Jeferson Miola: O salvacionismo militar em tempos de barbárie do capitalismo

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A Alemanha vai extinguir parte da KSK, sua tropa de elite, por infiltração neonazista; o soldado belga Jurgen Conings fugiu do quartel com quatro lançadores de mísseis e se tornou herói da extrema-direita no país; 40% dos soldados franceses da Força Nacional votam no partido de Marine Le Pen

A barbárie capitalista e o papel contemporâneo das Forças Armadas

Por Jeferson Miola, em seu blog

A escalada militarista no Brasil desperta enorme atenção mundial. Não bastasse o componente militar em si, muitos elementos presentes na dinâmica política brasileira têm parentesco com a emergência e a evolução do fascismo e do nazismo na Europa dos anos 1920 a 1945, assim como com a atual expansão da extrema-direita e do neofascismo em vários países.

É essencial estudar-se e entender-se o fenômeno brasileiro na sua complexidade. Ao lado disso, é importante também alargar-se o campo de análise com o objetivo de desvendar a eventual existência de fios de conexão entre o “caso brasileiro” e lógicas militaristas também presentes nas realidades de potências capitalistas centrais, como a Alemanha, França e EUA.

É necessário averiguar-se qual tem sido, ou qual passará a ser, no mundo contemporâneo, o papel das Forças Armadas diante da espiral de conflitos e dramas abertos pelo agravamento da crise estrutural do capitalismo na sua etapa neoliberal ultra-avançada.

Na Alemanha, a infiltração de terroristas e extremistas nazistas nas forças policiais e militares, inclusive nas unidades especiais e de elite, é assombrosa.

O poder político civil, por meio do Estado, exerce rigoroso monitoramento de comportamentos e do ambiente nestas estruturas.

O partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha [AfD], fundado há menos de uma década, avança dando voz pública e reverberando visões propaladas por estes grupos infiltrados, que são incompatíveis com um padrão democrático e civilizatório.

O presidente da agência de inteligência alemã Thomas Haldenwang identifica a escalada extremista no seio de instituições militares e policiais como o “maior perigo para a democracia alemã hoje”.

A França foi sacudida em abril passado pela surpreendente publicação de manifesto na revista de extrema-direita Valleurs Actuelle.

Nele, militares da reserva defenderam intervenção militar para “salvar o país” do risco de perda da identidade nacional e cultural que poderá levar a França a uma guerra civil [sic].

Muçulmanos e imigrantes que formam a nacionalidade francesa são, portanto, indesejáveis e o destino preferencial do ódio de extremistas.

No início de maio um segundo manifesto – desta vez publicado por militares ditos da ativa – reivindicou a necessidade de intervenção militar para evitar uma guerra civil e garantir a “sobrevivência” da sociedade francesa, abalada por supostas “concessões feitas ao islamismo pelo governo francês”.

A líder da extrema-direita Martine Le Pen capturou rapidamente os movimentos extremistas, e convidou-os a se somarem à sua campanha presidencial de 2022, que deverá propor uma agenda de governo com forte conteúdo xenofóbico e racista.

Nos EUA, merece ser revisitado o pedido de desculpas do chefe do Estado Maior por ter acompanhado o então presidente Trump em evento para simbolicamente intimidar o movimento antirracista que tomava o país em protesto pelo bárbaro assassinato do cidadão negro George Floyd.

É preciso, evidentemente, louvar a autocrítica do general Mark Milley no episódio. Mas é de se especular, hoje, o que levaria o chefe de Estado da potência imperial a cogitar o uso da mais poderosa e imbatível força militar do planeta para ostentar autoridade e poder dissuasivo não perante inimigos externos, mas perante seu próprio povo, que se encontrava em protesto pacífico e democrático.

Tanto nas economias capitalistas centrais como no periférico Brasil, a presença das Forças Armadas ganhou intrigante proeminência no século

Em todos estes casos, mesmo nos EUA, país em guerra permanente contra tudo e contra todos, as razões do neo-militarismo não são eventuais conflitos bélicos contra inimigos externos, mas tem o propósito de conter inimigos internos; ou seja, o próprio povo.

Quais fatores ajudam explicar este fenômeno que tem desafiado a democracia e aprofundado a tendência global crescente de desdemocratização?

Existem elementos comuns que permitem compreender estes processos que acontecem, cada qual com suas lógicas particulares, tanto no centro como na periferia do capitalismo?

Uma possível pista explicativa pode ser acessada nos estudos do professor Marildo Menegat, da UFRJ, que identifica no atual estágio de ultra-financeirização do capitalismo uma potente fonte constante de instabilidade, crise, violência e barbárie [A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe, Consequência Editora].

Marildo centra sua obra no exame dos efeitos da crise da produção e da reprodução do valor, que faz com que neste estágio ultra-financeirizado do capitalismo, a produção da mais-valia prescinda da exploração central da força de trabalho humano.

O capitalismo alcançou tal nível de produção e de reprodução do dinheiro por meios “endógenos” [derivativos, sofisticada especulação etc] que dispensa a necessidade do trabalho humano para produzir mais capital, que é cada vez mais fictício e menos ancorado na produção real.

Cada vez mais o capitalismo, enquanto sistema mundial integrado, dispensa a necessidade de bilhões de seres humanos para serem explorados como força de trabalho.

A pandemia, além disso, com o aperfeiçoamento das tecnologias e a aceleração do uso da inteligência artificial, da nanotecnologia, da robótica e outras técnicas, antecipou para o tempo imediato muitas tendências de fenômenos estimados para ocorrerem somente a partir das próximas décadas.

Do ponto de vista do capital, portanto, o extermínio de metade da população planetária seria uma medida saneadora e profilática para o capitalismo, embora possa gerar alguma comoção a “espíritos mais sensíveis”.

O imenso exército industrial de reserva deixou de ser um fator funcional para regular a exploração e a remuneração do trabalho, e passou a ser um estorvo à funcionalidade do sistema capitalista.

A necropolítica, neste contexto, é o método estatal de execução permanente e furtiva deste descarte humano em larga escala – que o diga o povo negro brasileiro.

Sociedades com enormes contingentes de humanos descartáveis convivem com conflitos, tensões e violência cada vez mais exacerbados. Se agrava em todo o mundo a miséria, a fome e o desamparo para imensas maiorias populacionais, ao passo que a riqueza, a renda, o dinheiro, o poder e o capital ficam cada vez mais concentrados nas mãos de menos de 2% dos habitantes do planeta.

No Brasil, o contingente de desempregados, desalentados, subempregados, famélicos, subnutridos, desesperados, desvalidos etc, alcança mais de 110 milhões de pessoas.

Esta mais da metade da população brasileira, se exterminada, não faria nenhuma falta ao sistema, tanto que hoje já não fazem falta, porque pertencem a uma geração perdida, que não terá ocupação produtiva e dependerá de socorro oficial para a sobrevivência precária.

Por isso a multiplicação por 20 vezes do genocídio promovido pelo governo militar com a pandemia propiciaria uma “profilaxia e limpeza” benéfica ao sistema.

Em sociedades assombradas pelo risco iminente de explosão de conflitos desesperados, as Forças Armadas são chamadas pelas suas oligarquias a exercerem um papel decisivo na contenção da revolta dos excluídos, convertidos em inimigos internos.

Os estamentos militares, neste sentido, atuam como exércitos de ocupação dos próprios países para manter o padrão de dominação e exploração com base na repressão e no controle.

A defesa do sistema se dá, então, por meio da violência estatal e do terror de Estado contra o próprio povo.

Este é o sintoma da emergência das Forças Armadas nacionais como atores centrais para a administração do Estado em circunstâncias de revolta e de luta por mudanças sociais.

Seguindo a linha de estudo de Marildo Menegat, com a ultra-financeirização capitalista e suas consequências catastróficas, as Forças Armadas, as polícias militares e as milícias passam a exercer papel central na “gestão violenta da barbárie”.

No “caso brasileiro” esta realidade é ainda mais perturbadoramente dramática, porque boa parte dos generais que comandam o governo militar e mandam de fato no país carregam nos seus currículos a atuação como force commanders em missões internacionais no Haiti, onde foram adestrados a governar numa perspectiva contra-insurgente, de repressão, asfixia social e extermínio popular.


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