Ricardo Musse: A única saída para Lula governar de fato é o enfrentamento, como tem feito desde 8 de janeiro

Tempo de leitura: 11 min
Em resposta aos atos de vandalismo perpetrados por terroristas em 8 de janeiro ao Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal (STF) e Congresso Nacional, o presidente Lula decretou no mesmo dia intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal. Após assinar o decreto, Lula anunciou-o durante coletiva de imprensa. O presidente estava em Araraquara (SP) para avaliar os estragos causados pelas chuvas na cidade e se solidarizar com o prefeito Edinho Araújo (PT) e a população atingida. Fotos: Reprodução de transmissão da TV Brasil e Ricardo Stuckert

Contra a Frente Ampla às avessas, única saída para Lula governar de fato é o enfrentamento

Por Gabriel Brito*, no Correio da Cidadania

O go­verno Lula se­quer ter­minou sua or­ga­ni­zação ad­mi­nis­tra­tiva, ainda es­tamos na fase de con­clusão das no­me­a­ções de di­versas fun­ções-chaves do Es­tado bra­si­leiro, mas, após a in­ten­tona fas­cista de 8 de ja­neiro, o tempo pa­rece andar mais rá­pido e a ex­pec­ta­tiva por re­sul­tados é imensa.

Se houve uma cha­mada Frente Ampla para vencer as elei­ções e tentar con­tornar a tra­gédia bol­so­na­rista, aqueles que sus­ten­taram Bol­so­naro no poder também têm sua “Frente Ampla”.

Trata-se do bloco ul­tra­con­ser­vador for­mado por mi­li­tares, grupos bol­so­na­ristas ativos e o grande ca­pital, re­pre­sen­tado mais es­pe­ci­fi­ca­mente pelo mer­cado fi­nan­ceiro.

O Cor­reio da Ci­da­dania en­tre­vistou o so­ció­logo Ri­cardo Musse para ana­lisar este em­bate pelos des­tinos do Brasil.

Para início de qual­quer con­versa, Musse con­si­dera fun­da­mental que Lula es­ta­be­leça a obe­di­ência das Forças Ar­madas à sua chefia, con­dição es­sen­cial para a re­a­li­zação de um go­verno re­pre­sen­ta­tivo das ban­deiras que ven­ceram a eleição.

Punir os gol­pistas é, em sua visão, de­ci­sivo para o fu­turo ime­diato da de­mo­cracia no país.

“Os mi­li­tares também têm sido pou­pados, in­clu­sive aqueles da re­serva. Quanto ao ex-pre­si­dente e equipe de cam­panha elei­toral, ainda nada. O de­safio, assim, é que essa pu­nição exem­plar não se li­mite aos que foram ma­ni­pu­lados (mas exer­ceram suas li­ber­dades in­di­vi­duais) e van­da­li­zaram Bra­sília e a sede dos três po­deres. A pu­nição só será re­co­nhe­cida como eficaz se chegar aos es­ca­lões su­pe­ri­ores”.

Isto é, a des­peito do ci­nismo de se­tores que se dizem com­pro­me­tidos com o sis­tema de­mo­crá­tico, mas querem, na es­sência, pre­servar os dogmas e con­trar­re­formas im­postas pelo pe­ríodo Temer e Bol­so­naro, “a única saída pos­sível, que o go­verno vem ten­tando, é o en­fren­ta­mento. Não fazer isso é aceitar um es­tado de não go­verno, de rainha da In­gla­terra. Todas as forças econô­micas, mi­li­tares e bol­sões bol­so­na­ristas buscam im­pedir isso”, ex­plicou Musse.

Na visão do co­autor do livro China con­tem­po­rânea: seis in­ter­pre­ta­ções e editor do site A Terra é Re­donda, a po­sição de Ro­berto Campos Neto é sim­bó­lica da ati­tude de se­tores der­ro­tados na eleição que ainda tra­ba­lham ati­va­mente para boi­cotar o novo go­verno e seus pro­jetos.

Con­vencer par­la­men­tares e parte do pró­prio ca­pital na­ci­onal a aceitar seu pro­grama de go­verno é a grande obra a em­pre­ender.

Pa­ra­do­xal­mente, o mo­mento é im­pró­prio para que o amplo es­pectro de apoi­a­dores do novo go­verno ca­na­lize seus an­seios em lutas abertas. O es­forço de con­ven­ci­mento e en­ga­ja­mento em favor de po­lí­ticas pú­blicas pro­gres­sistas exi­girá pa­ci­ência.

“É pos­sível que haja mo­vi­mentos para si­na­lizar uma po­sição da so­ci­e­dade a fim de criar um fato pú­blico mi­diá­tico, mas não é a forma de pressão cor­reta. Se a es­querda en­ve­reda por este ca­minho, en­tramos numa si­tu­ação em que as hostes bol­so­na­ristas se­riam le­gi­ti­madas e te­ríamos ba­ta­lhas cam­pais, como vimos em países que ti­veram a ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade aba­lada, como a Ve­ne­zuela de­pois da morte de Chávez. Não creio que este seja o ca­minho da es­querda bra­si­leira. O ca­minho é a luta diária e co­ti­diana pelos seus in­te­resses, o tra­balho de for­mi­guinha de con­quistar adeptos, pre­parar qua­dros, o tra­balho in­te­lec­tual de ofe­recer al­ter­na­tivas à trans­for­mação do país”.

A en­tre­vista com­pleta com Ri­cardo Musse pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como ob­serva o início do go­verno Lula à luz de imensas de­mandas so­ci­o­e­conô­micos, pres­sões ne­o­li­be­rais e uma ten­ta­tiva de golpe de Es­tado? Qual o ta­manho da en­ge­nharia que o ter­ceiro man­dato de um pre­si­dente mar­cado pela ca­pa­ci­dade con­ci­li­a­tória de­verá ser capaz de em­pre­ender para pa­ci­ficar mi­ni­mente o país?

Ri­cardo Musse: Os de­sa­fios do ter­ceiro man­dato de Lula são enormes. Eu diria que o prin­cipal é des­bol­so­na­rizar o apa­relho de Es­tado. Trata-se de criar ins­tru­mentos para evitar o boi­cote, que tem dois braços: um na so­ci­e­dade e outro dentro do Es­tado, mas que estão in­ter­li­gados e têm sua po­tência oriunda exa­ta­mente disso.

Foi o que vimos nos acon­te­ci­mentos de 8 de ja­neiro, um re­sul­tado do pro­cesso de ra­di­ca­li­zação que ma­turou na porta dos quar­teis, so­bre­tudo no quartel ge­neral do exér­cito em Bra­sília. Não dá pra deixar de atri­buir uma parte da res­pon­sa­bi­li­dade ao exér­cito.

Há bol­sões de mi­li­tantes bol­so­na­ristas, co­nhe­cidos ou anô­nimos, pro­fis­si­o­na­li­zados po­li­ti­ca­mente ou não, que só ti­veram a ca­pa­ci­dade de in­vadir os três po­deres porque con­taram com co­ni­vên­cias das forças re­pres­sivas do Es­tado e do exér­cito, que deixou tais mo­vi­mentos se or­ga­ni­zarem em seu ter­ri­tório e ad­ja­cên­cias; co­ni­vência da po­lícia mi­litar do Dis­trito Fe­deral, que foi omissa e até co­ni­vente; do ba­ta­lhão da guarda pre­si­den­cial e das forças que de­ve­riam pro­teger o STF.

Some-se a atu­ação de Iba­neis Rocha, eleito com apoio e as be­nesses do ex-pre­si­dente Bol­so­naro, que en­tregou o co­mando de sua es­tra­té­gica se­cre­taria de se­gu­rança pú­blica ao ex-mi­nistro da Jus­tiça, Anderson Torres, e deixou que toda a cú­pula fosse por ele no­meada, ci­ente dos riscos que tal de­cisão im­pli­cava.

O go­ver­nador não pode dizer que não sabia da pos­si­bi­li­dade, es­tam­pada em todos os jor­nais e redes so­ciais, de uma ten­ta­tiva de ocu­pação da Es­pla­nada dos Mi­nis­té­rios pela horda bol­so­na­rista.

A outra frente dos ata­ques à de­mo­cracia, ao re­sul­tado da eleição, ao di­reito do pre­si­dente Lula ocupar a pre­si­dência e go­vernar, vem de fontes econô­micas que cons­ti­tuíram um dos polos de apoio ao go­verno Bol­so­naro.

Trata-se dos mi­li­o­ná­rios, CEOs, grandes em­presas e bancos do mer­cado fi­nan­ceiro, tudo o que na lin­guagem mar­xista se re­sume no termo grande ca­pital.

O grande ca­pital tem vá­rios braços entre os em­pre­sá­rios me­nores, que são de­pen­dentes ou sim­ples­mente ad­miram seu poder, e so­bre­tudo na mídia cor­po­ra­tiva, a grande im­prensa, porta-voz de tais in­te­resses, não só no jor­na­lismo econô­mico, mas também no jor­na­lismo po­lí­tico.

Aqui também temos a mesma in­ter­co­nexão entre uma força opo­si­tora que se lo­ca­liza na so­ci­e­dade e um de seus braços dentro do apa­relho de Es­tado, como ficou claro, que é o Banco Cen­tral.

Cor­reio da Ci­da­dania: Se de um lado fa­lamos em Frente Ampla para de­finir o bloco que chegou ao go­verno, do outro lado também há uma Frente Ampla.

Ri­cardo Musse: Na en­tre­vista ao Roda Viva de Ro­berto Campos Neto, cujo avô foi fi­gura pro­e­mi­nente da di­ta­dura, deixou claro que ele é um bol­so­na­rista raiz.

Ele tem a mesma em­páfia au­to­ri­tária, a mesma cer­teza ab­so­luta, o mesmo des­prezo pelos ou­tros, a mesma con­si­de­ração pela de­mo­cracia e pelos de­sa­ven­tu­rados eco­no­mi­ca­mente, do pre­si­dente Jair Bol­so­naro.

São traços que en­con­tramos num re­gime au­to­ri­tário e na onda in­ter­na­ci­onal da ex­trema-di­reita, que se ca­rac­te­riza por uma nova ro­dada do ne­o­li­be­ra­lismo, uma versão que pode ser dita ul­tra­ne­o­li­beral.

Pelo his­tó­rico e pela cam­panha, es­pe­rava-se que Lula usasse de sua ca­pa­ci­dade de ne­go­ci­ação, ou con­ci­li­ação, para en­frentar os de­sa­fios do novo go­verno. Mas a vi­ru­lência dos ata­ques de 8 de janeiro, mas também de­cla­ra­ções, notas, falas do pre­si­dente do BC, além de ana­listas, eco­no­mistas e em­pre­gados deste mer­cado im­pe­diram essa via.

Não que a con­ci­li­ação tenha dei­xado de fazer parte de sua per­so­na­li­dade, des­ta­cável ao longo da vida, mas mos­trou dis­po­sição para en­frentar com rigor tal com­bate.

Com apoio e ajuda do STF, em par­ti­cular do mi­nistro Ale­xandre de Mo­raes, en­car­re­gado da pu­nição aos crimes de 8 de ja­neiro, Lula mos­trou enorme dis­po­sição em punir os atos e seus par­ti­ci­pantes, pois a pu­nição é a única forma de evitar não só que se re­pitam, mas cresçam, se re­novem. É um evento ne­ces­sário.

E falou grosso, con­tinua fa­lando, acerca da imoral taxa de juros, man­tida pelo BC e co­lo­cada como ne­ces­sária por um longo tempo. Ele per­cebeu que a in­tenção dos con­du­tores do BC é im­pedir uma po­lí­tica econô­mica com dis­tri­buição de renda e de­sen­vol­vi­mento so­cial, ban­deiras com as quais Lula foi eleito.

Um fato im­por­tante é que nos dois casos Lula não só fez de­cla­ra­ções como mo­bi­lizou forças da frente que o elegeu, e até mesmo ad­ver­sá­rios, como go­ver­na­dores bol­so­na­ristas e par­celas do con­gresso na­ci­onal para a de­fesa da de­mo­cracia.

Agora, mo­bi­liza a po­pu­lação, so­ci­e­dade, ban­cadas, cen­trais sin­di­cais, chama o apoio da FIESP e dos grandes bancos em sua luta contra os juros altos.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa das pri­sões e pro­cessos sobre os par­ti­ci­pantes dos ata­ques de 8 de ja­neiro? É pos­sível re­tomar pa­ta­mares crí­veis de de­mo­cracia sem punir en­fa­ti­ca­mente o bol­so­na­rismo?

Ri­cardo Musse: Vemos a cul­pa­bi­li­zação di­reta dos par­ti­ci­pantes e fi­nan­ci­a­dores da horda, além de al­guns agi­ta­dores de rede so­ciais, que de certa forma deram o co­mando ide­o­ló­gico do mo­vi­mento. O pri­meiro grupo está nas pe­ni­ten­ciá­rias de Bra­sília e os pro­cessos vão sendo in­di­vi­du­a­li­zados com grande ra­pidez.

O se­gundo grupo ainda está em iden­ti­fi­cação, am­pli­ação, so­bre­tudo a partir dos de­poi­mentos dos presos.

O ter­ceiro grupo está sendo mo­ni­to­rado pela PGR, na ten­ta­tiva de iden­ti­ficar os pro­mo­tores da ten­ta­tiva de golpe. São casos em que há uma linha tênue entre os que sim­ples­mente não acei­taram o re­sul­tado da eleição e os que in­cen­ti­varam a ação.

O de­safio é iden­ti­ficar e julgar todos esses ci­da­dãos dentro dos prin­cí­pios do es­tado de­mo­crá­tico de di­reito, com di­reito à ampla de­fesa, con­tra­di­tório, jul­ga­mento in­di­vi­du­a­li­zado e isento. Isso pa­rece estar sendo bem con­du­zido.

O de­li­cado são os casos de fi­guras pro­e­mi­nentes que sa­bemos estar por trás do mo­vi­mento e nem sempre as­su­miram ex­pli­ci­ta­mente este fato. Par­la­men­tares, mem­bros dos altos es­ca­lões das forças ar­madas, o ex-pre­si­dente, seu vice e sua en­tou­rage.

Por­tanto, a questão em aberto é até que ponto esses pro­cessos e seus des­do­bra­mentos po­derão chegar até as ver­da­deiras ca­beças do mo­vi­mento.

As pri­sões pre­ven­tivas dos par­ti­ci­pantes di­retos e fi­nan­ci­a­dores me­nores já foram efe­ti­vadas. Mas sobre este grupo aqui des­crito ainda não há se­quer in­di­ci­a­mentos. Se isso será pos­sível a partir dos pro­cessos e jul­ga­mentos é algo que ainda es­tamos por saber.

O que nós per­ce­bemos é que o STF não irá di­re­ci­onar a in­ves­ti­gação para par­la­men­tares, isso foi dei­xado ao pró­prio Con­gresso. E note-se que até agora, nem na Câ­mara dos De­pu­tados nem no Se­nado, se abriu algum pro­cesso nas co­mis­sões de ética.

Os mi­li­tares também têm sido pou­pados, in­clu­sive aqueles da re­serva. Quanto ao ex-pre­si­dente e equipe de cam­panha elei­toral, ainda nada.

O de­safio, assim, é que essa pu­nição exem­plar não se li­mite aos que foram ma­ni­pu­lados (mas exer­ceram suas li­ber­dades in­di­vi­duais) e van­da­li­zaram Bra­sília e a sede dos três po­deres. A pu­nição só será re­co­nhe­cida como eficaz se chegar aos es­ca­lões su­pe­ri­ores.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como fica a questão mi­litar no meio disso?

Ri­cardo Musse: São muitos de­sa­fios. Max Weber já de­finiu o Es­tado como aquele capaz de deter a ex­clu­si­vi­dade das forças re­pres­sivas. Isso quer dizer o se­guinte: Lula só será ple­na­mente pre­si­dente se for pleno co­man­dante das forças mi­li­tares. Isso não é ab­so­luto, mas a chefia do Es­tado supõe o do­mínio do apa­rato mi­litar e dos altos es­ca­lões das Forças Ar­madas.

Em parte, tal questão se co­loca porque desde a pro­cla­mação da Re­pú­blica os mi­li­tares se acham uma es­pécie de poder mo­de­rador, que em qual­quer con­flito ou cir­cuns­tância mais com­plexa se veem no di­reito de in­tervir.

Mas no caso atual há uma va­riável a mais: as FA não só se cons­ti­tuíram em braço do poder de Bol­so­naro como também foram a ins­ti­tuição que desde 2014 o pre­parou para chegar à pre­si­dência.

Uma vez ins­ta­lado por lá, se cercou de apro­xi­ma­da­mente 7.000 mi­li­tares que ocu­param cargos co­mis­si­o­nados no apa­rato de Es­tado. Há uma sim­biose aqui.

A in­su­bor­di­nação das FA no início do go­verno Lula, e mesmo na tran­sição, tinha uma di­reção bas­tante sig­ni­fi­ca­tiva.

Tra­tava-se de im­pedir Lula de go­vernar, com a re­sis­tência das hordas bol­so­na­ristas, dos mer­cados fi­nan­ceiros e dos mi­li­tares em aceitar o co­mando do novo pre­si­dente. É sig­ni­fi­ca­tivo que al­guns se re­cu­saram a prestar con­ti­nência ao novo pre­si­dente.

Uma questão que moveu co­men­ta­ristas e sus­citou muitas ex­pli­ca­ções di­fe­rentes foi o papel dos mi­li­tares no dia 8 de ja­neiro.

Ficou claro que a ex­pec­ta­tiva das hostes bol­so­na­ristas, in­clu­sive o go­ver­nador do Dis­trito Fe­deral, era de que os mi­li­tares in­ter­vi­essem, por meio de Ga­rantia de Lei e Ordem (GLO) ou ini­ci­a­tiva pró­pria. Como a GLO não foi cha­mada, fi­caram es­pe­rando uma una­ni­mi­dade que não houve entre eles.

Assim, fica claro que os mi­li­tares, assim como Bol­so­naro, também se sen­tiram der­ro­tados pelo re­sul­tado elei­toral. Isso sus­citou di­ver­gên­cias in­ternas sobre como de­ve­riam se com­portar.

Ima­gino que tais di­ver­gên­cias pas­savam por quem não queria a trans­missão do poder e pelos que pen­savam ser um dever res­peitar a Cons­ti­tuição e a nor­ma­li­dade de­mo­crá­tica.

No en­tanto, pre­va­leceu o mo­vi­mento que en­con­tramos já no caso do Banco Cen­tral: tentar im­pedir o pre­si­dente de go­vernar com seu pro­grama, o que as­sumiu a forma de certa chan­tagem e mo­ni­to­ra­mento sobre o pre­si­dente. Situação na qual a es­pada es­taria sempre pró­xima a sua ca­beça.

A es­colha do mi­nistro Múcio (De­fesa) é in­di­cação do con­flito, pois foi mais in­di­cado pelos mi­li­tares do que es­co­lhido pelo pre­si­dente.

Ao de­mitir o co­man­dante do exér­cito, Lula deu uma res­posta que não sa­bemos ainda se foi su­fi­ci­ente, se serão ne­ces­sá­rias mais me­didas para re­compor o quadro das forças ar­madas, e não sa­bemos qual poder o pre­si­dente terá para de­finir pro­mo­ções, pu­ni­ções a bol­so­na­ristas que par­ti­ci­param dos atos, mo­di­fi­ca­ções dos cur­rí­culos es­co­lares da for­mação de qua­dros das FA. São pontos de­ci­sivos não só para este go­verno, como para a pró­pria de­mo­cracia bra­si­leira.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais as saídas? Por onde Lula pode en­con­trar margem para operar uma po­lí­tica que ofe­reça re­sul­tados pal­pá­veis à po­pu­lação?

Ri­cardo Musse: A única saída pos­sível, que o go­verno vem ten­tando, é o en­fren­ta­mento. Não fazer isso é aceitar um es­tado de não go­verno, de rainha da In­gla­terra. Lula tem afir­mado desde a cam­panha elei­toral, desde antes até, que na sua idade não está pre­o­cu­pado com as re­ga­lias e be­nesses do cargo, mas en­cara isso como uma força motivacional, algo es­sen­cial à sua von­tade de viver, o an­seio de con­tri­buir para a trans­for­mação da so­ci­e­dade brasileira.

Todas as forças econô­micas, mi­li­tares e bol­sões bol­so­na­ristas buscam im­pedir isso. Ob­vi­a­mente, fica a noção de que as forças agru­padas em torno da cam­panha elei­toral, na tran­sição e so­bre­tudo as que têm con­quis­tado res­posta aos ata­ques de 8 de ja­neiro irão pre­do­minar, já que os ad­ver­sá­rios, so­bre­tudo no ter­reno econô­mico, são muito po­de­rosos.

Aí a po­lí­tica do Lula é dupla, ao mesmo tempo de en­fren­ta­mento e atração.

Um pouco do que vimos mais ex­pli­ci­ta­mente em re­lação ao Con­gresso, em tese hostil, pois elegeu apenas 30% de de­pu­tados vin­cu­lados à sua co­li­gação. Lula busca trazer para seu campo aqueles que em prin­cípio não estão tão fe­chados com o bol­so­na­rismo.

Há si­tu­a­ções mais fá­ceis e ou­tras com­pli­cadas. A de­fesa da in­te­gri­dade dos ter­ri­tó­rios in­dí­genas, a ex­pulsão do ga­rimpo ilegal, in­cen­ti­vado pelo go­verno an­te­rior, é tema no qual conta com apoios am­plos, in­ter­na­ci­o­nais, na grande mídia, na mai­oria da po­pu­lação.

Na­tu­ral­mente, o mais di­fícil ponto é o em­bate com o Banco Cen­tral, porque aí o apoio da po­pu­lação é in­su­fi­ci­ente.

A es­sência sobre a qual se move o mer­cado fi­nan­ceiro, grande mídia, eco­no­mistas pa­tro­ci­nados e os mem­bros do con­selho di­retor do BC mostra-se to­tal­mente in­fensa à von­tade da po­pu­lação. Julgam que se trata de uma questão téc­nica, onde a opi­nião da po­pu­lação, dos elei­tores, não é re­le­vante.

Por­tanto, fica a dú­vida como o pre­si­dente irá levar adi­ante tal em­bate, se che­gará a um ponto em que será ne­ces­sário de­mitir o pre­si­dente do BC, o que não seria ilegal, já que por dois anos o co­mitê di­ri­gente do BC não efe­tuou sua obri­gação, que era levar a in­flação ao centro da meta.

Eles dei­xaram os juros baixos para au­mentar a po­pu­la­ri­dade de Bol­so­naro e só su­biram na vés­pera da eleição, já pre­pa­rando um ce­nário pos­te­rior de re­cessão pro­gra­mada, in­de­pen­den­te­mente de quem fosse o pre­si­dente.

Fica em aberto mais este ponto: Lula irá até o ponto de de­mitir o pre­si­dente do BC?

Cor­reio da Ci­da­dania: Por fim, as mi­li­tân­cias pro­gres­sistas, mo­vi­mentos so­ciais, es­querdas pa­recem viver um com­passo de es­pera, ocu­pando as ruas so­mente como re­ação, não como pro­po­sição. Não é ur­gente re­verter essa di­nâ­mica?

Ri­cardo Musse: Elas não estão pa­ra­li­sadas. Elas mos­traram uma po­tência e uma di­nâ­mica que per­mi­tiram uma eleição contra um go­verno que usou de todos os meios e re­cursos pos­sí­veis, a mai­oria ilegal e ao ar­repio da lei, para ser re­e­leito.

Foram de­so­be­di­ên­cias, usos au­to­ri­tá­rios, der­rame de di­nheiro pú­blico, gas­tanças em que qual­quer pre­feito do in­te­rior seria im­pe­dido de con­ti­nuar can­di­dato du­rante o pró­prio pro­cesso elei­toral.

Por­tanto, sin­di­catos, mo­vi­mentos e grupos de es­querda foram fa­tores de­ci­sivos, tanto quanto a pro­pa­lada Frente Am­plís­sima, ini­ciada com a es­colha de Ge­raldo Alckmin para vice de Lula.

Mo­vi­mentos e sin­di­catos se­guem mo­bi­li­zados nos em­bates de início de go­verno, tanto no re­púdio ao golpe como nas ten­ta­tivas do mer­cado de ditar uma po­lí­tica econô­mica con­trária ao que foi con­sa­grado no voto.

Parte da es­querda re­clama por não haver mo­bi­li­za­ções de rua. Mas essas são um re­curso da opo­sição em si­tu­a­ções de go­vernos de­mo­crá­ticos.

O go­verno Lula pre­tende re­compor a ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade e har­monia entre os três po­deres, e mesmo su­bor­dinar a seu co­mando o apa­rato do Es­tado. Ele se move no marco es­tri­ta­mente legal da Cons­ti­tuição, re­fe­rência de suas ações.

Ela prevê vá­rias formas de par­ti­ci­pação po­pular, o que o go­verno até se propõe a fazer, a exemplo das con­fe­rên­cias na­ci­o­nais. Mas não ad­mite que de certa forma haja uma mo­bi­li­zação fí­sica no sen­tido de pres­si­onar os po­deres.

Da mesma forma que se con­dena a ocu­pação do STF, não é pos­sível dizer que a questão do BC se re­sol­veria com uma con­cen­tração de pes­soas na porta do seu prédio em Bra­sília ou sua sede em São Paulo.

É pos­sível que haja mo­vi­mentos para si­na­lizar a po­sição da so­ci­e­dade a fim de criar um fato pú­blico mi­diá­tico, mas não é a forma de pressão cor­reta.

Se a es­querda en­ve­reda por este ca­minho, en­tramos numa si­tu­ação em que as hostes bol­so­na­ristas se­riam le­gi­ti­madas e te­ríamos ba­ta­lhas cam­pais, como vimos em países que ti­veram a ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade aba­lada, como a Ve­ne­zuela de­pois da morte de Chávez.

Não creio que este seja o ca­minho da es­querda bra­si­leira. O ca­minho é a luta diária e co­ti­diana pelos seus in­te­resses, o tra­balho de for­mi­guinha de con­quistar adeptos, pre­parar qua­dros, o tra­balho in­te­lec­tual de ofe­recer al­ter­na­tivas à trans­for­mação do país. 

*Ga­briel Brito é jor­na­lista, re­pórter do Outra Saúde e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

Leia também:

Ângela Carrato: Terrorismo econômico do “andar de cima”, inclusive da mídia corporativa

Leda Paulani: Banco Central, juros e independência – em defesa de Lula e da autoridade que a Constituição lhe confere


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Zé Maria

https://twitter.com/eurosemartins/status/1628901119870091269

Há Algo Errado na Estratégia
de Política Externa do Brasil:

“Brasil votou na ONU pela retirada dos russos
de Donetsk, Lugansk, Zaporozhie, Kherson e Criméia.
Todos os outros membros dos BRICS e
parceiros tradicionais da Rússia votaram contra, se abstiveram ou
não compareceram.
Não dá mais pra negar o óbvio. É isso.”

https://twitter.com/SentaPua75/status/1628899487287590912

Zé Maria

Dilma Rousseff foi Nomeada Presidente do Banco dos BRICS

“Tem gente que simplesmente não entendeu ainda o tamanho da coisa.

Vou traduzir: O Banco de Desenvolvimento do Bloco BRICS funciona
como uma alternativa ao Banco Mundial e ao FMI.
Quem vai presidir é a DILMA ROUSSEFF.
Entendeu agora?
Engole a inveja!”
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Antonio Azevedo

O NOVO GOVERNO DEVE REPENSAR O MARCO DO SANEAMENTO

O atual marco do saneamento não conseguiu resolver as demandas básicas de promover o acesso à água limpa e ao saneamento básico como um direito humano fundamental no Brasil. Passados quase três anos desde que foi sancionado pelo atual governo federal, mais da metade (50%) dos brasileiros ainda não têm acesso a redes de esgoto, segundo MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional), dados do Snis (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento relativos a 2020. Esse índice pode ser ainda maior e está muito distante da previsão de 76% de acesso à coleta de esgoto e 93% de acesso à água tratada nas metas do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) elaborado pelo mesmo governo federal. Além disso, a controvérsia judicial virou praxe nas demandas que envolvem essa temática entre estados e municípios. Por exemplo, o município de Maringá e a Companhia de Saneamento do Estado do Paraná (Sanepar). O argumento de defesa daquele é que “a retomada dos serviços é embasada em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)”. Nesse cenário, transita uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), junto ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) para que este declare inconstitucional a lei complementar estadual nº 237/2021-PR, que instituiu microrregiões (oeste, centro-leste e centro-litoral) no Paraná para regular a contratação dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário por, supostamente, afrontar a lei do marco do saneamento, que determina que cada município tem autonomia para contratar esses serviços. Diante desse panorama, algumas reflexões são interessantes: em primeiro lugar, a lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, conhecida como marco legal do saneamento, sancionada pelo atual governo federal foi feita de maneira açodada, às pressas. Sem a efetiva participação popular sob o ponto de vista do conceito de soberania popular, como princípio norteador de uma sociedade democrática. Nesse sentido, na confecção dessa lei, o legislador ignorou completamente a existência do artigo 2º da lei nº 9.709 de 1998, que regulamenta o artigo14 da Constituição Federal, ou seja: “plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa”. A lei do marco do saneamento foi aprovada pelo congresso nacional, mas sem a devida participação popular através de um referendo ou plebiscito. Dito isso, mas não só isso, parece que o marco do saneamento tal como está, é insuficiente e não atende os interesses de estados e municípios. Pior, não refletiu o esperado consenso entre o governo federal, estadual e municipal nessa temática. Outra constatação desse imbróglio, diz respeito à atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), que ao confirmar a validade do marco do saneamento na sua integralidade – a despeito da posição no plenário não ter sido unânime, acabou por conflitar ainda mais nesse imbróglio. Ou seja, em geral, os pequenos municípios não são atrativos para a iniciativa privada, já que esta busca o maior lucro possível e investe menos em regiões com demanda menor e, assim, com menor potencial de retorno financeiro, do que em cidades de médio a grande porte, onde o lucro é pretensamente possível e também maior. Nessa seara, a grande solução continua sendo o subsídio cruzado – possibilidade de investimento nos municípios deficitários a partir do lucro obtido nos municípios superavitários, é um instrumento fundamental, aplicado pelas empresas estatais de economia mista como a Sanepar, Sabesp, Corsan para garantir a cidadania e o devido respeito aos direitos fundamentais regulados pela constituição. Assim, o subsídio cruzado, garante aos municípios pobres, uma melhor qualidade de vida para a sua população, proporcionando bem-estar, diminuindo os males causados pela pobreza, reduzindo assim a mortalidade infantil, permitindo ao mesmo tempo a proteção e preservação do meio ambiente, adequando-se, inclusive, ao princípio do desenvolvimento sustentável, à saúde pública e a dignidade da pessoa humana. Enfim, o subsídio cruzado, funciona como um instrumento de desenvolvimento que corrige as falhas e as ineficiências típicas do desequilíbrio do mercado. Entretanto, além do subsídio cruzado, os municípios brasileiros precisam de apoio técnico e financeiro para planejar o setor do saneamento, especialmente os mais pobres. Através da possível criação de um fundo nacional que proporcione de fato a universalização dos serviços de água tratada e esgotamento sanitário que demandam altos investimentos. Nesse sentido, resumir na simples privatização das companhias estaduais como forma de solucionar essa questão não é a melhor saída, podendo até mesmo agravar a situação e vai na contramão de que está acontecendo no mundo, por exemplo, países como o Canadá, Estados Unidos, França e Alemanha estão reestatizando os seus serviços de saneamento básico. Dentre os principais fatores que impulsionaram a reestatização nesses países está o interesse único pelo lucro das empresas privadas sobre a qualidade ofertada dos serviços para a população, bem como, a falta de investimentos e estagnação na expansão das redes de distribuição, além disso, registra-se a deficiência de órgãos reguladores na prestação do serviço de fiscalização das empresas privadas. Nessa contramão do mundo, está o município de Manaus no Estado do Amazonas que após mais de 20 (vinte) anos de gestão privada, a capital manauara ainda possui um índice ínfimo de apenas 12,5% de coleta de esgoto e, pior, mais de 600 mil manauaras de uma população total de 2,02 milhões estão sem acesso à água tratada, segundo o Instituto Trata Brasil, que coloca o município de Manaus no ranking sobre o saneamento brasileiro na posição de 96º dentre os 100 maiores municípios do País. Por derradeiro, chegou a hora, o novo governo federal deve enfrentar e repensar o marco legal do saneamento, além de urgente é necessário, no sentido de encontrar uma solução satisfatória para o imbróglio jurídico, político, social e ambiental entre municípios e estados, seja anulando alguns artigos da lei ou até mesmo a sua revogação, no sentido de resguardar e proteger os interesses da maioria da população.

ANTONIO SERGIO NEVES DE AZEVEDO – Estudante em Curitiba / Paraná.

    Jairo Barreto Mansur

    Importantíssimo

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