Maria Vera Castelhano: Crônica de uma morte anunciada de trabalhador da Nuclemon; José Pereira Gomes, presente!

Tempo de leitura: 6 min
O ex-presidente da ANTPEN José Pereira Gomes, falecido em 5 de abril de 2023, e José Venâncio Alves, atual presidente da entidade

Por Maria Vera Cruz de Oliveira Castellano*

O escritor Gabriel Garcia Márquez começa assim o seu livro Crônica de uma morte anunciada:

“No dia em que o mataram, Santiago Nasar levantou-se às 5 horas e 30 minutos da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo”.

E passa a narrar o sonho que Santiago tivera naquela noite.

Nem ele nem a mãe reconheceram o presságio que havia no sonho daquela noite e das noites anteriores.

Aparentemente toda a comunidade sabia do iminente assassinato, mas nada nem ninguém salvou Santiago do seu trágico fim.

Em 6 de novembro de 2019, o SP1, telejornal local da TV Globo, levou ao ar a reportagem Pedidos de indenização na Justiça, dos jornalistas Luiza Vaz e Luiz Fernando Toledo.

É sobre ex-trabalhadores da Nuclemon, uma indústria da área nuclear, que funcionava na Zona Sul da capital paulista.

Eles estavam reivindicando na Justiça indenização por problemas de saúde decorrentes da exposição a radiações ionizantes/nucleares no local de trabalho.

Vários aparecem na reportagem, entre eles José Pereira Gomes, que diz:

“Espero que um dia a gente consiga alguma coisa, muitos coitados que esperavam já se foram. e nós estamos na luta para ver o que vai acontecer conosco’’.

Não conseguiu.

Ao contrário de Santiago Nasar, de Garcia Márquez, José Pereira Gomes sabia e temia a própria morte, mas nem ele nem ninguém pode evitá-la.

Em 5 de abril de 2023, faleceu após uma luta, desde 2021, contra um câncer de estômago.

José Pereira Gomes foi presidente da ANTPEN (Associação Nacional dos Trabalhadores da Produção de Energia Nuclear), criada em 1º de junho de 2006. Na verdade, a associação dos ex-trabalhadores da Nuclemon.

Talvez alguns leitores estejam perguntando:

— A Nuclemon sabia do risco das radiações para os seus trabalhadores?

— Quais as consequências dessa exposição?

— O que aconteceu com a empresa e o local onde estava instalada?

— E com os trabalhadores?

Certamente, conhecia o risco das radiações ionizantes/nucleares para seus trabalhadores.

Radiações ionizantes/nucleares são um agente cancerígeno classe I na Classificação da IARC – International Agency for Research on Cancer.

Em 1992, a empresa encerrou as suas atividade por duas razões:

— processamento de material radioativo sem as condições de segurança preconizadas; e

— localização em bairro residencial da cidade de São Paulo, representando grave risco à saúde dos trabalhadores, assim como da população que vivia no entorno.

Logo em seguida, foi demolida.

Os trabalhadores foram demitidos e aposentados; poucos mantiveram vínculo com a empresa.

Entre 1994 e 1998, foi realizado descomissionamento no terreno, como determina a Agência Internacional de Energia Nuclear.

Várias medidas indispensáveis para desativar a instalação de energia nuclear e o terreno foram então adotadas, observando-se os cuidados para proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores e das pessoas em geral e, e ao mesmo tempo, o meio ambiente.

Afinal, o que havia na Nuclemon de tão perigoso?

Lá, eram processadas areias minerais pesadas. Trata-se da associação de monazita, zirconita, ilmenita e rutilo, minerais encontrados nas areias monazíticas, que existem no litoral da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro.

O processamento da monazita era feito através da separação eletromagnética, seguida de moagem, ataque alcalino com soda cáustica e dissolução clorídrica.

Entre os produtos finais, havia compostos radioativos (urânio, tório), denominados Torta II, e sílica livre.

A empresa ficava num galpão onde não havia separação física entre os setores.

Consequentemente, todos os trabalhadores da Nuclemon, inclusive os do administrativo, ficavam expostos às invisíveis e inodoras radiações ionizantes, além de ruído e calor.

Eles se expuseram aos seguintes riscos ocupacionais:

Químicos — toxicidade química decorrente do tratamento da monazita e da ambligonita, e poeiras minerais com granulometria média de 0,25 mm, com potencial para causar pneumoconiose.

Físicos — ruído, calor e radiações ionizantes.

Ergonômicos — esforço físico intenso, trabalho em turno e noturno.

Os trabalhadores levavam as roupas contaminadas para lavar em casa e às vezes se alimentavam no meio da produção.

O risco radiológico decorria da presença residual de materiais radioativos, representados pelo urânio, tório, rádio e seus produtos de decaimento.

Ocorria irradiação externa devido a emissão de raios beta e gama, e contaminação interna, via inalação, pois boa parte dos materiais radioativos estava aderida às poeiras.

Interessante é que a própria Nuclemon cita em vários PPP (Perfil Profissiográfico Previdenciário) a presença das radiações ionizantes como fator de risco:

“Nas atividades descritas o empregado esteve exposto ao agente nocivo radiação ionizante de modo habitual permanente, não ocasional nem intermitente. Para o agente físico radiação ionizante o presente estado de tecnologia, seja coletiva (EPC) ou individual (EPI), não confere ao trabalhador uma proteção eficaz em relação à nocividade deste agente”.

As radiações ionizantes causam alterações do DNA, instabilidade genômica e efeitos tardios como alterações hematológicas, leucemias e tumores sólidos de forma geral.

Observa-se uma relação dose-resposta na gênese dos tumores causados por radiação, muito embora esteja bem estabelecida na literatura médica a relação entre a exposição a baixas doses de radiações ionizantes e o aumento da mortalidade por tumores sólidos.

O risco de morte por câncer sólido aumentou 5% por 100mGy de exposição, sendo que uma em cada 100 mortes (com exceção da leucemia) pode ser atribuída à exposição por radiação no ambiente de trabalho. São dados de estudo publicado em 2005 na respeitada revista médica British Medical Journal (BMJ).

Em 2015, a BMJ publicou novo estudo realizado na França, Reino Unido e Estados Unidos que confirma os achados de 2005: Não há níveis seguros para a exposição às radiações ionizantes.

A exposição às radiações ionizantes correlaciona-se também com maior prevalência de diabetes, doença cardíaca isquêmica e doenças cerebrovasculares.

Vários fatores podem estar na origem do câncer.

Mas quando 30% de uma população exposta ao mesmo agente cancerígeno adoece, é prova inquestionável do tipo causa-efeito. É o caso das radiações ionizantes.

A observação de que a incidência de câncer neste grupo é maior do que na população geral só é possível pelo acompanhamento ao longo do tempo (longitudinal) desses trabalhadores.

É o que ocorreu no caso dos ex-trabalhadores da Nuclemon.

Em julho/agosto de 1990, quando ainda trabalhavam na empresa, 19 foram submetidos à bioanálise (dosimetria interna e avaliação de compostos radioativos em urina e fezes) e dosimetria externa.

Quatro tiveram resultados anormais nas pesquisas de tório na urina e 13 nas fezes.

Foram feitas 13 avaliações com contador de corpo inteiro; cinco resultaram anormais.

Em outubro/novembro de 1992, foram feitas outras avaliações.

Entre 1990 e 1993, foram feitas várias inspeções na Nuclemon.

Participaram: Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Santo Amaro (CRST Santo Amaro), Delegacia Regional do Trabalho (DRT), Fundacentro, Sindicato dos Químicos e Ministério Público do Trabalho.

No CRST Santo Amaro, avaliamos 160 trabalhadores. Correspondiam a 39% do total de empregados da empresa.

Foram diagnosticados: perda auditiva induzida por ruído em 58 deles, pneumoconiose em 14 leucopenia em 7, além de vários casos de distúrbios osteomusculares (DORTs) e asma relacionados ao trabalho.

Em 2000, os trabalhadores começaram a se reunir para falar de sua situação e das doenças que começaram a surgir.

Em 2005, um grupo de 65 entrou com ação trabalhista contra a INB (Indústrias Nucleares do Brasil), responsável pela Nuclemon após o seu fechamento.

Em 1 de junho de 2006, nascia a ANTPEN, na verdade, a associação dos ex-trabalhadores da Nuclemon.

Em pé: Raimundo Jerônimo Pinheiro, Arnor Alberto Goecking, Milton Guadalupe Lopes, Severino da Silva, Mário Celes, Osmar Martim Alves (falecido), Juscelino Alves Nascimento (falecido), Agnelo Malaquias Pereira (falecido). Sentados: Pedro Alves de Oliveira (falecido) e José Venâncio Alves, atual presidente da ANTPEN

Eles se reúnem mensalmente na sede do Sindicato dos Químicos, em Santo Amaro.

Sentados na primeira fila: Adilson Alfredo Goecking, Manoel Gomes de Souza (falecido) e a viúva de Paulo Ferreira Guarda

Em 2007, uma liminar com antecipação de tutela garantiu-lhes o convênio médico.

Desses 65 trabalhadores, 20 (30,7%) tiveram câncer: bexiga, intestino, seio maxilar, esôfago, estômago, laringe, pulmão, próstata, leucemia linfoide crônica e leucemia mieloide aguda.

Muitos morreram em decorrência desse câncer.

Desses casos, 17 foram notificados no Sinam (Sistema de Informação de Agravos de Notificação).

Por que eu estou contando tudo isso?

Hoje, 28 de abril, é o Dia Nacional em Memória das Vítimas de Acidentes e Doenças do Trabalho.

É uma data para refletirmos sobre as condições de trabalho que levam ao adoecimento de tantos trabalhadores e a tantas mortes anunciadas.

José Pereira Gomes, presente!

*Maria Vera Cruz de Oliveira Castellano é médica do Trabalho e pneumologista. Cofundadora e membro da Associação Nacional dos Trabalhadores da Produção de Energia Nuclear (ANTPEN).

Recorte da imagem de José Pereira Gomes no dia em que a reportagem Pedidos de indenização na Justiça, do SP1, foi gravada. Ele usava a camiseta da ANTPEN e crucifixo.

Abaixo parte do áudio da matéria.

A doutora Vera citada é a médica Maria Vera Castellano, uma das colunistas do Blog Saúde & Trabalho, do Viomundo

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Comentários

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Zé Maria

“Recebi com muita alegria o convite da Ministra Nisia Trindade,
para assumir a Superintendência Estadual do Ministério da Saúde no RS.
Agradeço a confiança depositada pela Setorial de Saúde e pela direção estadual do PTRS.

Fortalecer o SUS com participação e controle social.”

MARIA CELESTE
Ex-Vereadora e Presidenta da Câmara Municipal de Porto Alegre (PoA);
Presidenta do Partido dos Trabalhadores PoA;
Conselheira Tutelar;
Militante dos Direitos Humanos .
https://twitter.com/MCeleste13/status/1654616946443186176

Julio xavier telles

Que seja feito justiça, para todos os trabalhadores e familiares , que foram enganados.

Esmael

Assassinos.

Silvio Lima

As empresas usam produtos perigosos que causam várias doenças nas pessoas e até cânceres.
Por isso é importante a união dos trabalhadores através de sindicatos. Sindicatos que defendam o trabalhador de fato.
As escolas ao invés de dar aula de brigadeiro, poderiam dar aula de direito do trabalho para que os jovens desde cedo já entrem nas empresas sabendo os seus direitos para não serem enganados.

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