Jair de Souza: Manifesto para todos é manifesto para ninguém

Tempo de leitura: 5 min
Carolina Antunes/PR

Um manifesto político para todo mundo é um manifesto para ninguém

Por Jair de Souza*

Entrou em cena mais um manifesto que busca alcançar a unidade de amplos setores da sociedade para defender ou conquistar a democracia. Falo do autointitulado “Estamos Juntos”.

Tomando em conta o que consta no citado texto, quem estaria em condições de assiná-lo sem comprometer sua imagem pública?

Tentando responder a pergunta recém estipulada, vamos procurar avaliar se o tal manifesto poderia ser assumido pela pessoa que ocupa o principal cargo político da nação no momento.

Não há dúvidas de que me refiro a Jair Bolsonaro.

Vejamos se ele também poderia lançar um manifesto semelhante ou, ao menos, endossar o que já foi lançado, sem sofrer grandes problemas de imagem junto a suas bases de apoio.

Para tornar factível o exercício proposto, listei numericamente os itens conforme aparecem no documento divulgado.

Vamos, portanto, examinar item a item para ver a que conclusões chegamos.

Somos cidadãs, cidadãos, empresas, organizações e instituições brasileiras e fazemos parte da maioria que defende a vida, a liberdade e a democracia.

Bem, a introdução nem precisa ser examinada em detalhe.

Pelo que ali está, ela se mostra palatável a todo mundo, portanto, Jair Bolsonaro está incluído.

1) Somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país.

Em relação ao primeiro ponto, Jair Bolsonaro poderia demonstrar sua adesão sem hesitação.

Afinal, na opinião dele, o problema com o coronavírus está sendo gerado por governadores, prefeitos e outros aproveitadores que não querem entender que a melhor maneira de combater as dificuldades é acabando com essa porra de quarentena (desculpem pela linguagem bolsonariana) e fazer a economia funcionar.

Portanto, não há nada nesta parte do texto que não possa ser assinado por ele.

2) Somos a maioria de brasileiras e brasileiros que apoia a independência dos poderes da República e clamamos que lideranças partidárias, prefeitos, governadores, vereadores, deputados, senadores, procuradores e juízes assumam a responsabilidade de unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação.

Já, no tocante ao segundo ponto apresentado, com exceção da referência a fazer parte da maioria, todo o restante poderia muito bem ser assumido por Jair Bolsonaro.

Aliás, ele vive se queixando de que os outros poderes estão tentando interferir em sua área de competência, e vive reclamando da falta de responsabilidade por parte de deputados, senadores, juízes, etc., os quais parecem não entender a necessidade de unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação.

Bem, isto é o que ele sempre diz.

No entanto, o que ele realmente quer dizer vai depender do entendimento que cada um tenha daquilo que está escrito no manifesto.

Como se trata de frases vazias que não estipulam nem precisam quem está interferindo com quem e quais são essas interferências, serviria para todo mundo e, sem dúvidas, também para Jair Bolsonaro.

Aliás, ele vive reclamando de interferências de outros poderes e até ameaçou perder as estribeiras se esses outros não atuarem com responsabilidade.

3) Somos mais de dois terços da população do Brasil e invocamos que partidos, seus líderes e candidatos agora deixem de lado projetos individuais de poder em favor de um projeto comum de país.

No terceiro item abordado pelo manifesto, Jair Bolsonaro poderia concordar com quase tudo, bastando apenas alterar os “três terços” para “um terço”.

No mais, tanto ele quanto qualquer outra pessoa escolhida aleatoriamente numa das ruas de qualquer cidade do país poderiam se dizer plenamente identificados com aquilo.

Como ninguém diz o que é defender interesses pessoais e o que significa ter projeto de país, por que Bolsonaro não poderia assinar?

4) Somos muitos, estamos juntos, e formamos uma frente ampla e diversa, suprapartidária, que valoriza a política e trabalha para que a sociedade responda de maneira mais madura, consciente e eficaz aos crimes e desmandos de qualquer governo.

Com referência ao quarto ponto, a única coisa que deveria ser feita é eliminar a menção a tal “frente ampla e diversa”.

Com o restante, Bolsonaro poderia se sentir plenamente à vontade.

Não há nada ali que ele não pudesse interpretar da maneira como lhe interessasse.

5) Como aconteceu no movimento Diretas Já, é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum. Esquerda, centro e direita unidos para defender a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia.

Ao abordar a quinta proposição, bastaria eliminar a referência desnecessária às “Diretas Já” e tudo ficaria perfeito.

A bem da verdade, Bolsonaro adoraria encampar aquela parte que fala da “defesa da lei e da ordem”.

Parece mesmo que esta parte foi feita especialmente para ele.

E, no que toca à defesa do meio ambiente e defesa da economia, ele também não teria porque se preocupar.

Ninguém sabe o que se quer dizer por defesa do meio ambiente, então, por que não entender que expandir a monocultura e o avanço do gado melhora a situação ambiental?

Quanto a defender a economia, o que é que o Paulo Guedes está fazendo ao impedir que o dinheiro público seja usado para sustentar a educação e a saúde de milhões e milhões de “vagabundos”?

6) Defendemos uma administração pública reverente à Constituição, audaz no combate à corrupção e à desigualdade, verdadeiramente comprometida com a educação, a segurança e a saúde da população. Defendemos um país mais desenvolvido, mais feliz e mais justo.

O sexto item parece que vem a calhar para Bolsonaro. Bolsonaro foi eleito dizendo que iria acabar com a corrupção.

Ele, seus filhos e seus amigos sempre realçaram durante a campanha eleitoral a qualidade de serem combatentes contra a corrupção.

O fato de que Moro esteve junto a ele por mais de um ano e quatro meses deveria ser mais que suficiente para eliminar dúvidas.

7) Temos ideias e opiniões diferentes, mas comungamos dos mesmos princípios éticos e democráticos. Queremos combater o ódio e a apatia com afeto, informação, união e esperança.

O sétimo, e último, ponto do manifesto também poderia ser tranquilamente tomado por Bolsonaro como seu.

O que é essa história de compromissos éticos e democráticos?

Nada que não pudesse ser endossado por Bolsonaro.

Quem é o campeão da moral, da ética e dos bons costumes, além de defensor da família?

Não é assim que Bolsonaro se apresentava pelo Whatsapp junto ao público mais humilde?

E quanto a esse negócio de ódio, Bolsonaro sempre tratou de deixar claro que isso é coisa de comunistas, coisa do PT.

Vamos #JUNTOS sonhar e fazer um Brasil que nos traga de volta a alegria e o orgulho de ser brasileiro.

O fechamento do manifesto nem precisa ser diretamente relacionado com Bolsonaro.

É algo tão genérico e indefinido que serviria para qualquer ser vivo do planeta Terra ou de Marte.

Quem poderia, em sã consciência, se dizer contrário ao que ali está escrito?

Bem, em vista do que acabei de expor, a conclusão que extraio após a leitura do manifesto Estamos Juntos é que ele serve para toda e qualquer pessoa, independentemente de sua posição social, política, étnica, religiosa ou racial, bastando ser brasileiro.

Serve para todo mundo ou, em outras palavras, não serve para ninguém.

*Economista formado pela UFRJ, mestre em linguística também pela UFRJ


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Comentários

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Zé Maria

“Muito obrigado às 3.656 respostas depois que pedi opinião
sobre a assinatura no manifesto Estamos Juntos.
Respeito figuras da esquerda que estão nessa empreitada.
Mas, após reflexão, autocrítica e ler as mensagens de vocês,
pedi pra tirar meu nome. E luta antifascista que segue!”
https://twitter.com/Glauber_Braga/status/1268210772439678979

a.ali

realmente : “Serve para todo mundo ou, em outras palavras, não serve para ninguém” !!!.

Zé Maria

“PRIMEIRO a gente tira uma presidenta legitimamente eleita,
prende outro sem provas, destrói as instituições, pavimenta
o caminho para os militares voltarem ao poder pelo voto
com a ajuda de fake news, DEPOIS a gente faz um manifesto
pela democracia e reclama se o lula não assinar”
https://twitter.com/cynaramenezes/status/1268317319027200000

“Todo mundo sabia quem era o Bolsonaro. Sabiam que ele era maluco.
Que não gostava de preto, de índio,de mulher, que ele era homofóbico,
que não gostava do povo. E ainda vi gente dizer que entre Bolsonaro
e o Haddad era uma escolha muito difícil…”
https://twitter.com/LulaOficial/status/1268316104511967234
“Muita gente que agora reclama do Bolsonaro votou nele
pela política econômica que ele representa.
Falam mal dele, mas não falam mal do Guedes.
É o pessoal que quer que o mercado ganhe cada vez mais
e o pobre cada vez menos.”
https://twitter.com/LulaOficial/status/1268316908757057536

“a questão do [contra o] Lula não é disputa de protagonismo
e sim aceitar se unir a quem apoia o plano econômico
de paulo guedes, mas acha o bolsonaro sujinho”
https://twitter.com/cynaramenezes/status/1268191020291891201

Elaine

Em outras palavras: Esse manifesto parece coisa de Bolsonaristas isso sim.

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