Lia Giraldo: Ambiente é questão vital à saúde dos trabalhadores. Sempre os primeiros e os mais afetados!

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Vista da Serra do Mar a partir do polo petroquímico e siderúrgico de Cubatão (SP), décadas de 1970 e 1980. Somente em setembro de 2017 a Justiça condenou 24 empresas da região por poluição ambiental e danos à Serra do Mar ao longo dessas duas décadas. A ação demorou 31 anos para ser julgada. Entre as condenadas, Petrobrás, Rhodia, Cosipa (atual Usiminas) e unidades que hoje fazem parte da Bunge e da Votorantim

Por Lia Giraldo da Silva Augusto*

Vivemos em um mundo marcado globalmente pelas crises climática, sanitária e de imensa desigualdade social.

Constatá-las é a primeira tomada de consciência para todos nós que estamos vivos neste momento da história.

Ainda sob os efeitos da pandemia de covid-19 não totalmente superada, estamos com enormes sequelas humanas, sociais, econômicas e políticas, que afetaram principalmente trabalhadores e suas famílias.

Ao mesmo tempo, o mundo se vê assombrado por uma guerra na Europa de consequências ainda imprevisíveis, e que aponta para uma nova ordem econômica mundial, cujos sintomas se fazem sentir, especialmente agravando o modelo hegemônico de produção e consumo inaugurado no século 20.

Algumas das consequências nefastas desse contexto já são irreversíveis, cabendo apenas mitigações e reparações.

Os trabalhadores e suas famílias ficaram ainda mais vulnerados. Estão pagando com a saúde e a vida um preço maior por todas essas nocividades.

Em contrapartida, apesar de todas essas crises, que afetam a maioria da população, o grande capital e o mercado financeiro continuam lucrando. São eles os principais beneficiários delas.

O setor produtivo vem passando por acelerada reestruturação não só tecnológica, mas principalmente nas relações de trabalho em desfavor da vida e da dignidade humana.

A globalização, a terceirização e a precarização do trabalho têm sido as marcas atuais mais significantes do capitalismo.

Essa economia é também responsável pela descomunal degradação ambiental e aceleração dos nefastos processos de expropriação da natureza e da vida humana, causando enorme insegurança alimentar e intensificação na escalada da violência que se sobrepõem às outras mazelas.

Hoje os danos ao planeta tornam a sustentação da vida dos seres humanos e dos demais seres vivos questões que desafiam os governos nacionais e a governança global. Os trabalhadores precisam estar preparados para combater a necropolítica que sustenta o capitalismo rentista atual.

Compreende-se necropolítica como o biopoder utilizado para expor cidadãos e extensos segmentos humanos à morte social, como ficou explícito no Brasil durante a pandemia de covid-19, pelas sucessivas liberações escancaradas de agrotóxicos, desflorestamento e ampliação das iniquidades sociais acentuadas os últimos anos.

Essa economia perversa de expropriação da natureza está implicada também na mudança geológica que observamos na biosfera de nosso planeta, o denominado antropoceno.

Diferentemente de outros fenômenos ocorridos na história geológica da Terra, o antropoceno decorre dos modos de espoliação da natureza e de como os processos produtivos e a ocupação dos espaços estão sendo realizados.

Já se sabe também que a agropecuária, a mineração, a matriz energética dependente de combustíveis fósseis, a poluição atmosférica oriunda da indústria petroquímico-siderúrgica e dos meios convencionais de transporte são os maiores emissores de gás estufa responsáveis por essas profundas alterações terrestres.

Algumas consequências do antropoceno já são mensuráveis e irreversíveis como o degelo dos glaciares, o aquecimento dos oceanos, a perda de biodiversidade e as mudanças climáticas. Tomar consciência desses problemas em sua radicalidade é uma questão de vida para os trabalhadores.

Tudo aquilo que degrada o ambiente afeta precocemente a saúde e a dignidade dos trabalhadores.

Portanto, lutar por ambientes de trabalho saudáveis e dignos contribui para a proteção ambiental de modo geral, desde que se incluam nessas pautas mudanças nos processos produtivos desde sua concepção, e com a introdução de medidas de controle de poluição, de reparação socioambiental e de responsabilização do poluidor frente as nocividades provocadas.

Em 1993, fizemos isso com a Rhodia, empresa sediada no polo siderúrgico e petroquímico de Cubatão, na Baixada Santista (SP).

A Rhodia produzia tetracloreto de carbono, uma das principais matérias primas para a produção de clorofluorcarbonetos – CFC.

Este gás tóxico, que destrói a camada de ozônio, era utilizado em equipamentos de refrigeração.

O ozônio possui a capacidade de absorver grande parte da radiação ultravioleta (UV) do sol. A sua redução favorece o aumento da temperatura e do calor, agravando as consequências do efeito estufa decorrentes da poluição e da queima de combustíveis fósseis.

De 1978 a 1995, atuei como sanitarista e médica do trabalho na região de Cubatão, na Baixada Santista.

O acoplamento estrutural entre os processos produtivos, a saúde dos trabalhadores e a proteção ambiental sempre foi muito evidente para mim.

Entendendo, aqui, o ambiente nas interfaces ecológicas e sociais. Um conceito que precisa ser melhor internalizado na luta pela saúde dos trabalhadores e seus demais direitos.

Essas mudanças ambientais que evidenciamos na atualidade são capazes de provocar enormes desestruturações em escalas hoje já previsíveis e que trará à classe trabalhadora o maior preço a ser pago, o da sua vida e o das futuras gerações.

Nesse contexto de crises permanentes e crescentes, em que a humanidade está imersa, é importante reconhecer as responsabilidades sociais, éticas e os modos pelos quais elas operam. Os processos de determinação das situações de riscos e dos danos ao ambiente, à vida e à saúde devem ser considerados integradamente.

Os trabalhadores e as populações em seus territórios de vida são os primeiros grupos a sofrer os problemas dessas alterações nocivas e das situações de riscos a eles vinculados.

Como metáfora, podemos dizer que correm nas veias dos trabalhadores o metabolismo social e os ciclos da natureza que abrangem as florestas, as águas, as regiões costeira, do campo e da cidade.

A luta de classes tem na contemporaneidade importantes desafios diante da enorme fragmentação produzida pela necropolítica do capitalismo atual e da perda de solidariedade produzida pelos modos de dominação econômico-política da globalização.

A classe trabalhadora deve se protagonizar também nas lutas ambientais, assumindo os sistemas socioecológicos como unidades de ação na resistência e na proposição de políticas protetoras e reparadoras em defesa dos direitos humanos e da natureza.

Uma análise da conjuntura nacional nos permite constatar que nos últimos anos tem havido muito sofrimento para a sociedade brasileira, com a degradação crescente das políticas públicas, especialmente aquelas que protegem a saúde, o ambiente e a vida.

Concorreram aceleradamente para essa situação não só o desfinanciamento, como o do SUS, agravado pela EC 95 (a PEC do teto de gastos, de 2016).

Outras medidas mais recentes estão a vulnerabilizar ainda mais a vida dos trabalhadores, como a fragilização da rede de atenção e de vigilância à saúde, o desmonte da seguridade social, da proteção ao trabalho digno, do sistema nacional de meio ambiente, da educação e da ciência.

Para concluir, reporto aqui uma parcela da colaboração pessoal ao debate do documento Contribuições da Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores e Trabalhadoras para o processo eleitoral brasileiro 2022 (na íntegra, ao final):

“A generalizada degradação ambiental e as vulnerações induzidas e promovidas pelos governos contra os trabalhadores, as populações das periferias urbanas, indígenas, tradicionais, camponeses, ribeirinhos e costeiros exigem novas alianças. Toda a sustentação ecológica da vida tem sido afetada pelos processos em curso, especialmente pelo avanço do agronegócio sobre áreas naturais protegidas; pela desregulação e desmonte do arcabouço jurídico-institucional da política ambiental; pela regressão da excelência técnica alcançada com o apoio das universidades públicas brasileiras; pela ampliação do fisiologismo na gestão das políticas públicas, que tem favorecido os poluidores e infratores ambientais, impedindo ou manipulando a participação social e o exercício do controle social.

O Brasil tem uma série de condições para um desenvolvimento social e econômico sustentável devido às suas amplas possibilidades de uso de uma matriz energética e de biomas diversificados, que poderiam ser apropriados para uma agricultura não poluidora e socialmente justa, como a agroecologia, bem como por uma retomada da industrialização, com base em tecnologias e processos produtivos igualmente não poluidores e socialmente justos”.

A Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores convoca parlamentares e governantes a assumir compromissos com essas pautas.

E nós, desde já, estamos aqui para contribuir.

Temos convicção de que é a classe trabalhadora em aliança com os movimentos camponeses, feministas e os que têm como bandeiras os direitos humanos, a democracia, a paz, a luta contra as iniquidades sociais e todas as demais formas de racismos, juntos serão capazes de garantir de modo vigilante e organizado a recuperação de direitos perdidos e os avanços necessários à justiça social e ambiental para nosso povo.

*Lia Giraldo da Silva Augusto, médica sanitarista e do trabalho. É pesquisadora titular aposentada na Fiocruz e professora aposentada pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco (UPE). Líder de grupo de pesquisa do CNPq em Saúde Ambiental, membro do GT Saúde e Ambiente da Abrasco e da Frente Ampla Em Defesa da Saúde dos Trabalhadores e Trabalhadoras.

Contribuições da Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores by Conceição Lemes on Scribd

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