Roberto Amaral: O labirinto do Brasil por ser

Tempo de leitura: 7 min
O presidente Lula com os do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara, Hugo Motta. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

O labirinto do Brasil por ser

“Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo.” Darcy RibeiroO povo brasileiro.

Por Roberto Amaral * 

A ordem político-institucional herdada da reconstitucionalização de 1988 foi posta em recesso com o impeachment de Dilma Rousseff. Morria ali a Nova República anunciada por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves.

O golpe de Estado de 2016 se consolidou com o regime-tampão do vice perjuro, ponte para a ascensão do neofascismo, pela vez primeira no Brasil a escalar o poder pela via eleitoral.

A ordem político-institucional herdada da reconstitucionalização de 1988 foi posta em recesso com o impeachment de Dilma Rousseff. Morria ali a Nova República anunciada por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. O golpe de Estado de 2016 se consolidou com o regime-tampão do vice perjuro, ponte para a ascensão do neofascismo, pela vez primeira no Brasil a escalar o poder pela via eleitoral.

O presidencialismo espatifa-se como bola de cristal caída ao chão e, com seus estilhaços, a direita concerta o quebra-cabeça como novo Leviatã: poderoso mostrengo que devora as instituições republicanas e impõe a ingovernabilidade como estágio preparatório do caos, indispensável para a revogação do que ainda podemos chamar de “ordem democrática” – frágil, nada obstante sua permanente conciliação com o grande capital, no que se esmera o atual Congresso, implacável no desmonte do que quer que seja que possa sugerir um Estado de bem-estar social.

Esta é a circunstância que nos domina: um Poder Executivo acuado, impedido de exercer o dever da governança; um Legislativo que não arrecada, mas é senhor dos gastos; uma democracia representativa que prescinde da soberania popular.

Um Executivo se esvaindo numa sangria de poder que parece não ter fim, prisioneiro de um Congresso abusivamente reacionário, na tocaia contra qualquer sinal de avanço civilizatório.

Apoie o VIOMUNDO

Em seu nome fala e age sua escória, chorume poderosíssimo que não cessa de crescer em número de militantes, em ousadia e em chantagens contra o governo. O quadro funesto se completa com uma Faria Lima descolada do país e de seu povo: seus interesses deitam raízes em Wall Street.

Lição dos dias que demoram a passar: no Brasil de hoje, em cenário no qual o centro e a social-democracia (depois da falência dos liberais) aderiram ao conservadorismo larvar, a direita e a extrema-direita governam independentemente do resultado das eleições que ainda se realizam – as quais, assim, deixam de ser decisivas, e sobretudo deixam de ser instrumento de mudança, pois qualquer mudança que não aprofunde a exploração de classe será vista como subversiva da ordem na qual a classe dominante (que também atende pela alcunha de “mercado”) se alimenta.

O processo eleitoral é mantido e, por seu intermédio, a soberania popular conserva seu direito de fala. Mas a única voz realmente ouvida é a do sistema. E assim ele é mantido porque somente são permitidas as mudanças que asseguram que nada mude. A ordem se sobrepõe ao movimento, e a promessa de futuro é a regressão.

Por fim, somos um país impedido de ser. Esta é a contradição fundamental entre a necessidade de um projeto de país – de que carecemos desde a raiz colonial – e os interesses da classe dominante, governante desde sempre. Nosso mal de origem.

O variegado campo da esquerda em crise, governante ou não, enfrenta o rescaldo de nossos erros: os muitos erros táticos e os graves erros estratégicos, como o de não havermos compreendido o processo histórico e, assim, havermos fracassado como instrumento de mudança. Nem revolução, nem reforma.

Somam-se quase quatro mandatos de quadros da centro-esquerda controlando a Presidência da República – neles vivendo a ilusória sensação de poder! – e, ao fim e ao cabo, quando os sinais de hoje sugerem novas ameaças à nossa liderança, nenhum abalo no sistema de poder temos por registrar. Permanecemos jungidos pelo patrimonialismo.

Nenhuma reforma – nem as reformas estruturais prometidas e necessárias, nem as reformas exigidas pela necessidade de modernizar o capitalismo dependente, que transita do projeto industrialista para o reino do agronegócio fundado nas exportações de commodities e matérias-primas in natura.

Nem a reforma política, nem a reforma social – razão de nossa existência. Tampouco a reforma eleitoral, ou a reforma do Judiciário, ou uma reforma fiscal que penalize o rentismo e proteja os assalariados.

Entre nós, quem faz as reformas é a direita: a reforma previdenciária, a trabalhista, a reforma administrativa (em curso) – por óbvio, à feição de seus interesses de classe.

Conservamos intocadas as estruturas herdadas em 2003, e intocadas as entregamos à direita em 2019, e caminhamos para de novo devolvê-las intocadas à direita em 2027.

Confundindo recuo permanente com habilidade política, trocamos o avanço pela conciliação e, de tanto perseguirmos acordos com as forças dominantes, nos vemos hoje apartados de nossas bases sociais originárias. Os marqueteiros do terceiro andar do Palácio do Planalto não sabem explicar a crise de popularidade do presidente Lula.

Eleito em 2022, a duras penas, mas renovando o compromisso de resgatar a imensa dívida social do Estado brasileiro, e tendo diante de si uma extrema-direita que acumulava – como acumula ainda – condições objetivas e subjetivas de voltar ao poder (assim reeditando a longa noite bolsonarista – que não pode ser esquecida, embora represente uma memória dolorosa), o presidente Lula teria tudo para não se auto imolar no altar do rentismo.

Pesaram mais, porém, as condições desfavoráveis sob as quais assumiu, e o antigo líder sindical, tido e havido como bom negociador, se afirma sobre o estadista.

O governo é presa do “ajuste fiscal” – o mantra do sistema que se impõe contra qualquer expectativa de desenvolvimento, conditio sine qua non para qualquer projeto de geração de emprego e renda, as carências fundamentais de nosso povo.

O sistema econômico é dominante porque seus mecanismos – objetivos e ideológicos – pervadem toda a estrutura econômica, social e política.

A privatização é um processo econômico, mas também um processo político-ideológico, que não se mede apenas com a transferência do controle acionário do Estado para o setor privado, mas se revela, fundamentalmente, quando a política submete a gestão pública à lógica das corporações privadas.

É a vitória do neoliberalismo regendo um governo originário das lutas dos trabalhadores, porque a esquerda no governo assimila os padrões político-ideológicos do mundo que sonha, ou sonhou, pôr por terra – como o colonizado reproduz a ideologia do colonizador, o dominado se põe a serviço do dominador – e assim caímos na cilada de aparecermos, diante do povo oprimido, como defensores da ordem que condenamos.

Sabidamente, o eixo do poder político no Brasil mudou, e o fenômeno não é de hoje. Seu ponto de referência exemplar é o golpe de 2016 – golpe parlamentar, manobra de cúpula que prescinde de fardados nas ruas e toques de recolher, e pode efetivar-se sem repressão policial.

Mas o quadro de hoje não caiu do colo dos deuses: resulta de transformações político-ideológicas fermentadas por largos anos nas bases da sociedade, para as quais não tivemos olhos para ver antes que viessem à tona e explodissem como aluvião que não cessa de crescer – e diante do qual a esquerda, em todos os seus matizes, não cessa de se surpreender. Assustada, recua.

O eixo do poder mudou porque a ordem social que lhe dá vida mudara antes, determinando uma nova correlação de forças que pode consolidar-se se não for bem compreendida para ser bem enfrentada.

Esse enfrentamento, porém, depende da capacidade da esquerda de, a partir da construção de um projeto de país contemporâneo com a realidade histórica, construir, na sociedade, uma nova maioria política.

Nestes termos, a sustentabilidade do governo, revisto, se torna necessária, e as eleições de 2026 assumem características decisivas – mas não encerram a história toda, pois permanecem tão-só como ponto de partida de um projeto de poder seguidamente desviado pelas distorções impostas pelo eleitoralismo que confunde meio com fim.

O que fazer é um óbvio ululante (aproveitando a expressão grafada por Nelson Rodrigues): fazer política.

Como nos ensinou Marx n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”

No labirinto no qual foi enredado pelas circunstâncias, Lula é um Teseu desamparado; sem o fio de Ariadne – um projeto político claro que fale ao povo – busca saída pedindo ajuda, ou benevolência, ao carcereiro mortal: a elite político-financeira que o sequestrou, e que o detesta. O 1% de rentistas que concentra aproximadamente 48% da riqueza nacional.

É hora de mudar o rumo.

***

Infâmia no Senado Federal – Enquanto o genocídio perpetrado por Israel e EUA contra os palestinos de Gaza avança sem freios, dizimando homens, mulheres e crianças que não têm a quem recorrer, nem onde se abrigar e nem para onde ir, e enquanto cresce a violência de colonos judeus contra os palestinos na Cisjordânia, o lamentável Senado que aí está teve o desplante de promulgar, no último 25 de junho, a lei que institui o Dia da Amizade Brasil-Israel – iniciativa infeliz do governo Dilma, que Lula não sancionou, mas não vetou. Trata-se de um cuspe na cara de quem sofre, direta ou indiretamente, os efeitos do genocídio palestino, primeira matança do gênero a que a humanidade assiste em tempo real, sob a cumplicidade do que ainda se chama civilização ocidental. O que a sociedade brasileira (por onde é mesmo que ela anda?) fará para compensar a infâmia?

Para não esquecer – Desde o início do genocídio em 2023, as tropas de Israel, com o apoio dos EUA e da OTAN (nomeadamente França, Grã-Bretanha e Alemanha), já mataram algo como 64 mil palestinos (The Lancet). Para escárnio do que resta de dignidade na ordem ocidental, o Estado sionista acusa o Irã invadido de “crime de guerra”.

Coronelismo, enxada e bytes – Na Câmara dos Deputados caminha a passo célere e quase despercebido o GT da Reforma Administrativa. Hegemonizado por despachantes do grande capital, aos quais se somam figuras pitorescas da “direita sem medo”, o grupo caminha para elaborar uma proposta de desmonte do Estado e precarização dos serviços públicos, tendo como alvo principal a estabilidade dos servidores, ensaiada na legislação ordinária de 1915 (lei nº 2.924) e consagrada pela Constituição de 1934. Se não for contida, a direita inflada terminará nos levando de volta ao direito colonial.

*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da  Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).

* Com a colaboração de Pedro Amaral

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

Leia também

Pedro dos Anjos: MAGArefes veem o gado minguar

Jeferson Miola: Por um referendo sobre a Lei que aumenta o número de deputados

Hugo Souza: Patos, capital do Brasil

Hugo Souza: Chocado, atônito, sem reação

Liszt Vieira: O governo Lula e sua esfinge

Heloisa Villela: Presidente Lula tem que explicar à população a luta de classes posta no Congresso. VÍDEO

Kombi Cast estreia com Bizza, Socorro e Jô, no DF: Esperança e luta em conquista. VÍDEO

Jeferson Miola: Aumento do número de deputados poderá custar quase 4 bilhões por legislatura

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Zé Maria

.
.
“O Congresso é o Mordomo da Burguesia Branca Racista”

JESSÉ SOUZA
Sociólogo e Escritor BraSileiro
Autor de “A ELITE DO ATRASO”,
“COMO O RACISMO CRIOU O BRASIL”,
“O POBRE DE DIREITA: A VINGANÇA DOS BASTARDOS”
dentre outros tantos Livros.
.
.
Nesta entrevista ao Extra Classe, Jessé Souza discute como o ressentimento social, originado na humilhação e na exclusão, tem sido explorado por figuras como Jair Bolsonaro, que manipula as fragilidades de populações vulneráveis.

Independente de ganho econômico ou pauta de costumes, o novo trabalho do sociólogo indica que é o racismo que está na raiz da virada moralista que impulsionou a extrema direita no Brasil.

Para ele, de fato – em conexão a histórias de racismo e desigualdade no Brasil – há sentimentos que perpetuam a dominação por meio da manutenção de estruturas de poder que limitam o desenvolvimento de uma verdadeira democracia social.

Na conversa, Souza aprofunda o conceito de pobre de direita e revela como indivíduos desprivilegiados, tanto brancos quanto negros e mestiços, são seduzidos por discursos que prometem reconhecimento e dignidade, mesmo que isso signifique apoiar políticas que perpetuam sua própria opressão.

Extra Classe (EC) – Você tem dito que o pobre de direita é o fenômeno mais importante do país hoje. Como assim?

JESSÉ SOUZA – Lembra que os pobres votavam em uníssono com o PT até 2016? O que foi que aconteceu para que, agora, metade dos pobres, pelo menos, votem em partidos elitistas e na extrema-direita? Aquela história da barata votando no chinelo, contra seus melhores interesses. As explicações que existem para isso não são boas. Uma diz que essas pessoas são burras, o que não é verdade; os seres humanos são inteligentes. Outra resposta, mais acadêmica, diz que é uma mera filiação religiosa. Como se não tivesse que explicar por que as pessoas procuram e escolhem uma certa orientação religiosa. A causa é muito mais profunda.

EC – Chama a atenção no seu livro “O Pobre de Direita” o subtítulo: “A Vingança dos Bastardos”. Imagino que isto tenha relação ao comportamento chave que diversos estudiosos sobre a extrema-direita identificam, o ressentimento. É por aí?

JESSÉ SOUZA – Exatamente, é por aí. Mas esse ressentimento precisa ser explicado. Ressentimento é uma palavra que precisa ser definida; mas, obviamente, tem a ver com o quê? Tem a ver com o sentimento de humilhação que as parcelas mais econômicas das classes populares sofrem, ainda que as classes populares não sejam a mesma coisa. No Brasil, 80% do povo que ganha abaixo de cinco salários – metade ganha entre dois e cinco salários e a outra metade abaixo de dois salários mínimos – você teria duas classes. Uma classe que eu chamo provocativamente de ralé, a de oprimidos, de odiados, de abandonados, é 40%. Estão abaixo, ficam de zero a dois salários mínimos. E a que eu já chamei em outro livro de batalhadora, uma espécie de classe trabalhadora precária entre nós. Estes são bastardos de quê? Eles são os bastardos da nação brasileira, do projeto da nação brasileira. Desde Getúlio Vargas se tem a ideia de que isso aqui pode ser um país rico para todos, não apenas para uma pequena minoria, o 0,1% que tem toda a propriedade relevante e explora todo o mundo.

EC – E a, digamos, classe média real?

JESSÉ SOUZA – É comparável a uma classe média europeia ou americana. Não chega nunca aqui, em nenhum lugar, a 20% da população. Esses 80% que estão abaixo de cinco salários, sofrem uma humilhação objetivamente. Não tem dinheiro, nem conhecimento incorporado. Não tem dinheiro, nem conhecimento incorporado. Assim, vão ser expostos à vergonha, a obrigações, etc, etc, etc. Ou seja, vão ser bastardos de um projeto de desenvolvimento que foi abortado.

EC – Mas, o conceito não é novo, não? Tim Maia nos anos 1980 já dizia, entre outras coisas, que o Brasil não podia dar certo porque pobre é de direita (risos). Além de um contraponto ao socialista de iPhone, a que você atribui a popularização do termo pobre de direita?

JESSÉ SOUZA – A popularização do termo pobre de direita parece estar diretamente ligada à figura de Jair Bolsonaro. Ele conseguiu transformar vulnerabilidades sociais em algo perigoso. Manipulou as fragilidades do povo contra o próprio povo mesmo. Foi esse cenário que me levou a escrever sobre o tema. Acho que a questão central no Brasil hoje é justamente essa: como alguém, que tem seus direitos e dignidade tolhidos, pode defender formas de opressão que perpetuam sua condição?

EC – No início da nossa conversa você falou de respostas e que há complexidade para a origem desse fenômeno. Qual a sua conclusão?

JESSÉ SOUZA – A resposta mais comum tende a ser racionalista ou simplista, atribuindo a explicação a fatores como a mentalidade conservadora ou religiosa, especialmente entre a população evangélica. No entanto, essa abordagem me parece insuficiente. Para entender de fato esse fenômeno, é preciso conectar os erros do passado ao presente e tentar projetar para o futuro. A compreensão não pode ser fragmentada; ela exige uma visão integrada. O que Bolsonaro fez foi explorar exatamente as vulnerabilidades dessas pessoas. Ele se dirigiu a uma parcela da população que trabalha em condições precárias, seja em empregos de nível técnico ou em ocupações que desumanizam o trabalhador. E essa parcela da população, muitas vezes privada de acesso ao conhecimento – o que explica os ataques de Bolsonaro às universidades, artes e cultura – reage com raiva, mas sem direcionar essa raiva à fonte real de seus problemas.

EC – Parece que também temos aí outros exemplos na história, não?

JESSÉ SOUZA – Essa situação lembra os trabalhadores ingleses do início do século 19, que, sem entender as causas de sua opressão, quebravam as máquinas nas fábricas. Da mesma forma, muitos hoje atacam as expressões culturais e intelectuais, sem perceber que estão lutando contra os efeitos, e não contra a origem de sua marginalização. No fundo, o que essas pessoas buscam é reconhecimento, algo fundamental na modernidade. Esse reconhecimento pode vir tanto do trabalho, que, quando valorizado, traz respeito e autoestima, quanto das relações pessoais e da construção de uma identidade moral. Ao escolher uma denominação religiosa ou adotar valores conservadores, muitos encontram uma forma de se sentirem superiores ou moralmente distintos, o que faz parte do mecanismo de uma sociedade hierarquizada.

EC – Um ponto muito interessante foi a sua ideia em jogar luz sobre a parte majoritariamente branca do país (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) e a “majoritariamente negra e mestiça – de São Paulo ‘para cima’ no mapa”. Como se deu a metodologia para a coleta de dados que culminou em sua análise e a produção do livro?

JESSÉ SOUZA – A metodologia que resultou no livro não foi apenas técnica, baseada em dados frios, mas também se formou a partir das minhas vivências e experiências pessoais. Quando me mudei para São Paulo em 2017, isso foi crucial para entender o Brasil de uma forma diferente. Percebi que São Paulo é o centro das decisões do país. As elites paulistas, com toda sua diversidade, concentram um poder que é difícil encontrar paralelo em outro lugar. São Paulo é o coração do Brasil decisório, um espaço onde florescem todas as influências, e essa realidade me permitiu enxergar as dinâmicas regionais de forma mais profunda. Ao mesmo tempo, por meio de viagens ao Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, fui conhecendo melhor a história e o orgulho dos descendentes de imigrantes europeus. Há, nessas regiões, uma continuidade histórica muito clara, um orgulho de sangue que, em muitos casos, impede que esses grupos se vejam como parte integral do povo brasileiro. Existe uma distinção simbólica e social que é mantida até hoje, especialmente em relação aos nordestinos. E essa visão se expressa em preconceitos que ecoam ideias absurdas, como a de que nordestinos “vivem de graça”, quando, na realidade, são trabalhadores incansáveis.

EC – O que está por trás disso?

JESSÉ SOUZA – A grande questão por trás dessa dinâmica é que o comportamento humano, em sua essência, não é ditado exclusivamente por fatores econômicos. Ao contrário do que muitos afirmam, nunca foi apenas sobre economia. A economia é, na verdade, uma construção moral. Toda estrutura de produção e distribuição de bens carrega consigo uma teoria implícita de justiça e moralidade, definindo quem fica com a melhor ou a pior parte. Assim, o racismo no Brasil não pode ser explicado apenas pela dimensão econômica, mas sim pela forma como a moralidade e as hierarquias sociais foram moldadas ao longo da história.

EC – O racismo sempre presente, então?

JESSÉ SOUZA – Sim. E é justamente aí que entra o racismo. A ideia de um Brasil cordial, onde não se fala abertamente sobre racismo, é enganosa. O racismo continua existindo, mas agora sob máscaras, disfarçado em preconceitos regionais e culturais. O racismo racial foi transformado em racismo cordial, o que faz com que as pessoas não se identifiquem mais como racistas, mas reproduzam comportamentos e narrativas que perpetuam as mesmas desigualdades.

Íntegra da Entrevista em:
https://www.extraclasse.org.br/politica/2024/09/jesse-souza-mergulha-na-cabeca-do-pobre-de-direita/
.
.

Zé Maria

.
.
“O Congresso é o Mordomo da Burguesia Branca Racista”

JESSÉ SOUZA
Sociólogo e Escritor BraSileiro
Autor de “A ELITE DO ATRASO”,
“COMO O RACISMO CRIOU O BRASIL”,
“O POBRE DE DIREITA: A VINGANÇA DOS BASTARDOS”
dentre outros tantos Livros.
.
.
Nesta entrevista ao Extra Classe, Jessé Souza discute como o ressentimento social, originado na humilhação e na exclusão, tem sido explorado por figuras como Jair Bolsonaro, que manipula as fragilidades de populações vulneráveis.

Independente de ganho econômico ou pauta de costumes, o novo trabalho do sociólogo indica que é o racismo que está na raiz da virada moralista que impulsionou a extrema direita no Brasil.

Para ele, de fato – em conexão a histórias de racismo e desigualdade no Brasil – há sentimentos que perpetuam a dominação por meio da manutenção de estruturas de poder que limitam o desenvolvimento de uma verdadeira democracia social.

Na conversa, Souza aprofunda o conceito de pobre de direita e revela como indivíduos desprivilegiados, tanto brancos quanto negros e mestiços, são seduzidos por discursos que prometem reconhecimento e dignidade, mesmo que isso signifique apoiar políticas que perpetuam sua própria opressão.

Extra Classe (EC) – Você tem dito que o pobre de direita é o fenômeno mais importante do país hoje. Como assim?

JESSÉ SOUZA – Lembra que os pobres votavam em uníssono com o PT até 2016? O que foi que aconteceu para que, agora, metade dos pobres, pelo menos, votem em partidos elitistas e na extrema-direita? Aquela história da barata votando no chinelo, contra seus melhores interesses. As explicações que existem para isso não são boas. Uma diz que essas pessoas são burras, o que não é verdade; os seres humanos são inteligentes. Outra resposta, mais acadêmica, diz que é uma mera filiação religiosa. Como se não tivesse que explicar por que as pessoas procuram e escolhem uma certa orientação religiosa. A causa é muito mais profunda.

EC – Chama a atenção no seu livro “O Pobre de Direita” o subtítulo: “A Vingança dos Bastardos”. Imagino que isto tenha relação ao comportamento chave que diversos estudiosos sobre a extrema-direita identificam, o ressentimento. É por aí?

JESSÉ SOUZA – Exatamente, é por aí. Mas esse ressentimento precisa ser explicado. Ressentimento é uma palavra que precisa ser definida; mas, obviamente, tem a ver com o quê? Tem a ver com o sentimento de humilhação que as parcelas mais econômicas das classes populares sofrem, ainda que as classes populares não sejam a mesma coisa. No Brasil, 80% do povo que ganha abaixo de cinco salários – metade ganha entre dois e cinco salários e a outra metade abaixo de dois salários mínimos – você teria duas classes. Uma classe que eu chamo provocativamente de ralé, a de oprimidos, de odiados, de abandonados, é 40%. Estão abaixo, ficam de zero a dois salários mínimos. E a que eu já chamei em outro livro de batalhadora, uma espécie de classe trabalhadora precária entre nós. Estes são bastardos de quê? Eles são os bastardos da nação brasileira, do projeto da nação brasileira. Desde Getúlio Vargas se tem a ideia de que isso aqui pode ser um país rico para todos, não apenas para uma pequena minoria, o 0,1% que tem toda a propriedade relevante e explora todo o mundo.

EC – E a, digamos, classe média real?

JESSÉ SOUZA – É comparável a uma classe média europeia ou americana. Não chega nunca aqui, em nenhum lugar, a 20% da população. Esses 80% que estão abaixo de cinco salários, sofrem uma humilhação objetivamente. Não tem dinheiro, nem conhecimento incorporado. Não tem dinheiro, nem conhecimento incorporado. Assim, vão ser expostos à vergonha, a obrigações, etc, etc, etc. Ou seja, vão ser bastardos de um projeto de desenvolvimento que foi abortado.

EC – Mas, o conceito não é novo, não? Tim Maia nos anos 1980 já dizia, entre outras coisas, que o Brasil não podia dar certo porque pobre é de direita (risos). Além de um contraponto ao socialista de iPhone, a que você atribui a popularização do termo pobre de direita?

JESSÉ SOUZA – A popularização do termo pobre de direita parece estar diretamente ligada à figura de Jair Bolsonaro. Ele conseguiu transformar vulnerabilidades sociais em algo perigoso. Manipulou as fragilidades do povo contra o próprio povo mesmo. Foi esse cenário que me levou a escrever sobre o tema. Acho que a questão central no Brasil hoje é justamente essa: como alguém, que tem seus direitos e dignidade tolhidos, pode defender formas de opressão que perpetuam sua condição?

EC – No início da nossa conversa você falou de respostas e que há complexidade para a origem desse fenômeno. Qual a sua conclusão?

JESSÉ SOUZA – A resposta mais comum tende a ser racionalista ou simplista, atribuindo a explicação a fatores como a mentalidade conservadora ou religiosa, especialmente entre a população evangélica. No entanto, essa abordagem me parece insuficiente. Para entender de fato esse fenômeno, é preciso conectar os erros do passado ao presente e tentar projetar para o futuro. A compreensão não pode ser fragmentada; ela exige uma visão integrada. O que Bolsonaro fez foi explorar exatamente as vulnerabilidades dessas pessoas. Ele se dirigiu a uma parcela da população que trabalha em condições precárias, seja em empregos de nível técnico ou em ocupações que desumanizam o trabalhador. E essa parcela da população, muitas vezes privada de acesso ao conhecimento – o que explica os ataques de Bolsonaro às universidades, artes e cultura – reage com raiva, mas sem direcionar essa raiva à fonte real de seus problemas.

EC – Parece que também temos aí outros exemplos na história, não?

JESSÉ SOUZA – Essa situação lembra os trabalhadores ingleses do início do século 19, que, sem entender as causas de sua opressão, quebravam as máquinas nas fábricas. Da mesma forma, muitos hoje atacam as expressões culturais e intelectuais, sem perceber que estão lutando contra os efeitos, e não contra a origem de sua marginalização. No fundo, o que essas pessoas buscam é reconhecimento, algo fundamental na modernidade. Esse reconhecimento pode vir tanto do trabalho, que, quando valorizado, traz respeito e autoestima, quanto das relações pessoais e da construção de uma identidade moral. Ao escolher uma denominação religiosa ou adotar valores conservadores, muitos encontram uma forma de se sentirem superiores ou moralmente distintos, o que faz parte do mecanismo de uma sociedade hierarquizada.

EC – Um ponto muito interessante foi a sua ideia em jogar luz sobre a parte majoritariamente branca do país (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) e a “majoritariamente negra e mestiça – de São Paulo ‘para cima’ no mapa”. Como se deu a metodologia para a coleta de dados que culminou em sua análise e a produção do livro?

JESSÉ SOUZA – A metodologia que resultou no livro não foi apenas técnica, baseada em dados frios, mas também se formou a partir das minhas vivências e experiências pessoais. Quando me mudei para São Paulo em 2017, isso foi crucial para entender o Brasil de uma forma diferente. Percebi que São Paulo é o centro das decisões do país. As elites paulistas, com toda sua diversidade, concentram um poder que é difícil encontrar paralelo em outro lugar. São Paulo é o coração do Brasil decisório, um espaço onde florescem todas as influências, e essa realidade me permitiu enxergar as dinâmicas regionais de forma mais profunda. Ao mesmo tempo, por meio de viagens ao Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, fui conhecendo melhor a história e o orgulho dos descendentes de imigrantes europeus. Há, nessas regiões, uma continuidade histórica muito clara, um orgulho de sangue que, em muitos casos, impede que esses grupos se vejam como parte integral do povo brasileiro. Existe uma distinção simbólica e social que é mantida até hoje, especialmente em relação aos nordestinos. E essa visão se expressa em preconceitos que ecoam ideias absurdas, como a de que nordestinos “vivem de graça”, quando, na realidade, são trabalhadores incansáveis.

EC – O que está por trás disso?

JESSÉ SOUZA – A grande questão por trás dessa dinâmica é que o comportamento humano, em sua essência, não é ditado exclusivamente por fatores econômicos. Ao contrário do que muitos afirmam, nunca foi apenas sobre economia. A economia é, na verdade, uma construção moral. Toda estrutura de produção e distribuição de bens carrega consigo uma teoria implícita de justiça e moralidade, definindo quem fica com a melhor ou a pior parte. Assim, o racismo no Brasil não pode ser explicado apenas pela dimensão econômica, mas sim pela forma como a moralidade e as hierarquias sociais foram moldadas ao longo da história.

EC – O racismo sempre presente, então?

JESSÉ SOUZA – Sim. E é justamente aí que entra o racismo. A ideia de um Brasil cordial, onde não se fala abertamente sobre racismo, é enganosa. O racismo continua existindo, mas agora sob máscaras, disfarçado em preconceitos regionais e culturais. O racismo racial foi transformado em racismo cordial, o que faz com que as pessoas não se identifiquem mais como racistas, mas reproduzam comportamentos e narrativas que perpetuam as mesmas desigualdades.

Íntegra da Entrevista em:
https://www.extraclasse.org.br/politica/2024/09/jesse-souza-mergulha-na-cabeca-do-pobre-de-direita/
.
.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Leia também