Tereza Campello rebate “ajuda” da primeira-dama: “Assistência social não é caridade ou filantropia. É obrigação do Estado”

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Tereza Campello e Marcela Temer 2

Entrevista

Tereza Campello: “A chance de o Brasil voltar ao Mapa da Fome é enorme”

Com a PEC 241, o País pode chegar a 2036 com metade dos recursos para a assistência social que tinha nos anos 1990, alerta a ex-ministra

por Tory Oliveira, em CartaCapital, 26/10/2016 a 

O congelamento de gastos públicos por 20 anos,  aprovado pela Câmara  na terça-feira 25, ameaça o conjunto de políticas que permitiu a ascensão social de milhões de brasileiros ao longo dos últimos anos, avalia a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello. “Com a PEC 241, chegaríamos em 2036, na melhor das hipóteses, com recursos que tínhamos no inicio dos anos 1990”, alerta.

Economista de formação e uma das idealizadoras do programa Bolsa Família,  Campello explica que, como se trata de um setor menos consolidado no Brasil do que a saúde e a educação, por exemplo, a assistência social estará mais vulnerável às investidas do aperto no orçamento.

“A chance de o Brasil voltar ao Mapa da Fome  é enorme”, afirma Campello. “Tem uma frase muito forte que diz que problema social não é erradicado. Você não erradica a fome, ela pode voltar a qualquer momento, basta descuidar dessa situação”.

CartaCapital: O que representa a PEC 241 para a assistência social?

Tereza Campello: É o enterro do que a Constituição estabeleceu como perspectiva para a política social no Brasil. No caso da assistência social, chegaremos, na melhor das hipóteses, com recursos que nós tínhamos no início dos anos 1990. É um retrocesso muito grande, considerando o quanto pudemos avançar nesse período.

De todas as políticas previstas na Constituição, eu diria que a assistência social é a mais vulnerável ao sucateamento. Apesar de ser uma área de atuação muito antiga no País, é recente a concepção de que se trata de um direito universal, de que o Estado é obrigado a ofertar esse tipo de política a todo cidadão.

Quem de fato fica vulnerável é a população mais pobre, as crianças em situação de violência, as mulheres, a população de rua. Com o congelamento dos recursos, todas as áreas serão impactadas, mas áreas mais consolidadas como política pública, a exemplo da saúde e da educação, têm mais condição de resistir. De acordo com os estudos feitos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ao final de 2036, os gastos na área social encolheriam para 0,7% do PIB. Em 2015, eles representaram 1,26%.

CC: Os estados e municípios também podem ser afetados?

TC: Sem dúvida. Na assistência social, o principal operador é o município. Está nas mãos dos prefeitos a execução das políticas sociais, a exemplo dos abrigos para crianças em situação de rompimento de vínculo familiar. O governo federal ajuda a custear, mas esse co-financiamento vai desaparecer. Acho que os novos prefeitos que assumirão em 2017 não estão cientes dessa realidade com a qual vão se deparar.

Os prefeitos precisam se dar conta que os recursos para a assistência social ficarão completamente comprometidos, pode ser preciso cortar benefícios do Bolsa Família.  Hoje, há uma grande rede de assistência co-financiada pelo governo federal, que são os Centros de Referência em Assistência Social, construídos ao longo dos últimos 10 anos.

São mais de 10 mil equipamentos no Brasil que o governo federal ajuda a financiar. Esse financiamento tende a desaparecer. Se isso acontecer, será muito grave, porque todo o encargo passará a ser responsabilidade do município, já que os governos estaduais financiam muito pouco.

CC: Além da PEC 241, que outros aspectos da política de assistência social do governo Temer chamam a atenção?

TC: Se observarmos o lançamento do programa Criança Feliz, feito pela primeira-dama Marcela Temer, duas coisas despertam a atenção. Uma é o retorno do chamado “primeiro-damismo”. Com a Constituição de 1988, a assistência social passou a ser política pública exercida por profissionais, multidisciplinares, mas com formação e competência técnica. É uma volta ao cenário anterior aos anos 1950, quando a assistência social era vista como ação filantrópica exercida pelas primeiras-damas, e não uma obrigação do Estado.

A outra questão, presente no discurso da primeira-dama, é a ideia de “ajuda”. Ela disse que fica muito feliz em ajudar os outros. A Constituição fala claramente em direitos do cidadão. Não se trata de buscar felicidade ou recompensa por ajudar os outros, é uma obrigação do Estado e precisa ser prestada de forma profissional. Não é caridade ou filantropia.

A PEC 241, por sua vez, é a maior prova do golpe. Coloca-se uma pedra em cima de tudo o que foi feito, a toque de caixa e sem discussão com ninguém. Para quê? Para consumar o golpe. Não é um golpe na presidenta, na minha opinião, é um golpe nos mais pobres.

CC: O Bolsa Família também está ameaçado?

TC: Está ameaçado sim. Teoricamente, a partir da metade da década de 2020, ele também estará extinto. Ou então o governo federal terá de fazer um mix de cortes, os serviços de assistência social ficarão muito limitados. Podemos começar a fazer as projeções de quando o Brasil retornará ao ao Mapa da Fome das Nações Unidas ou quando veremos um enorme contingente de jovens, crianças e famílias desassistidos, uma vez que os municípios terão muita dificuldade em manter esses serviços.

CC: O Bolsa Família sempre foi alvo de criticas de setores da elite e da classe média. Recentemente, o ministro do STF Gilmar Mendes o associou a uma “compra de votos institucionalizada”. O que explica essa reação tão visceral a uma politica social?

TC: Acho que o Bolsa Família é um símbolo maior do que ele mesmo. Quando as pessoas falam do programa, estão falando de um conjunto de políticas que estão muito além dele. Boa parte da resistência deriva da falta de informação e da ignorância. Muitos ainda acreditam que uma pessoa é pobre porque não se esforçou.

Os americanos falam muito de “loser” ou “lazy”, perdedores e preguiçosos. Esse conceito, no Brasil, não cabe. Todos os estudos de referência comprovam que os pobres trabalham muito. Essa ideia talvez faça sentido em países muito ricos, onde há muitas oportunidades e alguns cidadãos, por escolhas próprias, resolvem ficar em casa sem trabalhar. No Brasil, quem resolve não trabalhar, em geral, é filho de quem tem renda. Com a população pobre, ocorre o exato oposto. Vemos o pai, a mãe e as crianças trabalhando para garantir o sustento da família.

Esse tipo de preconceito que vem sendo nutrido, com apoio de setores da mídia, que divulgam conceitos muito atrasados, alimenta a falácia de que o pobre é preguiçoso. Não é verdade. Nos últimos anos, o Brasil praticamente erradicou o trabalho infantil. Preocupa-me muito a perspectiva de muitas crianças pobres voltarem a essa situação.

Outra tese sem o menor fundamento é dizer que os pobres querem ter mais filhos para receber mais benefícios. É uma ideia cientificamente absurda, fruto do preconceito e da ignorância. As estatísticas revelam exatamente o oposto. A taxa de natalidade caiu em todas as classes sociais, ano a ano. Considerando um período de 10 anos, entre 2004 e 2014, justamente o período em que o Bolsa Família foi construído e se expandiu, a taxa de natalidade caiu  10% na média geral, de todas as classes sociais. Entre os mais pobres, a redução foi de 17%. E entre os mais pobres do Nordeste, a taxa caiu 20%.

CC: O IPEA estima uma perda para a assistência social de 868 bilhões de reais nos 20 anos de vigência da PEC. O que, na prática, isso significa?

TC: Estão em risco 10 mil centros de referência de assistência social e especial. Outra coisa que nos apavora: parte do que é feito hoje de ação no semiárido Nordestino é de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social. Construímos 1,2 milhão de cisternas na região, mas ainda falta. Parar esse programa significa relegar à falta de água, portanto, à Idade Média, milhares de mulheres, crianças e escolas.

Isso vai continuar? É incerto. O Programa de Aquisição de Alimentos, que foi copiado por todos os países da América Latina a agora também na África, está dentro do mesmo guarda-chuva. Ele está ameaçado também? Se a PEC 241 passar, acredito que sim. Por isso eu digo: a chance do Brasil voltar ao Mapa da Fome é enorme. Tem uma frase muito forte que diz que problema social não é erradicado. Você não erradica a fome, ela pode voltar a qualquer momento, basta descuidar dessa situação.

CC: O que está por trás da PEC? Adesão irrestrita ao neoliberalismo?

TC: Com certeza. A PEC 241 parte do princípio de que o eventual desequilíbrio nas contas é fruto de gastos na área social. É mentira! O gasto na área social é bom para a economia. A redução da desigualdade é boa para o desenvolvimento econômico, o próprio Banco Mundial reconhece. No caso do Bolsa Família, a cada real gasto no programa, retorna 1,75 para a economia. Há um efeito multiplicador sobre o PIB, benéfico para a economia. Se jogar a população no abandono, na pobreza e na fome, será ruim para todos.

CC: Qual é a alternativa para equilibrar os gastos?

TC: Vários caminhos poderiam ser trilhados. Um deles é rever o conjunto das políticas de isenção fiscal. Por um período, essas renúncias representaram um esforço para dinamizar a economia, mas não surtiu o efeito esperado. As indústrias, ao invés de reduzir o preço para aquecer a demanda, se apropriaram dessa redução de impostos como lucro. Acho que essas são questões que deveriam ser pensadas logo de início, antes de querer repassar a conta da crise aos mais fracos.

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Ivanisa Teitelroit Martins

Sou gestora de carreira do Ministério do Planejamento, aposentada em 2013. Trabalhei com Tereza Campello na Casa Civil em 2007. Depois que escrevi esse artigo quando participei do Forum Nacional da Previdência Social, representando a Casa Civil, Miriam Belchior, minha chefia, à época, me deu quatro dias para desocupar minha mesa. Tereza Campello se omitiu mesmo após termos debatido a questão de que era urgente prevenir a sustentação do modelo de seguridade social. À época a ANFIP em documento analítico já havia alertado para a ameaça de desconstrução do sistema de seguridade social por conta dos interesses do mercado financeiro. Não foi por falta de informação e assessoramento que houve a descontrução da seguridade social e do Estado do Bem Estar Social no Brasil.

Seguridade Social, um patrimônio nacional

No Brasil, a partir do Fórum Nacional de Previdência Social, foram lançadas as bases do plano nacional de seguridade social. As reuniões do Fórum foram realizadas entre março e outubro de 2007. Extremamente representativo, congregando todas as centrais sindicais, as confederações patronais e os diversos setores do governo, os debates no Fórum representaram a perspectiva de um novo patamar para a adoção do modelo nacional de seguridade social.

Um plano nacional de seguridade social abrangente deve estar integrado a outras medidas de proteção social e adequar-se a outras políticas de modo a expandir a cobertura e garantir que os recursos sejam redistribuídos aos grupos de mais baixa renda. Muitos sistemas de seguridade social em países em desenvolvimento não são efetivos porque foram copiados de outros países, sem os devidos arranjos nacionais. Mas este não é ou não deveria ter sido o caso da seguridade social brasileira.

A Constituição de 1988, no capítulo da ordem social, foi explícita sobre os princípios que devem reger um plano de seguridade social.
Estes princípios foram formulados de modo a desenvolver um novo modelo nacional de seguridade social. Porém, sua materialização foi sendo adiada durante 20 anos. Ao invés de trilharmos o caminho da expansão da cobertura e da inclusão de trabalhadores urbanos, rurais e sem vínculo formal, as reformas do sistema promoveram a redução da base contributiva e da cobertura e, por conseqüência, a redução do valor dos benefícios.

Os argumentos que sustentaram as reformas do sistema previdenciário se basearam nos ciclos econômicos, no mercado de trabalho e no perfil demográfico da população, fatores históricos que determinam a necessidade de mudanças. A prática se justificou pelo argumento da sustentabilidade fiscal e, sem dúvida, foi fortalecida pela adoção da política de ajuste fiscal, em anos anteriores.

No entanto, os princípios constitucionais não foram alterados, o que permitiu seu resgate no Fórum Nacional de Previdência Social. São princípios de natureza redistributiva, no que se refere à concessão de benefícios e, principalmente, no que se refere à concepção da base de financiamento – contribuição de natureza social que deliberadamente se distingue do financiamento por tributação, que é de ordem fiscal. Portanto, ao alterar a lógica fiscal pela lógica da contribuição social, altera-se a lógica do sistema como um todo, e se garantem direitos associados ao exercício do trabalho protegido pela cobertura dos riscos inerentes de desemprego, doença, acidente, velhice e morte. A base de financiamento foi composta de diversas fontes, com flexibilidade suficiente para manter um sistema de contribuição equânime, privilegiando a igualdade progressiva de benefícios entre trabalhadores urbanos e rurais, a partir da perspectiva inclusiva e de caráter redistributivo.

Até hoje, os benefícios destinados aos trabalhadores rurais são considerados assistenciais, pois ainda prevalece o raciocínio de que deve haver uma fonte específica para cada tipo de benefício. E o resultado é que não conseguimos incluir socialmente trabalhadores rurais. Sem falar que 67% dos benefícios previdenciários são de até um salário mínimo.

O Fórum Nacional de Previdência Social trouxe uma grande novidade. Restabeleceu princípios e procurou articular os programas de transferência de renda às políticas de seguridade social. O Programa Bolsa Família vem sendo elogiado internacionalmente, e seus parâmetros têm servido de modelo para outros países, inclusive para aqueles do chamado campo do desenvolvimento. O impacto efetivo do maior programa de transferência de renda lançou as atenções também para os benefícios de prestação continuada aos idosos e às pessoas com deficiência que, também, têm impacto sobre a redução da desigualdade social e sobre a reativação da economia dos pequenos municípios.

Ainda há aqueles que se referem ao conceito de seguridade social como próprio das políticas sociais do pós-guerra, o Welfare State. Mas os debates no Fórum defenderam o modelo proposto há 20 anos que foi formulado pelos especialistas brasileiros. Somente a partir de 2001, os países europeus passam a debater um modelo semelhante denominado de Workfare State. Há contradições internas com o modelo em debate, mas sua base de pensamento é o trabalho e não somente o equilíbrio financeiro.

O resgate do modelo nacional de seguridade social só foi possível porque a prática governamental possibilita o diálogo social que privilegia o trabalho e a inclusão social e produtiva. A seguridade social é uma das políticas públicas que compõem o conjunto. Associada ao crescimento econômico, à política universal de educação, ao crescimento da produção e do emprego formalizado, finalmente o sistema de seguridade social se desenvolverá em condições inquestionavelmente sustentáveis.

Ivanisa Teitelroit Martins é mestre em planejamento e política social

(artigo publicado no Jornal do Brasil em 18 de fevereiro de 2008)

Ivanisa Teitelroit Martins

Tereza Campello não é uma das idealizadoras do programa Bolsa Família. A formulação do programa de renda mínima ocorreu em reunião de 1993 entre todos os representantes do governo Itamar Franco quando o senador Eduardo Suplicy, à época, diante da aprovação no Senado do programa de renda mínima nos expôs sua concepção. Após debate em que eu representava o Ministério do Planejamento ficou acertado que seria encaminhado projeto de Lei ao Congresso que contemplaria as famílias de baixa renda que mantivessem seus filhos na escola e tivessem assistência à saúde. Na época pensou-se o programa para atender famílias com jovens de até 15 anos de idade. Quando em 2005 fui secretária parlamentar do líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante, encaminhei ao Senador projeto de Lei com o devido impacto financeiro-executivo para a criação do programa Bolsa Jovem que veio a ser agregado ao Programa Bolsa Família, por determinação do presidente Lula, estendendo sua cobertura às famílias com jovens de até 17 anos. No anteprojeto que apresentei o programa Bolsa Jovem seria um benefício destinado diretamente ao jovem de até 19 anos, de caráter emancipatório, para que ele pudesse estender seus estudos e tivesse a oportunidade de ingressar na universidade. O presidente Lula preferiu manter a destinação do benefício à mãe para que o jovem permanecesse junto à sua família.

FrancoAtirador

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Fala Ciro Gomes!

“Tão dizendo que o Brasil perdeu
o Controle da Despesa Pública.
ISSO É MENTIRA!”

https://youtu.be/PfPZtnM6zaw
http://aesquerdavalente.blogspot.com.br/2016/10/ciro-gomes-critica-entrega-do-pre-sal-e_19.html
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José Fernandes

Vamos voltar no tempo, há exatos 30 anos ou mais o Brasil vivia arrecadando alimentos no final de todo ano principalmente no Sul e Sudeste para amandar pro famintos do Norte e Nordeste, com a ajuda do nosso Querido Betinho que foi um dos criadores da campanha contra fome.,… Anos mais tarde veio um governo e consegui tirar o Brasil do mapa da fome. Não mais teríamos de fazer campanha para arrecadar alimento para mandar pro nossos irmão Nordestino, pois o Brasil entrara em um novo ciclo, o Nordeste e todo Brasil tinha superado essa triste realidade.
pelo andar da carruagem vamos voltar no tempo…..Ah eles conseguiram. pena que não temos mais o Betinho

mauro silva

vendo essa foto de marcela penso numa frase de billi Wilder e no vácuo, perfeitamente aplicável ao caso.

Regis

bom dia, Professora Helena, ops, Marcela! como vai seu dia de Xúgar Beibi?

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