Pimenta: Para fortalecer a democracia é preciso derrotar valores capitalistas e forças ultraconservadoras

Tempo de leitura: 5 min

O fortalecimento da democracia passa pela derrota dos valores capitalistas e das forças ultraconservadoras

por Paulo Pimenta*

A democracia fundamentada em pressupostos de liberdade, igualdade, fraternidade, concebida como valorização da diversidade, da solidariedade e da inclusão, é antagônica aos valores capitalistas que sustentam a competividade, o individualismo, o altruísmo, o vale tudo do mercado. Existe aí uma incompatibilidade.

Um olhar para a história da dominação capitalista nos remete aos grandes conflitos mundiais, às ditaduras militares, à exploração do trabalho, à escravidão, aos genocídios, à miséria, à devastação ambiental e às diversas formas de opressão.

Um olhar para a luta por democracia, nos remete às resistências anticoloniais e libertárias, às revoltas populares, às lutas sindicais, aos movimentos sociais da terra, indígenas, antirracistas, das mulheres, LGBT, das juventudes, socioambientais.

O processo de democratização e conquista de direitos resultou das diferentes lutas políticas, socais, sindicais. No Brasil, nos finais da ditadura militar, a unidade dos campos de esquerda e liberais progressistas em defesa de liberdades políticas produziu um modelo conciliatório de redemocratização das intuições do Estado que permitiu espaços controlados de acesso aos bens públicos e à participação social, sem alterar a disputa que confronta, de um lado, o enfrentamento às desigualdades e, de outros, a sustentação desse modelo.

Essa equação da democracia sob o controle dos setores que detêm o poder político e econômico manteve um equilíbrio que se rompe com a vitória do campo democrático e popular, abrindo caminho para avançar no projeto de sociedade mais democrática e inclusiva.

A inclusão social gerou desconforto aos acostumados com o conforto. O investimento em políticas sociais, alvo da disputa de classe, foi combatida pelos sistemas de dominação, que reforçaram o ataque aos sujeitos sociais favorecidos por programas do governo democrático e popular. Especialmente as populações mais pobres, adolescentes e jovens negros e negras, indígenas, quilombolas, passaram a figurar como vagabundos que sobrecarregavam o poder público, reforçando o racismo, o machismo e toda forma de preconceito e discriminação.

A repulsa à inclusão recaiu sobre a política educacional que constitui um dos pilares do projeto de inclusão iniciado em 2003, no governo Lula, e interrompido em meados de 2016, com o golpe parlamentar e jurídico que derrubou a presidenta Dilma Rousseff.

A educação como direito de todos e todas foi um objetivo aparentemente consensual até o momento em que se tornou efetiva a política de expansão e democratização do acesso aos diferentes níveis de ensino. Caíram por terra os ideais abstratos de democracia quando a gestão da educação definiu investimentos para promoção de condições de acesso e qualidade, contemplando grupos sociais historicamente excluídos.

A política educacional teve alguns aspectos fundamentais.

Na educação básica, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb reorientou a visão de foco no ensino fundamental para compreender a educação básica de forma integrada, da educação infantil ao ensino médio, contemplando a educação integral e a educação especial na perspectiva inclusiva.

Essa política incidiu de forma sistêmica para promover as condições de acesso aos mais elevados níveis de ensino, fortalecendo a escola pública e, portanto, contrariou a lógica da privatização da educação presente no ideário neoliberal. O caminho de acesso à educação superior via Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, a expansão substancial das redes públicas educação profissional e tecnológica e das instituições de educação superior, bem como o amplo financiamento da oferta de vagas por meio do Programa Universidade para Todos – ProUni, revolucionaram o acesso das camadas mais pobres, dos negros e negras ao nível superior, incidindo sobre o padrão desigual da meritocracia.

A política de educação não é um caso único, mas é reveladora dos interesses que se chocam com mudanças que confrontam a desigualdade social e que se reflete nas matrículas na educação superior. Quando a política pública passou de fato a incidir na garantia de condições para o pleno acesso à educação, expôs a função estruturante do caráter de classe, gênero, raça e de segregação que persiste na educação brasileira, assegurando o acesso a carreiras profissionais de maior prestígio e remuneração, a espaços de direção e poder políticos como patrimônio de grupos sociais historicamente privilegiados.

Em oposição à democratização do acesso, professores, estudantes e outros setores vinculados às corporações profissionais protagonizaram a mais face reacionária de uma sociedade que se viu ameaçada com o ingresso de estudantes com outras experiências, conhecimentos, valores e saberes. A reação desses setores foi imediata, discriminatória e violenta.

Com a complacência da grande mídia, o ataque a estudantes cotistas, jovens feministas, médicos cubanos, imigrantes, população LGBT, pessoas com deficiência, estimula a propagação do preconceito que se alastra por meio das redes sociais e abre uma batalha sem limites para o ódio que transborda na sociedade.

Esse ataque sem medo se refletiu em consultas médicas, hospitais, tribunais, salas de aula, estabelecimentos comerciais, onde se reproduzem manifestações racistas, misóginas, lgbtfóbicas, discriminatórias e excludentes. Não há dúvidas de que a violência contra as mulheres, o estupro, o estupro coletivo, foi estimulado como punição às mulheres que conquistaram a lei Maria da Penha e a lei do feminicídio.

O golpe de 2016 retroagiu em relação às políticas sociais.

A ofensiva da direita que tomou o poder no País e que avança em toda América Latina não apenas defende as desigualdades como justas e necessárias, como impõe um aprofundamento dessas desigualdades com a consecução da agenda neoliberal.

Trata-se de uma ação demolidora do poder oligárquico que se apodera de tudo e, sem qualquer concessão, impõe sacrifícios aos trabalhadores e trabalhadoras que estão perdendo todos seus direitos, como férias, licença gestante, carteira assinada, décimo terceiro, jornada de trabalho de 8 horas diárias e, ainda, estão perdendo seu poder de negociar.

Nessa lógica, que também retirou os recursos das políticas de saúde, educação e assistência, para justificar a ausência do Estado, especialistas de propaganda produziram discursos sobre o que interessa ao país, que marginalizam adolescentes e jovens, especialmente negros e negras, excluídos e condenados ao encarceramento e ao extermínio nas cidades brasileiras.

A conjuntura política retrata o governo corrupto e ilegítimo que não tem qualquer compromisso social e atropela sem medo qualquer norma ou conduta que atrapalhe seu objetivo explícito de favorecer os interesses do grande capital, com concessões aos bancos e aos latifundiários.

Embora não obtenha índices mínimos de aprovação, esse governo representa as velhas oligarquias que dominam o país e está protegido pelo poder da mídia que não pauta as questões sociais e naturaliza a exclusão extrema de amplas parcelas da população relegadas à miséria e abandono absolutos.

Boaventura Souza Santos traduziu bem esse fenômeno em seu conceito de “dronização do poder”, ou seja, quando a desigualdade é tão grande que quem tem mais poder deixa de ter medo de quem tem menos poder e o governo não tem medo de represálias e de ser atingido. Ele inclui nesse conceito o poder midiático, exercido sem medo da resistência, que passa por cima da democracia para atingir o que quer.

Por isso, agora a exigência é fortalecer a democracia, uma democracia “intensa”, participativa, que imponha derrotas às políticas neoliberais que restringem os direitos e estão em franca conciliação com a extrema-direita.

Essa conjuntura não é favorável, cada vez mais as forças ultraconservadoras se juntam para ofuscar e apagar a democracia, como se observa com os projetos chamados de “escola sem partido” que tentam impor um currículo dito apartidário para eliminar a perspectiva do pensamento crítico nas escolas e universidades brasileiras, instituindo censura, denúncia e punição para gestores e educadores que abordem questões políticas, religiosas, gênero e sexualidade.

Nesse contexto avesso aos valores democráticos, devemos construir a unidade das esquerdas e promover a formação de uma frente ampla de defesa da democracia que inclua a pauta anticapitalista, a luta contra o racismo, o machismo e todas as formas de colonialismo que se reforçam no Brasil.

Esse esforço conjunto para promover a mobilização não se restringe aos objetivos das eleições diretas ou da disputa em 2018, deve ter como prioridade a participação dos movimentos, o fortalecimento do diálogo e das relações com as bases sociais que se unem para lutar contra as políticas neoliberais.

*Paulo Pimenta é jornalista e deputado federal pelo PT-RS

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Comentários

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Claudio

Excelente análise. As esquerdas tem que ter maturidade para entender a extensão e a complexidade destes tempos de ofensiva bárbara do capital. Sem isso, a desigualdade não só será imposta como natural na sociedade , como será aprofundada. Sem falar nas questões ambientais, que não foram muito aprofundadas neste belo artigo, mas são uma das últimas fronteiras de super expropriação do capital e que põe em risco a própria habitabilidade do planeta a curto prazo.

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