Contra o golpe misógino na democracia, é preciso restaurar Dilma

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O GOLPE DE 2016 NA VIDA DAS MULHERES

por Ana Flavia Cernic Ramos e Glaucia Fraccaro – 10/07/2016, no A Tal da Política

“Não se reconhece ainda, no Brasil, a capacidade social da mulher para o exercício do voto. As restrições que se lhe impõem na ordem civil têm um reflexo na ordem política. É certo que não existe em nossas leis uma exclusão expressa a esse respeito. Mas também o é que várias tentativas surgiram, na discussão do nosso pacto fundamental, para precisamente tornar expresso o direito do voto feminino sem que lograsse aprovação qualquer das emendas apresentadas. (…) A verdade é que prevalecem ainda, entre nós, considerações tradicionais ao lembrarem que a missão da mulher é mais doméstica do que pública, mais moral do que política”.

O documento acima é um trecho do despacho do juiz Affonso José de Carvalho diante do requerimento de alistamento eleitoral feito pela estudante de direito Diva Nolf Nazario, em 1922.

A jovem reivindicava sua participação no processo eleitoral uma vez que a Constituição brasileira não expressava categoricamente a exclusão das mulheres dos direitos políticos no país.

Em sua visão, portanto, a participação das mulheres como eleitoras estaria garantida.

Contudo, essa não foi a interpretação dos que analisaram o seu caso.

Apoiados em noções mais sociais que legislativas, que apontavam que a tarefa das mulheres era a doméstica e não a pública, todos os requerimentos eleitorais de Diva foram negados.

Uma década depois dos pedidos feitos pela estudante, a partir de muitas reuniões, campanhas públicas e organização política, foi finalmente incluído o direito das mulheres à participação eleitoral.

E, menos de um século mais tarde, o mesmo Brasil iria eleger democraticamente, por voto direto e universal, a primeira mulher presidente da República.

A chegada de Dilma Rousseff ao cargo majoritário mais importante da nação representava, enfim, um dos marcos fundamentais dessa longa, permanente e ainda inconclusa trajetória de lutas pela consolidação da cidadania política das mulheres.

Não sem luta

A exemplo das conquistas obtidas pelo movimento feminista das primeiras décadas do século XX, as mulheres do nosso tempo reuniram importantes vitórias durante um governo de formato democrático e calcado em políticas sociais. Não sem luta, é claro.

Foi preciso que centenas de milhares de mulheres rurais tomassem a Esplanada dos Ministérios com uma rigorosa pauta reivindicativa por direitos e acesso à renda e à terra. A organização política das mulheres nas conferências populares logrou a aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006, e conquistou a criação da rede nacional de enfrentamento à violência, bem como a aprovação de uma emenda constitucional que deveria equiparar os direitos das trabalhadoras domésticas aos direitos dos demais trabalhadores.

Muitas foram às ruas e bradaram “Fora Cunha” ao menor sinal de ameaça aos seus direitos que esse parlamentar passou a representar.

Num constante embate, vimos ainda meninas secundaristas na linha de frente da mobilização estudantil no Estado São Paulo, ocupando centenas de escolas para barrar um dos projetos mais retrógrados e destruidores da educação paulista encabeçado pelo tucano Geraldo Alckmin.

A criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003, foi uma ferramenta crucial para que o Estado reconhecesse a necessidade de medidas que promovessem ações de autonomia para as mulheres.

Com isso, foi necessário desenvolver a perspectiva que não bastaria coibir o mal que a violência de gênero representa para toda a sociedade, mas era preciso reconhecer que as mulheres necessitavam de autonomia para garantir suas próprias condições de vida.

Essa constatação orientou algumas das mais importantes diretrizes para a distribuição de renda no país, como os programas “Bolsa Família” e o “Minha Casa, Minha Vida”, que davam a elas preferência no recebimento dos benefícios.

A luta por direitos e a existência de um governo permeável às demandas populares colaborou na ampliação da autonomia das mulheres. Entretanto, é fato, tais avanços não conseguiram subverter a perversa hierarquia entre mulheres e homens que organiza nossa existência e que se tornou uma arma poderosa nas mãos dos conservadores que apearam Dilma do poder.

Um golpe misógino na democracia

Apesar dos importantes avanços na luta pelos direitos das mulheres no Brasil, alguns episódios do processo político que culminou no afastamento temporário da presidenta revelavam, por outro lado, o incômodo causado pelo crescimento da participação das mulheres no cenário político.

Em meio a uma transmissão de debates parlamentares sobre a questão, por exemplo, ouviram-se berros de “Dilma, vá cuidar de casa”. Novamente parecia que as forças institucionais intencionavam conduzir todas as mulheres ao espaço doméstico, tal como tentaram fazer com Diva Nazario.

As demonstrações de machismo somavam-se desde a campanha eleitoral de 2010, quando as críticas à candidatura e atuação de Dilma Rousseff como estadista em nada se assemelhavam ao que teria passado outros, homens todos, comandantes do país. Nem mesmo nos momentos de maior rejeição popular foram produzidos adesivos para carro com a figura de Fernando Collor em posição proctológica.

Ou então não se questionava o estado civil, nem o suposto respeito a ele devido, de Fernando Henrique Cardoso. Ninguém se embasbacava a com o pulso firme de Lula ao tomar decisões, populares ou não. Nenhum ditador brasileiro teria sido criticado com um uníssono “vai tomar” num estádio de futebol. Nunca se cogitou criticar um presidente da República por ele ser “duro demais com ministros”.

Não há memória de que os parlamentares da votação do impeachment de 1992 tenham evocado com tanta veemência suas famílias e os “bons costumes” para restaurar a política brasileira. Enfim, quando se pretende criticar Dilma recorre-se muitas vezes à sua condição de mulher.

Para muitos dos parlamentares, Dilma na presidência representava um mundo no qual as coisas estavam “fora do lugar”. Não foi à toa que a figura da “bela, recatada e do lar”, forjada na imprensa através da imagem de Marcela Temer, esposa do vice-presidente, marcaria de forma indelével a derrubada de Dilma Rousseff do comando do país.

A imprensa não deixava de reafirmar, a exemplo do juiz paulista de 1922, que o papel da mulher na sociedade deveria permanecer moral e doméstico.

Michel Temer, inconformado em estar nos bastidores, desacorçoado por ser tratado como o que era, a saber, um vice-presidente, anunciou o golpe que daria na chapa na qual foi eleito numa missiva, que não se furtou a lances quase novelescos.

A carta, estampava queixas por não ser chamado para almoços com grandes estadistas e, nela, Temer se autodenominava um “vice decorativo”, demonstrando assim seu profundo desconforto de estar sob o comando de uma mulher.

Para dar cores mais dramáticas – e como se verificou, justificar a traição posterior no Golpe de 2016 – , fugiu do diálogo direto com a presidenta, optando dentre os variados meios de comunicação disponíveis, por uma “carta pessoal”, mais doméstica do que pública, claro.

A carta assim termina: “sei que a senhora não tem confiança em mim e no PMDB, hoje, e não terá amanhã. Lamento, mas esta é a minha convicção”. O que talvez Temer não tenha previsto é que sua missiva tornar-se-ia parte importante dos vestígios deixados sobre o Golpe.

Seu registro de “insatisfação” soaria mais como uma ameaça de conspiração do que a denúncia de uma injustiça. Em outras palavras, o vice declarava que daria o golpe e a culpa seria da própria presidenta por nele não confiar.

Dilma Rousseff precisa voltar

Por ocasião da chorosa missiva, Temer defendeu o seu projeto político “Ponte para o Futuro”.

A intenção por detrás do gesto já havia sido denunciada por boa parte da esquerda brasileira, mas foi durante o seu governo interino e ilegítimo que chegou a confirmação de suas pretensões: barrar as investigações de corrupção que o tornaram um político inelegível (ainda que no comando do Brasil), reduzir direitos trabalhistas, enxugar os serviços de saúde pública e desmontar as políticas para as mulheres.

O mesmo time que reivindicou a volta da presidenta para casa (e de boa parte das mulheres do país), que a enviou carta ressentida, que evocou um torturador sem alma de 1964, que promoveu adesivos indescritíveis, que a mandou tomar seja lá onde for, é aquele que pretende render o país do déficit financeiro esgotando políticas que tiraram milhões da miséria e incidiriam sob as desigualdades de classe, raça e gênero no Brasil.

É esse o grupo que considera crime de responsabilidade passível de cassação de mandato a aplicação de dinheiro em políticas sociais. A indexação do salário mínimo resultou em 76% de aumento real dos ganhos de uma camada social que tinha renda baixíssima até o início do Governo Lula, camada essa composta, sobretudo, por mulheres negras e parte delas, no serviço doméstico. O Estado não é neutro na agenda e pode impulsionar políticas, inclusive econômicas, de forma a remediar desigualdades, embora tudo isso tenha sido, recentemente, interpretado como uma ação política criminosa.

A volta de Dilma é mister. Ela foi eleita por 54 milhões de votos, dirigiu as principais políticas sociais que retiraram muitas mulheres da pobreza absoluta e de situações de violência. E só ela pode colocar em prática o projeto eleito pelo povo em 2014.

Sua volta representará também a derrota da lógica patriarcal que, no trabalho, na imprensa, na família e na vida se esforça por confinar as mulheres em casa e cassa a autonomia delas todos os dias. Mesmo antes de Diva Nazario e até os tempos de Dilma Rousseff, as mulheres vivem em guerra com sua própria sina.

Dessa guerra, elas entendem muito bem. E não vão renunciar a ela enquanto não vencerem. Seguirão assim, até que todas sejam livres!

(O despacho do Juiz Affonso José de Carvalho, 07/06/1922 está reproduzido em Diva Nolf Nazario. Voto feminino e feminismo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, p. 37-38)

Leia também:

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Comentários

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Carlos Soares

Restaurar Dilma?

Mais fácil D. Pedro I voltar do q Dilma!

Aceita q dói menos…

rsrs

FrancoAtirador

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Traduzindo Termos e Expressões
Usados na Mídia Corrupta do PSDB
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Quando as Redes de Rádio e Televisão
mencionarem: -“Centrão” na Câmara
escolherá o Novo Presidente da Casa*,

entenda que se trata do “Extremão”
da Direita Misógina, Racista e Burra,
à qual Pertence a Maioria dos 367.
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    FrancoAtirador

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    Parte 2
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    Traduzindo Termos e Expressões
    Usados na Mídia Corrupta do PSDB
    .
    Quando as Redes de Rádio e Televisão
    falarem: -Deputados do “Baixo Clero”
    da Base Aliada do Presidente Interino
    são Candidatos à Presidência da Casa*,

    estão se referindo, na Prática Política,
    aos Representantes do “Alto Fascismo”
    que querem livrar Bolsonaro e Cunha
    de Cassações no Conselho de Ética.
    .
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