Noam Chomsky: Depois das não-pessoas, os não-eventos

Tempo de leitura: 5 min

Aniversário dos “Sem-história”

6 de Fevereiro de 2012

Por Noam Chomsky, no Truthout

George Orwell cunhou o termo “não-pessoa”, muito útil para as criaturas que têm suas existências negadas porque não toleram a doutrina do estado. Podemos somar o termo “sem-história” para nos referir às não-pessoas expurgadas da história em bases semelhantes.
A falta de história das não-pessoas ganha destaque nos aniversários de morte. Os importantes são, normalmente, comemorados com solenidade quando é apropriado: Pearl Harbor, por exemplo. Alguns não são, e podemos aprender muito sobre nós mesmo retirando-os da lista dos sem-história.

Neste momento não estamos marcando um evento de grande significado humano: o aniversário de 50 anos da decisão do Presidente Kennedy de deflagrar uma invasão direta no Vietnã do Sul, que logo se tornaria o caso de crime de agressão mais extremo desde a Segunda Guerra Mundial.

Kennedy mandou a Força Aérea bombardear o Vietnã do Sul (em Fevereiro de 1962, centenas de missões já tinham voado); autorizou a guerra química para destruir as plantações e matar de fome até a submissão a rebelião popular; e deu início ao programa que em última análise expulsou milhões de moradores do campo para as favelas dos centros urbanos, virtuais campos de concentração, ou “Hamlets Estratégicos”. Lá, os moradores estariam “protegidos” da guerrilha que, como a administração americana sabia, eles estavam dispostos a apoiar.

Esforços oficiais para justificar os ataques eram fracos e mais do que tudo, fantasiosos. Foi típico o discurso do presidente para a Associação Americana de Editores de Jornais, no dia 27 de Abril de 1961, quando ele avisou que “nós enfrentamos um movimento de oposição no mundo, uma conspiração monolítica e sem lei, que se apoia, principalmente, em métodos secretos para expandir sua esfera de influência”. Nas Nações Unidas, em 25 de Setembro de 1961, Kennedy disse que se a conspiração alcançasse seus objetivos em Laos e no Vietnã, “as cercas seriam escancaradas”.

O resultado de curto prazo foi documentado pelo muito respeitado especialista em Indochina e historiador militar Bernard Fall – nenhuma pomba (pacifista), mas um desses que se preocupava com as pessoas de países atormentados.

No começo de 1965 ele estimou que cerca de 66.000 vietnamitas do sul tinham sido assassinados entre 1957 e 1961; e outros 89.000 entre 1961 e Abril de 1965, quase todos vítimas do regime cliente dos EUA ou “do peso massacrante das armaduras americanas, do napalm, dos bombardeiros aéreos e, finalmente, dos gases que provocam vômitos”.

As decisões foram mantidas nas sombras, como são as consequências, que persistem. Para mencionar apenas um exemplo: “Schorched Earth”, de Fred Wilcox, o primeiro estudo sério do impacto horroroso e persistente da guerra química contra os vietnamitas, surgiu há poucos meses – e provavelmente vai se juntar a outros trabalho de não-história. O cerne da história é o que aconteceu. O cerne da não-história é fazer “desaparecer” o que aconteceu.

Em 1967, a oposição aos crimes cometidos no Vietnã do Sul atingiu uma escala importante. Centenas de milhares de tropas americanas estavam agindo de forma destrutiva no Vietnã do Sul e áreas de grande densidade populacional eram vítimas de bombardeios intensos. A invasão tinha se espalhado par ao resto da Indochina.

As consequências se tornaram tão horrendas que Bernard Fall previu que “o Vietnã, como entidade cultural e histórica… está ameaçado de extinção…, enquanto o campo literalmente morre sob os ataques da maior máquina militar jamais lançada contra uma área deste tamanho”.

Quando a guerra terminou oito devastadores anos mais tarde, a opinião majoritária estava dividida entre os que a chamavam de uma “causa nobre” que poderia ter sido vitoriosa com mais dedicação; e o extremo oposto, os críticos, para os quais havia sido “um erro” que se mostrou muito caro.

Ainda estava por vir o bombardeio da sociedade camponesa do norte do Laos, de uma magnitude que as vítimas passaram anos vivendo em cavernas para sobreviver; e pouco depois o bombardeio da zona rural do Camboja, que ultrapassou o nível da soma dos bombardeios aliados no Pacífico, durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1970, o Assessor de Segurança Nacional dos EUA, Henry Kissinger, ordenou “a campanha de bombardeio massivo no Camboja. Tudo que voa em tudo que se move” – uma ordem de genocídio como raramente se viu em documentos arquivados.
Laos e Camboja eram “guerras secretas”, nelas a documentação era escassa e os fatos ainda são pouco conhecidos do público geral e até mesmo das elites educadas que, ainda assim podem recitar de memória os crimes, reais ou alegados, dos inimigos oficiais.

Em três anos nós poderemos –  ou não – comemorar outro evento de grande relevância contemporânea: o aniversário de 900 anos da Carta Magna.

Este documento é a fundação do que a historiadora Margaret E. McGuiness, ao se referir aos julgamentos de Nuremberg, aclamou como “um tipo de legalismo particular dos americanos: punição apenas para os se podia provar que eram culpados através de um julgamento justo com uma panóplia de proteções processuais”.

O Grande Capítulo declara que “nenhum homem livre” deve ser privado de direitos “com exceção do julgamento legal de seus pares e da lei local”. Os princípios foram expandidos depois para se aplicarem aos homens em geral. Eles cruzaram o Atlântico e entraram na constituição dos EUA e na Lei dos Direitos, que declarou: nenhum pessoa pode ser privada de seus direitos sem o devido processo e julgamento rápido.

Os fundadores (da democracia americana), claro, não tinham a intenção de usar o termo “pessoa” para designar todas as pessoas. Os índios americanos não eram pessoas. Nem os escravos. As mulheres raramente eram pessoas. Ainda assim, vamos nos prender ao cerne da noção que presume inocência, o que foi relegado a categoria de não-história.

Um passo mais adiante, para minimizar os princípios da Carta Magna, foi dado quando o Presidente Obama assinou o Ato de Autorização da Defesa Nacional, que codifica as práticas de Bush-Obama para prender indefinidamente, sem direito a julgamento, sob custódia militar.

Esse tratamento agora é obrigatório nos casos do acusados de ajudar as forças inimigas durante a “guerra ao terror”, ou são opcionais se os acusados forem cidadãos americanos.

A dimensão da medida é ilustrada pelo primeiro caso de Guantánamo a ser julgado durante a administração Obama: o de Omar Khadr, um ex-soldado criança acusado de crimes hediondos ao tentar defender a vila afegã onde morava quando ela foi atacada por forças dos EUA. Capturado aos 15 anos, Khadr ficou preso, durante oito anos, em Bagram e Guantánamo, até ser levado a um tribunal militar, em Outubro de 2.10, quando pode escolher entre se declarar inocente e ficar para sempre em Guantánamo ou se declarar culpado e servir mais outo anos. Khadr escolheu o último.

Vários outros exemplos ilustram o conceito de “terrorista”. Um deles é o de Nelson Mandela, retirado da lista de terroristas apenas em 2008. Outro foi Saddam Hussein. Em 1982 o Iraque foi retirado da lista de estados que apoiam o terrorismo para que a administração Reagan pudesse fornecer ajuda a Hussein, que acabara de invadir o Iran.

Acusações são caprichosas, sem revisão ou recursos, e comumente refletem objetivos de política – no caso de Mandela, para justificar o apoio do Presidente Reagan aos crimes do Estado de Apartheid para se defender do “grupo terrorista mais notório do mundo”: o Congresso Nacional Africano de Mandela.

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Comentários

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Os sem-história, por Noam Chomsky « Revista Sofós

[…] Noam Chomsky: DEPOIS DAS “NÃO-PESSOAS”, OS “NÃO-EVENTOS” […]

Mateus_Beatle

Ótimo texto.
Obrigado a Heloisa por traduzí-lo e ao blog por partilhá-lo!

Bernardino

OS EUA SAO BANDIDOS e bandido so respeita a FORÇA.OI PEquenini VIETNAM expulsou a França na decada de 50 e depois venceu e desmoralizou os IANQUES numa verdadeira reediçao de David X GoliasO KENNEDY era u m GAlinha na CAsa Brancoa,tomou bala na cara e se foi!!Pena que nao fizeram ao BUSH
OS EUA so invadesm paises indefesos tipico de Covardes.Em 2008 o KIM da Coreia sotou um Missil que com alcande de 3000 km e detonou sua bomba atkomica e diss aos Ianqque se entrarem aqui nao sai um vivo.Prendeu uma jornalista americana por 1 ano ,so soltou pq o CLinton foi la pedir!!!
NELSON a tua ideia de todos sentarem-se para se desarmar so acontecerá quando Sargento GARCIA prender o ZORRO!!Quer a `Paz prepara-te para a GUERRA,meu filho!!
RUSSIA CHINA E INDIA eles nem pensam em entrarem la Pq TIO SAM iria ao Espaço.SABE onde eles entram numa boa ? Aqui nesta pocilga Brasil! A populaçao frouxa e despreparada alem das Forças Armadas que num ato deCovardia se livraram do Program NUCLEAR a mando dos EUA,some-se a isso uma ijmprensa corrupta e a classe media e elite lambe botas do TIOSAM.Só tinha o LOTT e o GEISEL valentes e anti americanos !!

Lucas Secanechia

Como o PT pregando a não-eventualidade das privatizações que ocorreram esta semana, sendo que há fotos, vídeos e manifestações claras do ocorrido por arte de petistas.

Jose Mario HRP

Kennedy era a maior farsa das tantas, norte americanas, que nos impuseram goela abaixo!
Foi tarde pro Umbral de onde espero não sai tão cedo!

Nelson

Mais uma verdadeira aula de História do mestre Noam Chomsky. De quebra, o linguista ainda desmistifica a tão decantada democracia estadunidense ao mostrar que ela era capenga já no seu nascedouro; seu próprios fundadores admitiam a odiosa discriminação aos negros e aos indígenas e até mesmo às mulheres.

jaime

A existência do comunismo para ser combatido era tudo o que os norte americanos pediram a Deus; com isso, a indústria de armamento e toda a tecnologia necessária podia se desenvolver e se espraiar pela economia como um todo. Politicamente, o discurso de que estava sendo combatido um regime truculento e economicamente ameaçador justificava todas as ações. Só que esse combate se deu com a emulação dos métodos de um e outro lado, e nesse processo o regime estadunidense se tornou igual ou pior do que aquilo que eles diziam combater. A maior democracia do mundo! Me poupe. No momento, a guerra ao terror assumiu o papel da antiga União Soviética e assim, sucessivamente, motivos e mais motivos sempre surgirão para perenizar a indústria bélica e seus "benefícios".

    Nelson

    Meu caro Jaime.
    No pequeno mas brilhante livro "O Teatro do Bem e do Mal", o jornalista e escritor uruguaio, Eduardo Galeano, escreve: "A indústria de armas precisa de guerras assim como a indústria de casacos precisa de invernos".
    Por isso, ou os povos do mundo inteiro passam a discutir, fraternamente, um acordo para o fechamento completo de todas as fábricas de armas ou nunca teremos a paz que almejamos.

    luiz pinheiro

    A indústria bélica leva vantagem, porque inverno é só durante um quarto de cada ano, mas guerra é sempre o ano inteiro, desde que eu nasci, na década dos 50. Praticamente todo dia, de toda semana, de tiodo mes, de todo o ano, os caças dos USA, com ou sem piloto, estão sempre bombardeando algum povo, alguma cidade, alguma aldeia, alguma aglomeração humana, pelos vários continentes do planeta.

Burgos Cãogrino

L.C.Azenha

Excelente post, muito obrigado.
É impressionante o massacre que o Império Americano vem fazendo ao longo de décadas, a omissão da ONU em relação a isso é mais revoltante ainda.
Essa é a "liberdade" que os americanos tanto se orgulham? Liberdade para matar!!!!!
Um governo saguinário e um povo que tem orgulho em urinar em cima das vítimas.

Um abraço

    Waldemar Yotoshi

    Há outras penas severas contra aqueles que aproveitam da força que tem e impõe-se de maneira covarde. O fim está próximo!

Renato

Apagar e deturpar a história tem sido a tônica das potências imperialistas. Nos Estados Unidos isto ocorre desde a "Rev olução Americana" ( ver livros de Ray Raphael). Em livros didáticos europeus já se observa uma certa "humanização" da expansão imperialista europeia na África e na Ásia. Nos países ibéricos o genocídio dos ameríndios e o tráfico de escravos ocupam espaços marginais. A direita brasileira, com o apoio da Revista Veja e dos jornalões tradicionais, realizam reportagens e elogiam obras consideradas revisionistas."Em Palmares existiam escravos"; ' A economia chilena no governo Allende era um fracasso"; "Os horrores da ditadura cubana"; "Relatos inéditos sobre a vida nos Gulags" e por aí afora. Na academia, com exceções, há yuma subserviência ao autor X ou ao autor Y, realizam-se "colóquios", "congressos" nos quais proliferam discussões bizantinas. Pior, tais "eventos" são realizados com dinheiro público. Cadê os intelectuais engajados?

    Regina

    A ditadura acabou com eles. Depois a assunção da idéia de que o modelo imperialista era o suprasumo…. Poxa, ainda tem milhares de pessoas que acham que os EUA são o que existe de perfeição … COnheço uma pessoa que evito ter qq tipo de contato pois o mínimo que ela acha é que os EUA são os guardiões da democracia. A última palavra é deles.

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