Wellington Lima Amorim: Deus não puxou o gatilho; apenas desarmou

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Deus não puxou o gatilho; apenas desarmou

Por Wellington Lima Amorim*, no site da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal)

Há cenas que suspendem o ruído do mundo. Uma delas nasce do gesto nu, sem cálculo, quando a vida decide intervir em favor da vida.

Foi assim quando Ahmed Al Ahmed, sírio, muçulmano, estrangeiro em muitos sentidos, correu contra o estampido das balas e desarmou um atirador na Austrália.

Não perguntou nomes, não sondou crenças ou mediu fronteiras. Diante dele estavam jovens, mulheres e idosos judeus e isso bastou, porque a consciência moral, quando desperta, não negocia com identidades; ela age.

Há quem chame isso de heroísmo. Talvez seja mais exato chamar de ética em movimento.

A coragem de Ahmed não brotou de um credo contra outro, nem de uma bandeira contra outra, mas do que Hannah Arendt chamaria de juízo, aquele instante em que o humano decide responder ao mundo sem terceirizar a responsabilidade.

O corpo vai antes da ideologia e o cuidado antecede o discurso. O gesto acontece porque alguém está caindo. Essa cena, em sua brutal simplicidade, expõe o contraste doloroso do nosso tempo.

Enquanto um homem formado na travessia da guerra e do exílio escolhe salvar vidas alheias sem perguntar “de quem são”, líderes e aparelhos de poder preferem a gramática da abstração: “alvos”, “danos colaterais”, “necessidades estratégicas”.

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A consciência moral é substituída por relatórios; a carne, por mapas; o choro, por comunicados.

É nesse ponto que a pergunta retorna, insistente: de onde era Cristo e com quem ele estaria hoje?

Permita-me a digressão, geograficamente e apenas nesse registro, que exige cuidado, pode-se dizer que Jesus Cristo nasceu e viveu numa faixa de terra que hoje corresponde, em grande medida, à Palestina histórica: Belém, Nazaré, Jerusalém.

Trata-se, porém, de uma aproximação espacial contemporânea, não de uma definição histórica rigorosa. No século I, não havia “Palestina” como entidade política; havia muitas entidades nas formas de cidades-estado ou pequenos reinos, não raro existentes por curtos períodos em parcelas deste território, a Judeia romana uma delas, território ocupado, governado por um império que conhecia bem a pedagogia da violência.

Quando a afirmação “Cristo era palestino” surge, ela raramente pretende descrever o passado. Ela interpela o presente. Funciona como gesto simbólico que recoloca Jesus ao lado dos povos subjugados, dos corpos vulneráveis, dos que vivem sob ocupação e conhecem o império não por tratados, mas por feridas.

Os Evangelhos não deixam dúvida: Jesus não administra a estrada; ele se inclina sobre o homem espancado à beira dela. Sua ética não legitima massacres, não santifica cercos, não confunde promessa com extermínio.

Por isso, a contradição se torna quase insuportável quando cristãos defendem ações genocidas levadas a cabo pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Não se trata de uma divergência política comum, mas de uma fratura teológica.

O Cristo crucificado não pode ser convertido, sem violência simbólica extrema, em avalista de uma máquina que normaliza a morte e a desumanização sistemática. Não há segurança construída sobre cadáveres e muito menos justiça que sobreviva ao hábito de matar.

E por isso precisamos pensar cristianamente sobre o gesto de Ahmed. O que se aprende quando um sírio muçulmano salva judeus?

Que a ética não é patrimônio de Estado nem monopólio de identidade, especialmente porque a dignidade não admite exceções, sobretudo que qualquer política que normalize o massacre, notadamente quando se veste de inevitabilidade histórica, fracassa no exame mais elementar do humano.

Nesse sentido mais profundo, eu digo que ali se manifestou o Deus Cristão. Isto não é blasfêmia nem apropriação indevida, mas fidelidade ao escândalo do Evangelho. Porque, se Deus se manifesta, não o faz nos cálculos estratégicos, nem nos discursos que racionalizam a morte, mas no gesto que interrompe a violência.

O cristianismo, quando levado a sério, desloca o sagrado para onde menos convém ao poder: no caso de Ahmed, o Deus Cristão se manifestou no seu corpo mulçumano que se arriscou para salvar outros corpos judaicos, apenas desarmando, sem puxar o gatilho.

Há um humanismo silencioso nesse ato, sem palco, selfie, decreto ou espetáculo. Ele lembra que a história não avança apenas pelas decisões dos gabinetes; mas avança, às vezes, pelo impulso anônimo de quem se recusa a aceitar que a morte seja o argumento final. Quando a política falha, a ética comparece.

Quando a ideologia cega, a consciência vê. Que essa tragédia nos ensine, ao menos, isto: não é a identidade que salva; é a decisão. E que os que hoje justificam massacres aprendam com um homem que, em segundos, fez mais pela paz do que discursos inteiros armados até os dentes.

*Wellington Lima Amorim é psicanalista e professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pós-doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em desenvolvimento regional pela Universidade do Contestado (UNC), doutorado interdisciplinar em ciências humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestrado em filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Tem especializações em Teoria e Clínica Psicanalítica pela Universidade Celso Lisboa e sobre Ensino de Filosofia pela UNISINOS e é membro da Academia do Escritores do Litoral Norte do Rio Grande do Sul e psicanalista pelo Instituto Távola/Ribeirão Preto-SP.

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