Jeferson Miola: A estratégia de Putin e a agonia do poder imperial e unipolar dos EUA

Tempo de leitura: 4 min
Vladimir Putin e Xi Jinping por ocasião dos Jogos de Inverno, em Pequim. Foto: Reprodução Youtube

A estratégia de Putin e a agonia do poder imperial e unipolar dos EUA

Por Jeferson Miola, em seu blog

Por meio dos monopólios hegemônicos de comunicação, os EUA e aliados europeus tentam emplacar uma narrativa que estigmatiza a Rússia pelos acontecimentos na Ucrânia.

Para isso, retomam a cartilha maniqueísta da guerra fria e se apresentam como os mocinhos heróicos que protegem a Europa e o mundo ocidental das ameaças dos “bárbaros caucasianos”.

Os precedentes do atual conflito evidenciam, porém, que a realidade é bastante diferente da versão propagada pelas grandes potências ocidentais e mídia hegemônica.

Nos anos 2012/2013, no contexto da ofensiva para expandir os domínios da influência imperial estadunidense no leste europeu e aumentar o cerco estratégico-militar da OTAN à Rússia, os EUA financiaram e instrumentalizaram agrupamentos de ultradireita, em grande número integrados por neonazistas, com o objetivo de desestabilizar o governo pró-russo de Viktor Yanukovytch.

Em novembro de 2013 a onda desestabilizadora desaguou em um “movimento cívico” nos mesmos moldes das “primaveras árabes” e das “jornadas de junho do Brasil”. Este movimento em nada cívico, porque incensado desde o estrangeiro, exigia a integração da Ucrânia com a União Europeia e o ingresso do país na OTAN.

Não por coincidência, as reivindicações da Euromaidan – Europraça, em ucraniano, como ficou conhecida a onda de protestos na Ucrânia – eram exatamente as mesmas de outros movimentos e processos estimulados e financiados pelos EUA mundo afora: corrupção, crise econômico-social e violação dos direitos humanos.

Com a escalada golpista e o ascenso de movimentos independentistas e separatistas de resistência, o país ficou fraturado e dividido. Em fevereiro de 2014, o presidente Viktor Yanukovytch foi destituído em um processo de impeachment que foi classificado como golpe de Estado pelo governo russo.

Como a intromissão na Ucrânia, os EUA e aliados europeus finalmente conseguiram instalar no comando do país um governo anti-Rússia e pró-OTAN.

Mais além da identidade étnica-cultural e do mercado de consumo de cerca de 44 milhões de pessoas, a Ucrânia é central para os russos, pois conforma o extenso cinturão de segurança na fronteira da Rússia.

A Ucrânia legou da era soviética a indústria aeronáutica e de alta tecnologia e é importante produtor de alimentos do mundo. O gasoduto que ainda transporta o maior volume do gás russo vendido à Europa atravessa o território ucraniano. Já está finalizada, mas pendente de certificação pela Alemanha para iniciar as operações, a linha Nord Stream2 do novo gasoduto, de 1.224 Km, através do Mar Báltico e não pelo território ucraniano.

Empresas estadunidenses como a Chevron e a Exxon Mobil possuem contratos de pesquisa, extração e exploração de gás na Ucrânia. Além dos lucros extraordinários destas multinacionais norte-americanas de petróleo e gás, os investimentos visam diminuir a dependência energética e, portanto, política, da Rússia.

O fator geopolítico é, contudo, o mais relevante nesta disputa. Os EUA enxergam no projeto de Vladimir Putin uma estratégia de “ressovietização” da Europa Oriental para o país avançar no tabuleiro mundial como uma hiperpotência.

Hillary Clinton, Secretária de Estado do governo Barak Obama [2009/2016], insinuou que o esforço de Moscou de integração regional “vai ser chamado de união aduaneira, de União Eurasiática ou qualquer coisa assim. Mas não devemos nos enganar. Nós sabemos qual é o objetivo e vamos pensar em meios efetivos de freá-lo ou impedi-lo”, ela declarou em 6/12/2012 [O Estado de S. Paulo]

O establishment estadunidense vê a Ucrânia como peça-chave para o reerguimento do império soviético. Zbigniew Brzezinski, que foi Secretário de Estado de Jimmy Carter [1978/1982], escreveu em 1997, recém completados 6 anos depois da dissolução da URSS:

A Ucrânia, novo e importante espaço no cenário eurásico, é uma coluna geopolítica porque a sua própria existência como país independente consente a transformação da Rússia. Sem a Ucrânia a Rússia deixa de ser um império eurásio. A Rússia sem a Ucrânia pode ainda lutar pela sua situação imperial, mas será apenas um império substancialmente asiático, provavelmente enredado em conflitos deteriorantes com as nações da Ásia Central, que seriam sustentadas pelos Estados Islâmicos, seus amigos do Sul. […] Os Estados que merecem o maior apoio geopolítico americano são o Azerbaijão, o Uzbequistão e (fora desta área) a Ucrânia, pois todos os três são pilastras geopolíticas. Pode-se dizer que a Ucrânia é o Estado essencial, pois influenciará a evolução futura da Rússia.” [entrevista a Maurizio Blondet, 1997, 1997]

O aparente avanço geopolítico e geoestratégico da OTAN com a ofensiva de 2014 foi mais virtual que real. A intromissão estrangeira na Ucrânia desencadeou uma forte reação russa e, também, a emergência de forças separatistas, pró-russas e anti-OTAN em algumas regiões do país.

Como efeito imediato, ainda em 2014 a Rússia anexou Criméia e Sevastopol depois que estas regiões se declararam unilateralmente independentes da Ucrânia e pediram anexação ao país. E, no último dia 21/2, o governo Putin reconheceu oficialmente a independência autodeclarada das regiões Donetsk e Luhansk.

Os acontecimentos na Ucrânia são, como se percebe, desdobramentos previsíveis da esperada reação russa às políticas intervencionistas dos EUA e OTAN no leste europeu. Putin sempre deixou claro não admitir nenhuma espécie de expansão da OTAN que possa colocar em risco a segurança da Rússia.

A mídia monopólica mundial, controlada desde Washington, distorce a realidade e replica a narrativa russofóbica que é repetida pelos meios de comunicação colonizados ao redor do mundo como verdade absoluta.

A disputa geopolítica em andamento deverá acelerar as mudanças do sistema mundial na direção do multilateralismo.

Por enquanto, Putin, que é apoiado pela China, está vencendo esta batalha. Com inteligência estratégica, sem disparar um único tiro, ao passo que os EUA e a OTAN são os grandes perdedores.

Com a proposta sino-russa de reconfiguração da ordem mundial apresentada por Xi Jinping e Vladimir Putin por ocasião dos Jogos de Inverno, em Pequim, a hegemonia dos EUA ficou seriamente questionada e a OTAN perdeu totalmente sua razão de ser e existir.

A evolução e o desfecho desta crise são imprevisíveis, mas uma coisa é certa: o poder imperial e unipolar dos EUA vive seu estertor.


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Zé Maria

https://www.counterpunch.org/wp-content/uploads/2022/02/Map_of_the_Donbass-500×613.png

The Territorial Integrity of States
vs.
the Self-Determination of Peoples

[A Integridade Territorial dos Estados
vs.
a Auto-Determinação dos Povos]

Por John Whitbeck, no CounterPunch

Dois princípios frequentemente citados, cada um com raízes estabelecidas no direito internacional, estão frequentemente em conflito – a integridade territorial dos Estados e a autodeterminação dos povos.

Este conflito recorrente e inevitável é evidente nos reconhecimentos diplomáticos da Rússia das duas repúblicas separatistas de maioria russa do Donbass, nas quais, como nas antigas regiões soviéticas da Abkhazia, Ossétia do Sul e Crimeia, todas diplomaticamente reconhecidas como estados independentes pela Rússia (em caso da Crimeia, antes de sua reintegração na Federação Russa), assim como no Kosovo, a maioria das pessoas claramente desejava se separar do país ao qual foi reconhecida internacionalmente como pertencente.

Ninguém deveria se surpreender que o princípio que qualquer governo proclamará como absoluto – ou pelo menos para ter precedência e ser controlador – em qualquer caso particular é o princípio que é consistente com o resultado que ele prefere naquele caso.

Os Estados ocidentais que estão a alardear a aplicabilidade absoluta e universal do princípio da integridade territorial dos Estados não tiveram qualquer problema em apoiar a autodeterminação dos povos na Eritreia, Timor Leste, Sudão do Sul e, com uma forte ajuda de 77 dias de Bombardeio da OTAN em flagrante violação do direito internacional, Kosovo.

A maioria dos estados membros da ONU (97 de 193) atualmente estende o reconhecimento diplomático ao Kosovo.
As decisões a este respeito são inevitavelmente influenciadas por potenciais precedentes próximos de casa.
Dos cinco estados membros da UE que não reconhecem Kosovo, dois, Chipre e Espanha, têm preocupações com movimentos separatistas em seus próprios territórios, enquanto a Grécia retém o reconhecimento por solidariedade aos cipriotas gregos.

Também é lógico que a China, apesar de sua relação “mais forte que uma aliança” com a Rússia, acaba de reafirmar seu profundo apego ao princípio da integridade territorial dos Estados.
A China está profundamente preocupada com os sentimentos separatistas em Hong Kong, Taiwan e Xinjiang.

Um excelente exemplo de extrema flexibilidade na aplicação desses dois “princípios” é fornecido pelo próprio Kosovo.
Tendo confiado e explorado o princípio da autodeterminação dos povos (e bombas da OTAN) para alcançar sua independência efetiva, este canto da Sérvia de maioria albanesa (que, com ecos de “Kievan Rus”, via Kosovo como o coração pulsante da história e cultura sérvias) desde então se recusou a contemplar a reintegração na Sérvia do canto norte do país, de maioria sérvia, cujo povo, compreensivelmente, não quer nada com Kosovo. Num aparente ataque preventivo contra uma resolução racional desta disputa, o governo do Kosovo até, de forma única, colocou o mapa do seu território pós-independência na sua bandeira.

Finalmente, o primeiro status do governo dos EUA no mundo ao reconhecer a soberania israelense sobre a Jerusalém Oriental ocupada e as Colinas de Golã sírias ocupadas e ao reconhecer a soberania marroquina sobre a República Democrática Árabe Saaraui ocupada (Saara Ocidental) – em todos os três casos, ao contrário aos desejos de todo o povo ocupado – deixa claro que o único princípio consistentemente aderido pelo governo dos EUA em tais assuntos é o princípio fundamental das relações internacionais contemporâneas: não é a natureza do ato que importa, mas sim quem está fazendo isso para quem.

A maioria dos governos, particularmente os poderosos, escolhe seus “princípios” de um menu à la carte de acordo com seu sabor preferido do dia.

John V. Whitbeck é um advogado internacional baseado em Paris.

https://www.counterpunch.org/2022/02/24/the-territorial-integrity-of-states-vs-the-self-determination-of-peoples/

Zé Maria

A Guerra nem começou e já fez a Primeira Vítima: a Verdade.

Parafraseando Ésquilo (525 a.C. – 456 a.C.), Dramaturgo Grego.

MAAR – Mario Ramos

O excelente artigo em tela apresenta um resumo dos principais aspectos da geopolítica relativa à controvérsia em torno da atual crise da Ucrânia, desde o advento do golpe de estado de 2014, travestido de revolução popular, até as recentes agressões contra as repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk. A trajetória real descrita no artigo mostra as evidências de que o principal front deste embate hibrido é a guerra de desinformação promovida pelo ocidente, através da hegemonia midiática, que entope o mundo com uma avalanche contínua de fake news, factóides e provocações. Nesta medida, o apoio militar que a Rússia deve prover com urgência para reforçar as defesas do Donbass, a fim de proteger a população civil contra os frequentes bombardeios realizados pelo exercito ucraniano, precisa ser acompanhado pelo registro e divulgação sistemática de tais ataques, para mostrar a verdade sobre quem são os vilões nessa escalada.

Nelson

Já afundados num poço bem fundo de putrefação, que vieram cavando às custas de muita mentira e manipulação que divulgaram durante décadas e décadas, os órgãos da mídia hegemônica ocidental, a dita imprensa livre, conseguem se superar a cada dia no quesito podridão. Não satisfeitos parecem cavar o fundo desse poço com a intenção de afundarem ainda mais.

Não é à toa que o economista estadunidense, Paul Craig Roberts, passou a chamar tais órgãos de “presstitutes”. Chamados a escolherem entre a liberdade de imprensa e uma farta verba publicitária ofertada pelo grande capital, os órgãos da mídia hegemônica não pestanejam em optar pela última.

Zé Maria

Os Estados Unidos da América (EUA)
só sabem fazer a Cizânia, não a Paz.
A Guerra é o Único Meio que conhecem
para solucionar Conflitos Internacionais.

Riaj Otim

mais de 90% da Europa e 80% da China já foram do império russo e Putin tem direito de recuperar uns 80% disto.

Guanabara

“A mídia monopólica mundial, controlada desde Washington, distorce a realidade e replica a narrativa russofóbica que é repetida pelos meios de comunicação colonizados ao redor do mundo como verdade absoluta.”

Esse é um assunto extremamente interessante… Como se dá esse “monopólio mundial” da mídia? Quem determina as linhas editoriais? Como ocorre a informação da linha a seguir?

Deixe seu comentário

Leia também