Vladimir Safatle: A democracia sem povo

Tempo de leitura: 2 min

A democracia que não veio

por Vladimir Safatle, na Folha de S. Paulo

O real desafio é criar mecanismos de ampliação da democracia direta

Desde que a campanha eleitoral começou, vemos os candidatos mais bem posicionados ensaiarem a defesa da reforma política. Isso significa que, ao menos no discurso, todos reconhecem um certo déficit democrático nas estruturas de poder da sociedade brasileira.

No entanto, é interessante perceber como a maioria das propostas (quando elas, de fato, aparecem) resume-se à discussão de questões que não tocam o fundamento do problema.

Voto obrigatório ou facultativo, existência ou não do Senado, adoção ou não do voto distrital: todas essas questões, embora relevantes, não têm a força para desbloquear o processo de constituição de uma democracia efetiva entre nós.

Neste sentido, talvez fosse o caso de dirigir a atenção para dois pontos pouco explorados no debate eleitoral. Primeiro, vivemos um processo de esgotamento do chamado “presidencialismo de coalizão”.

O Brasil deve ter o único Parlamento no mundo em que é impossível a um partido ter a maioria absoluta das cadeiras. Desde a redemocratização, apenas o PMDB de 1986 conseguiu alcançar essa marca.

Isso faz com que o Congresso seja um verdadeiro “balcão de negócios”, no qual um Executivo sempre fragilizado (já que necessita de alianças heteróclitas com vários partidos para governar) sai perdendo.

Só seria possível mudar tal situação através de uma reforma política que permitisse situações eleitorais nas quais o vencedor leva tudo.

Isso pode significar que uma parte das cadeiras deva estar vinculada, necessariamente, ao partido vencedor, a fim de permitir que ele possa fazer maioria congressual mais facilmente (ou, ao menos, uma minoria qualificada).

No entanto, toda discussão a respeito de nosso deficit democrático deve partir da constatação da baixa participação popular nos processos decisórios de governo.

A democracia parlamentar liberal quer nos fazer acreditar que a participação popular deva se resumir, em larga medida, à criação de coeficientes eleitorais em épocas de eleição. Ela não percebe que o verdadeiro desafio democrático consiste na criação de mecanismos de ampliação da democracia direta, seja através da generalização de plebiscitos, seja através da regionalização dos processos de decisão sob a forma de conselhos populares.

Tal criação é a condição para o engajamento da população nas práticas sociais de gestão. Só uma patologia própria ao pensamento conservador pode defender que o aumento da participação popular equivale a um risco à democracia. Como se a boa democracia fosse aquela que conserva o povo a uma distância segura através dos mecanismos de representação.

Contra isto, talvez seja o caso de dizer claramente que a verdadeira democracia é medida pela possibilidade dada ao poder instituinte popular para manifestar-se, mesmo que seja criando novas regras e instituições.

Pois há uma plasticidade política própria à vida democrática que só aqueles que temem a construção de uma democracia efetiva compreendem como “insegurança jurídica”.

VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP


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Comentários

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Eduardo

Puxa! Tenho uma idéia melhor ainda, que facilitaria ainda mais o Executivo: vamos dissolver o congresso! Assim fica ainda mais fácil de o "fragilizado" governo (coitadinho), fazer o que quiser.

Emmanuel

Certamente os DEMO/TUCANOS nunca aceitarão uma Constituinte excluiva. A constituinte exclusiva, se bem lembrarem, tem cheiro de povo. Figueredo já havia dito que "tem nojo do cheiro de povo". Os demo, tem sua origem na Ditadura. Os tucanos, na elite Paulista. Pois é, resta a nós mortais construir maioria no Congresso para convocar a Constituinte. Só assim um dia poderemnos sonhar com uma Democracia Direta. Alias, a Democracia Direta, é a derrota completa aos Neo-Udenistas. Pensem que uma constituinte exclusiva pode avançar além e muito além….

Baixada Carioca

O professor disse

No entanto, é interessante perceber como a maioria das propostas (quando elas, de fato, aparecem) resume-se à discussão de questões que não tocam o fundamento do problema.

.

Eu digo que esse debate só acontecerá quando for convocada uma Constituinte para as reformas necessárias. Tanto a política quanto a previdenciária e a judicial. Eu defendo que os candidatos a Constituinte seja obrigado por força do papel a ficar inelegível por 4 anos a partir da promulgação das reformas, isso desestimulará os carreiristas e oportunistas. Só quem tem interesse nas reformas serão candidatos e, então, o debate acontecerá. Fora isso não serão reformas, mas remendos mal formulados.

Edinho

Muito bom artigo!
Melhor ainda ainda a discussão proposta, mas pergunto: construiremos esta evolução ou o medo do povo dos nossos "democratas" superará os anseios pelo aperfeiçoamento democrático?

Iowa

"a verdadeira democracia é medida pela possibilidade dada ao poder instituinte popular para manifestar-se, mesmo que seja criando novas regras e instituições"

Simplesmente sensacional e verdadeiro…

andrecsantos

Uma Democracia onde não se discute política!… é o que temos… Sugiro leitura… http://fanfraria.wordpress.com/2010/08/31/apedrej

Marcus

CERTIFICADO DIGITAL 1/3____Devo dizer que a PARTICIPAÇÃO DIRETA da população É POSSÍVEL TÉCNICA E ECONOMICAMENTE!!!____Há alguns anos o Brasil normatizou um treco chamado CERTIFICADO DIGITAL!____Pelo certificado digital é possível assinar documentos e transmití-los via internet.__É possível identificar a pessoa que enviou o documento.____Ao mesmo tempo o Certificado Digital pode tornar um determinado documento sigiloso. ____O que isso tem a ver com plebiscito?__Com o Certificado Digital é possível votar de casa, de uma Lan House, de fora do país.__Com o Certificado Digital é possível reconhecer apenas um voto por eleitor e garantir o sigilo.____O Certificado Digital no Brasil foi alavancado principalmente pela Receita Federal que busca aumentar os serviços pela internet com a certeza que o contribuinte é ele mesmo.____Assim foram confeccionadas leis que garantem ao documento fechado com o tal Certificado Digital o valor de documento legalmente assinado.____Para fazer uma eleição ou um plebiscito não é mais necessário parar o Brasil!__Fazer todos irem em determinado momento a um determinado local.

Marcelo Fraga

Eu não sabia que existia vida inteligente na Folha. Impressionante é o bom senso e a clareza de pensamentos do articulista. Eu sinceramente acredito que a REAL consolidação da democracia no Brasil se dê através de medidas como a generalização de plebiscitos e referendos, além de criação de conselhos regionais populares. Entretanto, ainda não tenho opinião formada sobre o vencedor levar a maciça maioria das cadeiras das Câmaras. Acredito que sempre deve haver um contra-peso.

Marcus

CERTIFICADO DIGITAL 2/3

Com essa tecnologia “só” precisamos que a internet chegue a todos os cantos do país. Poderíamos votar em nossa casa, numa Lan House ou mesmo em viajem fora do país!!!

O que é necessário?
1 – cartão com certificado digital
2 – um computador (ou mesmo um celular)
3 – internet em todo o Brasil (mesmo que em alguns lugares tenha apenas na prefeitura por exemplo)

Os plebiscitos poderiam ocorrer em qualquer dia da semana e a votação poderia ficar aberta durante vários dias. Não haveriam filas para votar. Seria altamente econômico e ágil se fazer um plebiscito.

Sou a favor do aumento em massa dos plebiscitos. A tecnologia possibilita novamente a democracia direta.

Uma questão importante é a mídia corporativa mercantilista que existe hoje. Mas acredito que a mídia, mais e mais se torne difusa, reduzindo esse impacto da manipulação viciada.

Marcus

CERTIFICADO DIGITAL 3/3

Com essa tecnologia, poderíamos mudar completamente também a forma da democracia indireta.

Como assim?

Em vez de elegermos deputados/senadores/vereadores por prazo determinado e número de cadeiras limitadas, podemos com o certificado digital apontar quem seria nosso "procurador". A partir do momento em que o "procurador" não o agrade mais, você pode mudar para outro em que confie mais ou que seja mais alinhado ideológicamente. Além disso, poderia-se determinar procuradores diferentes para cada plebiscito ou por assunto, selecionando quais seriam os seus representantes para tratar de leis sobre saúde diferente daqueles que tratam sobre direito trabalhista etc.

Tornaria a nossa democracia muito mais dinâmica e mais real.

PS: no site da Receita Federal, se você dispuser de um certificado digital, você pode nomear seus procuradores pelo site. Tem o mesmo efeito de um documento assinado e com firma reconhecida em cartório. É a lei.

Abraços, por um democracia verdadeira.

    Baixada Carioca

    Mas o procurador nesse caso não funciona como um parlamentar temporário? E como o descredenciamento do "procurador" se daria? Tá difícil de entender essa de apontar alguém por meio de certificado digital…

Helcid

… ficamos numa sinuca de bico aqui em Minas:
http://linguadetrapo.blogspot.com/

Não estou entusiasmado com a disputa aqui em Minas. O leque de opções, quer na disputa pelo governo, quer na disputa pelo senado, é desanimador. Para o governo, o Anastasia – a continuidade do governo Aécio, que mais se destaca pela publicidade do inexistente e pela fantasia do que por realizações – e o Costa – ambíguo e inseguro. Paro o Senado, Aécio, Itamar e Pimentel estão na dianteira da disputa. Pimentel, um tucano filiado ao PT, é – no meu entendimento – o maior responsável pelo enfraquecimento da esquerda mineira, que, diga-se, nunca foi tão forte assim. Desde que, juntamente com o seu grupo no PT, se alinhou com o PSDB de Aécio para eleger o prefeito de Belo Horizonte, Pimentel trincou uma aliança vitoriosa que vinha a frente da capital mineira há mais de uma década com uma administração exemplar.

Ideologicamente, Anastasia, Aécio, Itamar, Pimentel parecem estar do mesmo lado: neoliberais, que querem administrar o estado como se uma empresa fosse. Mas o estado não é uma empresa, é preciso que alguém diga isso a eles. O Choque de gestão de Aécio e Anastasia – propagandeado em prosa, verso e mímica – é arrocho salarial para servidores, é redução de investimentos em educação e saúde, é propaganda com atores globais, cujos cachês elevados são custeados pelo dinheiro público. Diante do triste cenários que se me apresenta, pensei em anular o voto para governador e evitar os três primeiros colocados para o senado. Agora, ando refletindo se não é hora de romper com a dominação tucana em Minas. Ainda não decidi, mas o Hélio Costa tem errado feio na sua campanha. Em lugar de apresentar propostas concretas e marcar a diferença entre ele e seu adversário ou entre seu possível governo e o governo de seus adversários, ele segue elogiando o Aécio, repetindo um mantra que a imprensa mineira não cansa de repetir há oito anos.

Necessário esclarecer para o eleitor o que é o tal Choque de gestão, mostrar que a única política expressiva na área de saúde do governo Aécio é o fornecimento de ambulâncias, que os profissionais de educação e saúde em Minas são mal remunerados, que os gastos com publicidade são exorbitantes, que a administração mineira foi privatizada e tratada como uma empresa pelo governante. Como se pode depreender não morro de amores pelo governo Aécio.

Mas não se trata de implicância gratuita. A discrepância entre o que o rapaz fala e o que faz é muito gritante. A publicidade governamental aliada a uma proximidade promíscua com a imprensa mineira criou o mito, a fábula Aécio, sobre o qual só se vêem elogios, louvação e aplausos. Não se encontra uma linha, uma sílaba, um ruído na imprensa que deponha contra o neto de Tancredo. Tudo que ele diz e faz aparece na imprensa mineira como produto de uma intangível genialidade, cálculos políticos de alta complexidade.

Desideologizado e politicamente medíocre, este é o mito criado e construído como a promessa de Minas para o futuro.

Helcid

… e enquanto isso, a mídia não muda seu "modus operandi":
http://www.tijolaco.com/?p=24439

"Em tempo de guerra, boato é como terra"

A frase aí em cima, um ditado gaúcho muito citado por meu avô, define bem o que esperar do noticiário neste mês final de campanha, com a parada quase perdida para as forças da direita.

É o caso da matéria publicada hoje, pelo jornal O Globo, sem sequer uma fonte expressamente citada, especulando como seria uma eventual reforma previdenciária num futuro Governo Dilma.
Qualquer pessoa de bom-senso vai verificar que, nesta reta final de campanha, Dilma e sua equipe mais próxima pode estar pensando em tudo, menos em detalhar planos de Governo. Se alguém, em alguma área da administração, o e está fazendo, está fazendo por conta própria. Aliás, ontem, Dilma teve de dar entrevista para dizer que quem andar se assanhando para responder por algo em um futuro governo seu está absolutamente desautorizado.
Claro, porém, que a direita – que só bateu palmas para as reformas previdenciárias de FHC, inclusive com aquela do “aposentado vagabundo” – agora posa de defensora dos aposentados. Se a Previdência precisa de reformas, isso é tarefa do próximo Governo e dependerá muito do Congresso a ser eleito.
Se conseguirmos construir um núcleo trabalhista sólido, com os vários partidos de esquerda, Dilma terá condições de negociar uma reforma que não prejudique os trabalhadores, acabe com os ralos de corrupção que ainda existem na Previdência mas, sobretudo, aposte no que é mais eficar para que o déficit previdenciário seja extinto, que é a formalização crescente das relações de trabalho.
Quem avançar o sinal, querendo definir uma agenda para Dilma, já está avisado: vai cair do cavalo.

Ed.

Já na década de 1990 comentava com amigos que a Internet, ainda sem (micro)blogs, redes sociais, chats e pesquisadores avançados, You Tubes, Wikis e quetais, ainda traria também uma revolução politica, intensificando a governança direta, em vez de puramente representativa (com todas as suas mazelas)…
O pessoal me taxava como "maluco beleza" tecnopolitico…
Hoje, cada vez mais acredito que, de alguma forma e em algum tempo, isto paulatinamente se consolidará…

    Helcid

    Ed., acredito que já tornou-se um diferencial, pelo que comento com meus amigos e colegas !!

    Ed.

    Certamente, Helcid, já é mesmo!
    Mas note que refiro-me à um futuro "parlamento digital", sem intermediários, como vereadores, deputados e senadores e toda a enorme e custosa estrutura 90% autocentrada…
    A praça institucional e universal onde todos selecionam, opinam e decidem!
    Águas vão rolar ainda, mas esta viagem já começou…

    ValmontRS

    Na entrevista que li no Carta Maior, Fidel Castro mostra-se encantado com as mudanças notáveis introduzidas pela Internet no mundo. Ele destaca a derrocada da grande mídia (pilar do autoritarismo), seja a transnacional, seja aquela que identificamos aqui como PiG. O velho é esperto.

    Baixada Carioca

    Realmente é questionável haver tantos documentos para um mesmo cidadão: RG, CPF, Título, PIS/PASEP, Certificado de Reservista, Passaporte… O Congresso Nacional disse ao TSE que o documento que eles emitem não vale nada, portanto, quando o cidadão for votar tem que apresentar um que valha além daquele que o TSE emitiu. Porque ainda não temos um único documento que reúna todas as informações?

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