A polícia subiu o morro trazendo Kibon e Itaipava

Tempo de leitura: 4 min

Por Caio Castor, do Rio de Janeiro, especial para o Viomundo

A “pacificação” e a Kibon.

“Eu vejo o papai-noel, 

passando na favela, 

os três porquinhos, os sete anões

branca de neve e a cinderela.

Ví vários duendes, jogando futebol, 

bebendo whyski com red, 

só antártica, skol.

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Eu vejo um hambúrguer

com as carne se mexendo.

E os vascaíno,

torcendo pro Flamengo.

Eu vejo o Tiririca

beijando a Hebe Camargo.

E uma tartaruga

dançando com cavalo.”

O surrealismo-fantástico da música cantada durante o enterro do Douglas Rafael da Silva, o Dg, há alguns dias aqui no Rio, ecoava na minha cabeça como um prenúncio do que estava por vir. Chego no morro do Alemão, num sábado de manhã, para encontrar uma amiga pesquisadora e ex-moradora do morro, que me levará para conhecer o famigerado teleférico do Complexo do Alemão.

A música clássica que toca dentro da estação contrasta com o funk que vem de fora. Escárnio e ironia, agora entendo um pouco melhor o sentimento expresso na letra do Dg.

O teleférico foi construído com dinheiro do PAC, custou R$ 210 milhões e é o primeiro transporte de massa via cabos do Brasil. O modelo de (i)mobilidade, assim como o de (in)segurança, ambos foram “deslocados” da Colômbia — onde um teleférico como este existe em Medellin, a terra do cartel da cocaína.

No site do governo do Rio as entrelinhas revelam a intenção por trás do discurso, “construído com o objetivo principal de facilitar a mobilidade dos moradores das comunidades do Complexo do Alemão, o Teleférico se tornou um cartão-postal do Rio de Janeiro e atrai cada vez mais turistas”.

Apelidado carinhosamente de “safari”, o novo meio de transporte da favela chama atenção não só pela novidade, mas também pelas contradições que traz consigo. Fruto de uma malabarística inversão de prioridades, a obra foi recebida pela comunidade com uma mistura de sentimentos que variam entre descrença, revolta e esperança.

Do alto das cabines vermelhas da Kibon as contradições saltam aos olhos.

Embaixo crianças brincam ao lado de um lixão, outras soltam pipas que se enroscam no emaranhado de fios elétricos, o esgoto passa a céu aberto, as casas são milagrosamente equilibradas numa encosta.

Logo na entrada de cada estação um cartaz informa as novas “regras de convivência” do espaço e a que mais chama atenção é a que diz: “É permitido levar volumes nas cabines não ultrapassando o tamanho de 40cm de comprimento, 40cm de largura, por 40cm de altura.”

Uma moradora desabafa: “De que adianta um negócio desse, se a gente tem que subir a pé com as compras?” Não é de espantar que, segundo dados do próprio IBGE, só 11% dos moradores usam o teleférico, muito abaixo dos 70% previstos na inauguração.

Outros moradores reclamam da falta de diálogo, dizem que a maioria da população não foi ouvida e que as decisões vieram, desde o início, de cima para baixo.

“Nem perguntaram nada pra gente, quem disse que o teleférico é a melhor opção de transporte pra cá? E as estações, quem disse que era melhor fazer aqui no Adeus e não na Nova Brasília, por exemplo?”

Por outro lado, o que parece ter funcionado bem foi a entrada do chamado “mercado formal” das grandes empresas.

Moradores relatam que já no primeiro dia de invasão militar, junto com os soldados e tanques vieram os vendedores de TV por assinatura.

A polícia entrou na frente e as empresas atrás, literalmente.

Os intermináveis e perigosos emaranhados de fios da rede elétrica continuam os mesmos, a diferença é que agora a população é obrigada a pagar.

Com a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) chegou também a Light e a “regularização” da luz.

A disputa pelo imaginário da população é travada e a estação que fica no morro do Alemão, morro esse que deu origem ao hoje chamado complexo do Alemão, passa a se chamar estação Alemão/Kibon.

Já no alto e no caminho entre a estação Bonsucesso/Tim e a Itararé/Natura, o visitante pode apreciar algumas “obras de arte” expostas nas lages e telhados das casas.

São obras que fazem parte do “Festival de intervenção urbana” patrocinado pela mesma Kibon.

Já na última parada, a Palmeiras/Itaipava, o visitante encontra sombra e água fresca. Na saída da estação alguns meninos pedem um trocado e são observados de longe por policiais da UPP, que guardam a mais nova base da corporação.

O turista que preferir subir o morro de carro poderá deixá-lo no estacionamento do teleférico, mas terá que dividir espaço com as vagas exclusivas dos comandantes do batalhão. O guia turístico local informa aos mais aventureiros que o passeio completo custa 29 reais e é feito à pé. Um gringo pergunta se não tem perigo.

Do outro lado, barracas improvisadas com madeira oferecem lanches, porções e, claro, cerveja Itaipava.

Sentamos numa dessas barracas para conversar com os vendedores e tomar uma gelada.

Bom dia moça, traz uma cerveja pra gente?
— Só tem Itaipava pode ser?

Não tem outra?
— Não, eles não deixam mais a gente vender outra…

Ah, então pode ser. Mas e o que vocês estão achando disso?
— Olha, o bom é que eles vão derrubar tudo essas barracas de madeira aqui e construir os quiosques, graças a Deus!

Então vocês estão gostando das mudanças?
— Ah, mais ou menos né!? O bom é que eles vão fazer as melhorias aqui, mas com a Antártica a gente ganhava o dobro.

E vocês vão ter que pagar alguma coisa por essas melhorias?
— Ah, vai ter que pagar uma taxa pra eles, pra ajudar com a limpeza, essas coisas né? Vai ser tipo um valor mensal sabe?

Mas pra quem vocês vão ter de pagar?
— Ah, pra associação de moradores ou pra Itaipava, não sei direito..

E qual o valor dessa taxa?
— Também não sabemos ainda, eles não falam as coisas direito pra gente… Mas o bom é que eles vão patrocinar a gente né?

E como é esse patrocínio?
— Ah, eles deram essas cadeiras aí e de vez em quando eles fazem uns eventos pra chamar as pessoas e tal… e também vão pagar uma pessoa pra cuidar da limpeza.

[A produção de conteúdo exclusivo do Viomundo não depende da Kibon, nem da Itaipava, mas exclusivamente de nossos leitores. Torne-se um assinante]

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