Dalva Garcia: Adeus a uma companheira de trabalho num curto intervalo de tempo escolar

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Por Dalva Garcia

O adeus de um curto intervalo de tempo escolar

“Entre um instante e outro, entre o passado e as névoas do futuro, a vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do relógio. O fundo dos acontecimentos erguendo-se calmo e morto, um pouco de eternidade… Renascer depois, guardar a memória estranha do intervalo, sem saber como misturá-lo à vida” Clarice Lispector – Perto do Coração Selvagem

Por Dalva Garcia*

Naquela manhã de segunda apenas alguns instantes, um pequeno intervalo de tempo para que no banheiro de uma escola, um rapazinho pudesse cobrir o rosto com uma máscara e colocar o cinto com uma faca que trouxe de casa.

Professoras e alunos feridos e uma companheira de trabalho escolar não resiste ao ataque.

Seu coração não aguenta e ela se vai. Com ela se vai uma vida dedicada à educação com alegria que ocupava as salas de corredores da escola aonde trabalho.

Ainda na manhã de segunda, ouço de colegas assustados comentários difusos.

Ainda dando aula no segundo horário da manhã de segunda, a notícia chega bem antes do intervalo das aulas pelo celular de um aluno: “assassinato no Tomasia, vem ver, professora. É verdade, tô vendo, mataram uma professora!”

“É verdade, tô vendo! “.

A imediatez das imagens e dos comentários não estanca o tédio.

É preciso mais ação e ação cada vez mais violenta.

Violência escolar e bullying são nomes dados ao desrespeito generalizado inclusive na boca de ex-ministro da educação que não teve constrangimento algum em denominar estudantes e professores de universidades públicas de “maconheiros ou arruaceiros”.

Brigas nas escolas são gravadas nos celulares e viralizadas nas redes sociais.

Acabo de ler a notícia de um juiz de direito de Guarulhos (SP) que guardou em seu cofre vídeos e fotos de mulheres carimbadas com seu nome e cargo nas nádegas até que a esposa agredida grava situações de violência doméstica para denúncia, mantida em devido sigilo judicial.

Não ouvi, neste caso do magistrado, nenhum comentário sobre a necessidade de policiamento para deter a violência que esconde os desvios da personalidade no âmbito do judiciário ou do destrato e desrespeito em sessões do legislativo federal, estadual ou municipal.

Talvez porque o carimbo oficial tenha mais eficácia que a máscara do “adolescente infrator”.

Persona é o nome latino para máscara. O rapaz precisou da máscara, mas há outras já oficiais e grudadas ao rosto da impunidade.

Mas quero salientar que ainda não li ou ouvi nenhum comentário sobre o despreparo desses senhores juízes ou deputados para lidar com bullying ou violência cotidiana em instituições que não sejam a escola, principalmente a escola pública.

É evidente que a tragédia da escola na zona oeste de São Paulo é episódio lamentável e triste.

Como também o foi o da escola estadual no município de Suzano (SP) há cerca de quatro anos.

Tremo ao ouvir relato de professores que viram seus alunos exibirem tufos de cabelo arrancados de seus colegas como se fosse troféu obtido em ringue de briga de “vale tudo”.

Nenhum projeto de reforma arquitetônica em escolas ou de policiamento como medida de segurança para comunidade escolar poderá escamotear a miséria intelectual que consolida a barbárie.

E , digo mais, a história da humanidade já deu sinais suficientes para temermos as consequências da barbárie que naturaliza a violência como necessidade de ordenamento institucional ou para manter o status de “personas”.

O culto desmedido à personalidade com a expansão dos meios digitais não tem limites ou freios.

Seria ingenuidade supor que essa questão esteja restrita às escolas. E que o aluno aprendeu o que não devia no aparelho celular porque professores ou pais não estavam devidamente atentos ou preparados. A violência naturalizada é propagada e vende muito.

O destrato ou o desrespeito à profissão do professor de educação básica não é, infelizmente, de uso exclusivo de crianças, adolescentes ou jovens, sejam eles denominados infratores ou não.

É prática cotidiana de decretos e leis que visam vigiar e punir o profissional da educação desqualificando sua formação ou experiência.

A expressão que, quase toda semana, ouço de jovens na escola “Fica na sua, dá aí sua aula” é travestida por discursos oficiais mais cruéis ou intransigentes que essa expressão.

Por isso, é preciso dizer que alunos aprendem sim e aprendem muito bem com os reality shows, como as séries, com o jornalismo digital ou televisivo.

Lamento ouvir a voz de especialistas em psiquiatria infanto-juvenil afirmarem que é preciso que educadores saibam ler os sinais da violência escolar.

Antes disso, é preciso que os profissionais de todas áreas saibam ler e interpretar os sinais da violência social e da miséria intelectual que nos cerca.

Daí o valor de uma educação muito mais comprometida com a formação do humano do que com o planejamento meticuloso de ações exitosas.

Até porque ninguém pode dizer que a ação do aluno da escola pública não foi planejada como meta a ser alcançada, como prevê os documentos oficiais de qualquer “projeto de vida” que ganha lugar de destaque nos currículos oficiais substituindo conhecimentos de literatura ou filosofia.

O aluno agiu calado.

As manchetes gritam a palidez de uma dor.

Uma aluna da escola em entrevista afirma: ninguém podia falar da professora Bete, era querida por todos.

Disso fui eu mesma testemunha durante o tempo que trabalhei com a professora.

Mas como na canção de João Bosco: “Tá lá o corpo estendido no chão, em vez de reza uma praga de alguém e um silêncio servindo de amém… Sem pressa foi cada um pro seu lado… Olhei o corpo no chão e fechei. Minha janela de frente pro crime”.

Por fim, como nas palavras de Clarice Lispector: talvez seja preciso renascer, mas guardando a memória de um instante de intervalo com a coragem de misturá-lo à vida. Mesmo sem saber.

Até porque os comentários fáceis e respostas pragmáticas não calam a dor do ADEUS. E só revelam presunção ou opinião, que, por sua vez, nem sempre coincidem com conhecimento.

*Dalva Garcia é professora de Filosofia da rede pública de São Paulo

Leia também:

Nelice Pompeu: Perdemos Bete, uma tragédia anunciada que poderia ter sido evitada pelo governo paulista

Carla Jimenez: O fascismo matou Tia Bete

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Dalva Garcia

Professora de filosofia da rede pública de São Paulo.


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Zé Maria

Excertos

Nenhum projeto de reforma arquitetônica em escolas ou de policiamento como medida de segurança para comunidade escolar poderá escamotear a miséria intelectual que consolida a barbárie.

… a história da humanidade já deu sinais suficientes para temermos as consequências da barbárie que naturaliza a violência como necessidade de ordenamento institucional ou para manter o status de “personas”.
[…]
Lamento ouvir a voz de especialistas em psiquiatria infanto-juvenil afirmarem que é preciso que educadores saibam ler os sinais da violência escolar.

Antes disso, é preciso que os profissionais de todas áreas saibam ler e interpretar os sinais da violência social e da miséria intelectual que nos cerca.

Daí o valor de uma educação muito mais comprometida com a formação do humano do que com o planejamento meticuloso de ações exitosas.
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