Lelê Teles: O dia em que o povo foi expulso da capital federal; vídeos

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A construção do operário

“No primeiro dia de Brasília, o povo subiu nos edifícios da Câmara e do Senado. Muita alegria. Nunca
mais!” (Thomaz Farkas)

Por Lelê Teles*

os anos ‘60 do século XX marcam o período de transição entre o Brasil urbano e o rural.

brasília, a cidade-presépio, é o maior símbolo dessa mudança.

aproximadamente 60 mil homens, analfabetos quase todos, e quase todos oriundos das zonas rurais, gente com desconhecimento de máquinas pesadas, desses que nunca viveram em casas de alvenaria, migraram para uma região remota e inabitada do Brasil, para o Brasil profundo, com a missão de construir a nova capital do país.

mais que isso, vieram para erigir palácios flutuantes, catedrais e outras edificações monumentais; vieram erguer, enfim, no planalto central brasileiro, uma das mais belas e modernas cidades do mundo.

trabalhando diuturnamente na construção civil, esses heróis de pele escura labutavam num ofício reconhecidamente perigoso e inseguro, e faziam isso de mãos nuas, usando chinelo de dedo e chapéu de palha.

não é difícil imaginar que eram muitos e constantes os acidentes de trabalho, produzindo escoriações, mutilações e mortes.

a hercúlea tarefa tinha dia e hora para terminar e o prazo era curto.

quatro anos para se edificar uma cidade com edifícios públicos, escolas, estradas, avenidas, hospitais, teatro, hotéis, moradias, rede de esgoto e de eletricidade etc.

pode-se fazer uma pergunta que já deveria ter sido feita antes e, aliás, deveria fazer parte das questões profundas e permanentes sobre a construção da capital federal: o que era feito com os mutilados? como eram amparados?

e os mortos? será que os peões paravam de trabalhar para velar e enterrar um colega?

como sobreviveram os considerados inaptos para continuarem no trabalho árduo?

muita gente trabalhava de oito a dez horas por dia, o sono e o cansaço eram também fatores determinantes de acidentes.

a comida nem sempre era boa, e o cafezinho muitas vezes vinha batizado com uma droga que fazia os quase mortos se levantarem.

no carnaval de 1959, os trabalhadores se rebelaram por não aguentarem mais comer arroz duro e feijão azedo e decidiram grevar.

as forças policiais foram chamadas, e abriram fogo contra os miseráveis, um caminhão basculante se encarregou de sumir com os corpos, até hoje ninguém sabe quantos morreram.

na verdade, para construir a cidade-presépio, homens foram utilizados como se fossem máquinas.

desumanizaram os retirantes nordestinos para extrair deles o máximo de produtividade.

chegaram mesmo a forjar um gentílico para defini-los, desterrando-os de suas origens e anomizando-os na nova denominação que vieram a ter: não eram mais sergipanos, piauenses ou goianos, agora eram todos candangos, um novo povo que nascia em um canteiro de obras.

na construção dessa cidade monumental, homens foram transformados em alicerce, o seu sangue e o seu suor se misturaram à argamassa, os seus ossos e carnes foram triturados com cascalho, saibro e cimento, juntados com ferragens.

do chão seco, estéril e poeirento do planalto central, brotaram majestosos monumentos, como magníficas plantas de concreto, cujas raízes são gente humana, gente humilde.

gente que foi solenemente ignorada após a construção da cidade.

o estado brasileiro foi tão insensível ao ponto de deixar que os alegres construtores da capital se convertessem, logo que a cidade ficou pronta, em miseráveis sem-teto.

os que conseguiram sobreviver se amontoaram ao redor da cidade-presépio, anonimados, como lixo humano, verdadeiros restos de construção, mendigando as migalhas rejeitadas pelos abastados.

os que tiveram mais sorte viraram porteiros (dos prédios que construíram), motoristas, garçons, padeiros, pedreiros, pintores, ascensoristas: abre-portas, limpa-chãos, lambe-botas.

o expurgo desses construtores, largados ao relento no meio do cerrado virgem, parece uma versão ampliada do terrível “bota abaixo”, realizado pelo prefeito do rio de janeiro, o infame pereira passos (1902-1906).

passos, no afã de europeizar o então distrito federal, mandou abrir largas avenidas, mas para isso determinou que vilas, cortiços e casebres fossem demolidos, vomitando seus habitantes pobres para fora do projeto modernoso.

no brasil a infâmia sempre se repete.

palavra da salvação.

“tá vendo aquele edifício moço? Ajudei a levantar”, canta zé geraldo, letra e música de lúcio barbosa.

*Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista.

 

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Zé Maria

Brasília é o Distrito Federal, mas o Distrito Federal (DF) não é só Brasília (BSB.
Além do Plano-Piloto, que é a cidade planejada, a BSB propriamente dita,
hoje existem Mais de 3 Dezenas de Regiões Administrativas* Periféricas
onde habitam os Herdeiros dos Chamados Candangos, os Operários que
migraram desde o norte de Minas Gerais, das Regiões Nordeste e do Norte
do País, para construírem a Grande Obra Arquitetônica inaugurada em 1960.

Foram os Candangos que, no Dia 1º de Janeiro de 2023, subiram a Rampa do Palácio do Planalto para passar a Faixa Presidencial ao Presidente LULA.
E que, infelizmente, viram sua Obra ser invadida e depredada por uma Horda
Alienígena Ensandecida, por ordem dos Generais que tomaram conta de BSB.

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