Sérgio Amadeu: As big techs integram hoje o aparato de poder dos EUA

Tempo de leitura: 4 min

As big techs integram o aparato de poder dos EUA

Assim como as petroleiras e o setor financeiro atuaram com os EUA na era industrial, as Big Techs são as grandes parceiras hoje do projeto de poder dos EUA

Por Sérgio Amadeu, no Opera Mundi

Em março de 2014, meses após Edward Snowden denunciar o esquema de vigilância massiva e espionagem global praticadas pela NSA (National Security Agency), o então presidente Barack Obama convocou uma reunião com alguns líderes das grandes empresas de tecnologia.

Estavam presentes Mark Zuckerberg (Facebook), Eric Schmidt (Google) e outros.

A imprensa divulgou que o presidente norte-americano tentava acalmar os líderes das empresas de tecnologia que tiveram sua confiança abalada pelas denúncias de espionagem de seus usuários.

Alguns CEOs das Big Techs apareceram publicamente indignados com a permanente coleta de informações dos seus clientes.

Dirigentes da Microsoft e da Apple se mostraram surpresos com o esquema de captura de dados das populações sem que elas tivessem conhecimento e sem contar com o seu consentimento. Estranho.

Repentinamente, os executivos das Big Techs aparentavam ter descoberto o que todos os especialistas acadêmicos já desconfiavam. Eram ingênuos? Não sabiam de nada? Isso parece pouco provável.

Na realidade, cada vez mais as Big Techs e suas plataformas integram o sistema de segurança e de manutenção de poder global dos Estados Unidos.

Em 2013, Eric Schmidt tinha escrito, em parceria com Jared Cohen, assessor de segurança da Casa Branca, o livro The New Digital Age: Reshaping the Future of People, Nations and Business. Schmidt defendia que empresas como o Google tivessem assento no Conselho de Segurança dos Estados Unidos.

O livro trazia o cenário presente e o futuro das redes, além de uma série de proposições. A impressão é que Cohen e Schmidt tentaram lançar algo como o Príncipe Digital, uma versão da obra de Maquiavel para o século XXI. O texto era endereçado aos que decidem sobre os rumos da Casa Branca.

Schmidt e Cohen descreveram que o marketing é vital para os Estados nacionais e que as disputas dependeriam de quem tem o melhor uso dessas técnicas de disputa da opinião pública. Com uma narrativa bem relativista, utilizaram até mesmo um termo pouco usado em 2013: a desinformação.

Expuseram também um cenário em que os conflitos digitais, ataques cibernéticos, de negação de serviço de infraestruturas acessíveis pela internet exigirão um aperfeiçoamento das atividades e organizações de segurança.

No capítulo 6, intitulado The Future of Conflict, Combat and Intervention, os dois oráculos do Vale do Silício retrataram algo demasiadamente esclarecedor:

“Grupos em conflito tentarão destruir as capacidades de marketing digital uns dos outros antes mesmo de o conflito começar. Poucos conflitos são claramente preto no branco no final – muito menos quando começam – e esta quase equivalência no poder das comunicações afetará decisivamente a forma como os civis, os líderes, as forças armadas e os meios de comunicação social lidam com o conflito. Além do mais, o próprio fato de qualquer pessoa poder produzir e partilhar a sua versão dos acontecimentos irá, na verdade, anular muitas reivindicações; com tantas contas conflitantes e sem verificação confiável, todas as reivindicações ficam desvalorizadas. Na guerra, a gestão de dados (compilação, indexação, classificação e verificação do conteúdo proveniente de uma zona de conflito) sucederá em breve ao acesso à tecnologia como desafio predominante”.

 Assim como as petroleiras e o setor financeiro atuaram com os EUA na era industrial, as Big Techs são as grandes parceiras hoje do projeto de poder dos EUA. (Foto: RawPixel.com)

Como é perceptível, o texto evidencia que não existe ingenuidade entre os executivos do Vale do Silício.

Não por acaso, Schmidt articulou o Defense Innovation Board (Conselho de Inovação em Defesa), em agosto de 2016, “para levar a inovação tecnológica e as melhores práticas do Vale do Silício às Forças Armadas dos EUA”.

Eric Schmidt dirigiu o Conselho da sua fundação até setembro de 2020. O governo norte-americano parece estar convencido mais do que nunca do papel fundamental das Big Techs para manter sua estrutura global de poder.

No final de abril último, o governo dos EUA formou mais um conselho de IA. Dessa vez incluiu Satya Nadella da Microsoft, Sundar Pichai da Alphabet, Sam Altman da OpenAI, Jensen Huang da Nvidia e 18 líderes empresariais de grandes corporações de capital norte-americano.

O anúncio do Conselho foi feito com a definição de sua missão, que seria priorizar a segurança e proteção de infraestruturas críticas dos Estados Unidos contra ataques baseados em IA.

Evitar que redes elétricas, aeroportos e infraestruturas de transporte, serviços financeiros, agricultura e alimentação sejam atacados é uma preocupação de defesa dos Estados Unidos.

Entretanto, cabe às Big Techs muito mais do que atuar sugerindo medidas para o U.S. Homeland Security Department (Departamento de Segurança Interna dos EUA – DHS). Atualmente, esses gigantescos oligopólios digitais integram o aparato de decisão e de atuação global dos Estados Unidos.

A NSA e a CIA continuam coletando dados de todas e todos que utilizam seus serviços e redes de interações das plataformas digitais. As denúncias de Snowden nunca foram tão atuais.

Assim como as empresas de petróleo e o capital financeiro atuaram em sintonia fina com o Departamento de Estado norte-americano durante a era industrial, as Big Techs são as grandes parceiras do projeto de manutenção do poder global dos Estados Unidos.

Afinal, essas corporações possuem o principal ativo da nossa economia: os dados, que também são o insumo da Inteligência Artificial realmente existente.

* Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É professor-adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC). Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil.

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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