu? É a existência física dos habitantes desse estado? Aqueles que promovem a expressão apreciam sua ambiguidade. Ela serve bem aos seus propósitos.

Na realidade, é  claro, não há nada à vista que possa se elevar ao nível de uma ameaça existencial, em qualquer sentido plausível do termo. Nunca houve.

Até este ponto, o entendimento comum era de que a principal ameaça existencial que Israel enfrenta viria do programa nuclear iraniano. Mas isto é claramente um absurdo. Mesmo que o Irã tivesse sucesso em construir um artefato nuclear – uma perspectiva improvável a curto prazo, já que, segundo todas as evidências disponíveis, eles estão tentando construir a capacidade, e não a arma em si – os iranianos teriam que ser suicidas para usar armas nucleares por qualquer outra razão que não seja a dissuasão. Israel, no fim das contas, está entre os Estados mais belicosos do mundo; e além de estar armado até os dentes, tem mais de duzentos ‘dispositivos de dissuasão’ prontos. Alguém pensa que, se ameaçados, os líderes de Israel seriam sensatos o suficiente para não utilizá-los?

É bom manter isso em mente, enquanto Israel busca a permissão de seu protetor americano para atacar o Irã. Qualquer um que não seja um neocon, e especialmente todos no serviço militar, sabe perfeitamente que uma guerra Israel-Irã prejudicaria os interesses americanos; seria tão prejudicial que é difícil ver como até mesmo um Congresso e administração subservientes permitiriam isso. É por isso que os falcões israelenses estão agora achando inútil retratar o Irã como uma ameaça existencial; e por isso que, na sua maior parte, eles mudaram o discurso.

A questão palestina é mais complicada – e parte da razão para tanto é o fato de que, neste caso, os Estados Unidos estão comprometidos a fazer tudo o que puderem para ver o governo de Israel resolver a situação à sua maneira. Do ponto de vista moral, a posição americana é repreensível. Também é auto-destrutiva porque ela cria uma “solução de dois estados” – indispensável, se deve haver um Estado Judeu duradouro, mas impossível de alcançar. O que os israelenses chamam de “bomba demográfica” tem a ver com isso; dadas as taxas de natalidade diferenciais, não há qualquer chance de que a maioria judia possa ser mantida por todo o mandato da Palestina. Muitos israelenses sabem disso. Mas hoje em dia eles são tão impotentes politicamente em seu próprio pais, quanto a “base” Democrata é no nosso [os EUA].

Os contornos gerais de um acordo negociado, aceitável para todos os que acreditam em uma solução de dois estados, tem sido claros ao longo de décadas. Os detalhes foram anunciados em Taba, em janeiro de 2001, durante os últimos dias do governo Clinton. Nos anos seguintes, Israel criou mais “fatos consumados”* e, em parte graças à conivência americana e israelense, a Autoridade Palestina tem sido severamente enfraquecida. Mas não seria necessária uma sabedoria salomônica para trazer Taba à tona. Até mesmo Hillary Clinton poderia fazê-lo.

No entanto, será necessária uma verdadeira virada de jogo para que algo assim aconteça. Uma vez que Israel tem quase todas as cartas na mão, enquanto a Autoridade Palestina não tem quase nenhuma, o caminho a seguir – por enquanto os Estados Unidos seguem inúteis – é alterar os parâmetros legais em que o movimento palestino opera. Como as coisas estão agora, está claro que Israel não concordará em viver ao lado de um Estado Palestino viável; bantustões oficialmente autônomos são o máximo que aceitaria. Isso ocorre não apenas porque muitos israelenses aportam esperanças de uma Grande Israel, ou porque a classe política israelense é efetivamente de propriedade de um movimento de colonização religiosamente motivado. A razão mais importante é que, se houvesse uma paz justa, a razão de Israel existir enquanto um Estado do povo judeu (e, portanto, seu controle sobre judeus da “diáspora” e até mesmo sobre sua própria população) diminuiria, não abruta, mas inexoravelmente.

Os líderes do establishment político e militar israelense entendem isso. É por isso que eles conjuram ameaças existenciais e por que, independentemente do que eles dizem, eles têm repetidamente evitado buscar fazer as pazes com os palestinos. E é também por isso que eles temem o que a Assembleia Geral das Nações Unidas está prestes a fazer.

O princípio vital do movimento sionista da década de 1890 foi o de que os judeus precisam de um Estado para servir como um refúgio em um mundo em que antissemitismo é uma força da natureza. Esse pensamento nunca ganhou força antes que os nazistas tomassem o poder na Alemanha, e mesmo assim houve resistência por parte de judeus seculares, comprometidos com ideologias universalistas, e também por parte de judeus ortodoxos e reformistas, por razões teológicas e filosóficas. Com o tempo, ideologias universalistas enfraqueceram-se e o sionismo sequestrou o Judaísmo. Enquanto isso, como a assimilação judaica prosseguiu a todo vapor nos Estados Unidos e outros países ocidentais, e com o antissemitismo já não sendo mais uma preocupação tão grande, o nacionalismo israelense não fez nada senão monopolizar a política de identidade judaica no Ocidente.

Uma vez que o Judaísmo, despojado da casca sionista que tem sido imposta sobre ele, hoje é considerado algo fadado ao fracasso** pela maioria dos judeus, e que o casamento entre judeus e não-judeus seja tão prevalente, está se tornando cada vez mais difícil manter um senso de identidade judaica em termos religiosos ou étnicos. Apenas Israel fica de fora. E como a sociedade israelense tem ligações históricas com o secularismo e o socialismo, Israel tornou-se algo difícil de amar ou até mesmo admirar. Não é surpresa, portanto, que tão poucos judeus da diáspora sequer pensem em viver lá, ou que tantos israelenses vivam no exterior.

Existe ainda, claro, a memória do judeocídio nazista, e sionistas exploram isso ao máximo. Mas conforme o tempo passa, esta memória se torna menos explorável; e nem todos os museus do Holocausto no mundo mantém sua eficácia. O movimento sionista conseguiu apropriar-se do capital moral da devastação causada pela Alemanha nazista sobre judeus da Europa, mas gastou o capital de forma imprudente, e não sobrou muito dele.

Entram em cena as ameaças existenciais. Quando elas não existem, como é o caso daquelas invocadas pelos líderes de Israel, elas precisam ser inventadas ou pelo menos exageradas além de qualquer proporção. Isto é o que estamos prestes a testemunhar novamente.

Sem dúvida, Obama gostaria de construir a “solução de dois estados”. Mas o fato é que ele não é capaz de fazer isso – seja porque ele não pode ou não conseguiria encarar o governo de Israel e o lobby de Israel nos Estados Unidos. Junto com tantos povos do mundo, os palestinos – e os israelenses também – agora estão pagando o preço, assim como nós, norte-americanos, pela incapacidade do nosso presidente para governar, e menos ainda para liderar.

Com um incrível poder de previsão, Benjamin Netanyahu tomou as medidas de Obama muito cedo, quando até mesmo a liderança do partido Republicano ainda estava tateando o seu caminho. E ele, evidentemente, tem prazer em demonstrar, de tempos em tempos, que em se tratando de Israel e da Palestina, o Comandante-em-chefe da única superpotência do mundo é tão firme quanto uma água-viva. Com implicações muito diferentes, o mundo finalmente vê o que Netanyahu percebeu há muito tempo, e parece que, em breve, ele [o mundo] vai fazer-se ouvir.

Supondo que Obama não possa barrar a votação da Assembleia Geral, o que vai acontecer em seguida não está claro. Israel, que é sempre uma ameaça existencial genuína para o povo palestino, pode cobrar um alto preço caso se sinta ameaçado, e os palestinos podem ter certeza que se uma “intervenção humanitária” for lançada, ela será dirigida, como sempre, contra aqueles que desafiam o poder americano.

Mas agora é um momento tão bom quanto qualquer outro para tentar alterar as regras que governam o status quo cada vez mais intolerável das relações Israel-Palestina e, como se diz, “quem não arrisca, não petisca.”*** A intransigência israelense certamente irá prevalecer por mais algum tempo, mas, em face de um mundo indignado, não pode prevalecer indefinidamente – mesmo com apoio americano. Enquanto isso, cabe aos americanos, especialmente aos judeus americanos, fazer todo o possível para minimizar esse apoio – não apenas em solidariedade com as vítimas da influência e intromissão nefastas do nosso país [os EUA], mas também, nas palavras de Thomas Jefferson, por uma questão de “respeito decente … [pelas] opiniões da humanidade”.

* No original, “facts on the ground”.

** No original, “non-starter”.

*** No original, ““nothing ventured, nothing gained.”

Andrew Levine é  acadêmico sênior do Institute for Policy Studies. Escreveu recentemente “The American Ideology” (“A Ideologia Americana”, Routledge) e “Political Key Words” (“Palavras-Chave Políticas”, Blackwell), entre muitos outros livros e artigos sobre filosofia política. Ele foi professor (filosofia) na University of Wisconsin-Madison e professor-pesquisador (filosofia) na University of Maryland-College Park.

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Comentários

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FrancoAtirador

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The one-sided US veto: an astounding display of hypocrisy

By Neve Gordon and Yinon Cohen > Palestine > Redress Information & Analysis

21 September 2011

Neve Gordon and Yinon Cohen argue that the US plan to veto the Palestinians’ bid for UN recognition, under the pretext that unilateralism is misguided, is an astounding display of hypocrisy and double standards.

http://occupiedpalestine.wordpress.com/2011/09/22

    Beto_W

    Ótimo texto, FrancoAtirador.

FrancoAtirador

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Pedro Germano Leal: brilhante, como sempre.
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FrancoAtirador

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Colonos Judeus armados "para marchar sobre cidades Palestinas"

Terça-feira, setembro 20, 2011 07:00

Fontes da mídia hebraica afirmam que os colonos judeus ilegais pretendem organizar manifestações e comícios na periferia de cidades palestinas na Cisjordânia ocupada.

De acordo com relatos do jornal israelense Yedioth Ahronoth, os colonos armados ameaçaram atirar em palestinos se eles organizarem contra-manifestações ou tentarem se aproximar dos assentamentos ilegais.

As marchas, alegam, estão sendo organizadas para demonstrar o "controle" da terra pelos colonos; eles tentarão obter acesso aos escritórios de coordenação do exército de ocupação israelense.

Uma marcha semelhante está prevista para Tel Aviv, de onde ativistas de direita se dirigirão aos territórios palestinos ocupados para estender o conflito às áreas nominalmente sob o controle da Autoridade Palestina.

Yedioth Ahronoth disse que os líderes dos colonos têm planos de organizar marchas em três regiões de Bet Aeyl até próximo ao Gabinete de Coordenação e Ligação, e do assentamento de Kiryat Arba, em Hebron, para o assentamento de Har Manoá. Os organizadores decoraram carros com bandeiras de Israel.

Meir Bartel, um dos líderes dos colonos extremistas que se autodenominam os "jovens das colinas", disse ao jornal que "Israel deve anexar os blocos de assentamentos em resposta à decisão da Autoridade Palestina de ir às Nações Unidas. Organizaremos marchas para mostrar ao mundo que esta terra é a terra do povo de Israel."

Um oficial de segurança do assentamento judaico acrescentou: "As ordens militares são pouco claras, e se os Palestinos tentarem ultrapassar os limites dos assentamentos, nós não hesitaremos em abrir fogo com balas de verdade contra eles."

Tradução: Google (adaptada, mediante autorização de BK)

Original em:

http://occupiedpalestine.wordpress.com/2011/09/20

Beto_W

Excelente análise de Andrew Levine – e excelente (impecável até) tradução do Pedro Germano Leal.

As justificativas do governo israelense para sua campanha contra o reconhecimento do Estado Palestino são pífias e risíveis, já que, em primeiro lugar, desde 1947 já existe um precedente para isso (o Estado de Israel foi fundado assim, e havia a previsão para um estado palestino).

Não sei o que vai acontecer com a votação, mas tenho a impressão que muita coisa vai mudar no Oriente Médio. Espero que seja para melhor, e sem violência e derramamento de sangue de nenhum dos lados.

SILOÉ-RJ

Nenhuma proposta no mundo demoverá Abbas do seu propósito.
Há mais de 2 anos que ele vem nessa peregrinação de convecimento em todos os países à favor do reconhecimento da PALESTINA como país membro da ONU.
Seria uma votação histórica se além da participação de DILMA, contrariando todas as previsões, BARACK OBAMA votasse à FAVOR. Seria sua redenção aos olhos do mundo e de seus eleitores que certamente não são judeus.
Utopías à parte:
Nem aquele bárbaro massacre na NORUEGA patrocinado pela ultra- direita até agora não explicado, nem todas as pressões de Israel sobre os países membros, e nem o Hamás conseguiram intimida-lo, não será o combalido Obama, enfraquecido fora e dentro do seu país que irá consegui-lo.
A hora é agora, VIVA O ESTADO PALESTINO!!!

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