Altamiro Borges: A mídia privada e o golpe militar de 1964

Tempo de leitura: 4 min
31 de março de 1964, Brasília sitiada

A mídia burguesa e o golpe militar de 1964

Por Altamiro Borges, em seu blog

Segunda-feira, 1º de abril, marca os 60 anos do trágico golpe civil-militar de 1964.

Na época, o imperialismo estadunidense, os latifundiários e parte da burguesia nativa derrubaram o governo democraticamente eleito de João Goulart.

A chamada grande imprensa teve papel destacado nos preparativos do golpe. Na sequência, muitos jornais seguiram apoiando a ditadura, as suas torturas e assassinatos.

Outros engoliram o seu próprio veneno, sofrendo censura e perseguições.

Neste triste momento da história brasileira, vale a pena registrar os editoriais dos jornais burgueses – que clamaram pelo golpe, aplaudiram a instalação da ditadura militar e elogiaram a sua violência contra os democratas.

Ontem como hoje, a mídia privada continua orquestrando golpes contra a democracia.

Daí a importância de relembrar sempre os seus editoriais da época:

O GOLPISMO DO JORNAL O GLOBO

“Salvos da comunização que celeremente se prepararam, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos. Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapou o significado das manobras presidenciais”. O Globo, 2 de abril de 1964.

“Fugiu Goulart e a democracia está sendo restaurada…, atendendo aos anseios nacionais de paz, tranquilidade e progresso… As Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a nação na integridade de suas direitos, livrando-a do amargo fim que lhe foi reservado pelos riscos que havia envolvido o Executivo Federal”. O Globo, 2 de abril de 1964.

“Ressurge a democracia! Vive a nação dias gloriosos… Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas que, obedientes aos seus chefes, revelaram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumores contrários à sua vocação e tradições. Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ter a garantia da subversão, a âncora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade não seria legítimo admitir o assassinato das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada”. O Globo, 4 de abril de 1964.

“A revolução democrática antecedeu em um mês a revolução comunista”. O Globo, 5 de abril de 1964.

CONLUIO DOS JORNAIS GOLPISTAS

“Minas desta vez está conosco… Dentro de algumas horas, essas forças não serão mais do que uma parcela mínima da incontável legião de brasileiros que anseiam por demonstrar definitivamente ao caudilho que a nação jamais se verá às suas imposições”. O Estado de S.Paulo, 1º de abril de 1964.

“Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de vontade legítima popular ao Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comunitários-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou, o Sr João Goulart passou outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu”. Tribuna da Imprensa, 2 de abril de 1964.

“Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade… Legalidade que o caudilho não quis preservar, violando-a no que de mais fundamental ela tem: a disciplina e a posição militar. A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas”. Jornal do Brasil, 1º de abril de 1964.

“Golpe? É crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada”. Jornal do Brasil, 1º de abril de 1964.

“Pontes de Miranda diz que as Forças Armadas violaram a Constituição para poder salvá-la”. Jornal do Brasil, 6 de abril de 1964.

“Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o governador do estado e chefes militares. O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do movimento pela paz e pela democracia foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade”. O Estado de Minas, 2 de abril de 1964.

“A população de Copacabana saiu às ruas, em verdadeiro carnaval, saudando as tropas do Exército. Chuvas de papéis picados caíram das janelas dos edifícios enquanto o povo dava vazão, nas ruas, ao seu contentamento”. O Dia, 2 de abril de 1964.

“A paz alcançada. A vitória da causa democrática abre o País a perspectiva de trabalhar em paz e de vencer as graves dificuldades atuais. Não se pode, evidentemente, aceitar que essa perspectiva seja contada, que os ânimos postos sejam a fogo. Assim o querem as Forças Armadas, assim o quer o povo brasileiro e assim deve ser, pelo bem do Brasil”. O Povo, 3 de abril de 1964.

“Milhares de pessoas compareceram, ontem, às solenidades que marcaram a posse do marechal Humberto Castelo Branco na Presidência da República… O ato de posse do presidente Castelo Branco revestiu-se do mais alto sentido democrático, tal o apoio que obteve”. Correio Braziliense, 16 de abril de 1964.

APOIO À DITADURA SANGUINÁRIA

“Um governo sério, responsável, respeitável e com apoio indiscutível popular, está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social – realidade que nenhum brasileiro lúcido pode negar, e que o mundo todo reconhece e proclama”. Folha de S.Paulo, 22 de setembro de 1971.

“Vive o País, há nove anos, um desses períodos férteis em programas e inspirações, graças à transposição do desejo para a vontade de crescer e afirmar-se. Negue-se tudo a essa revolução brasileira, a menos que ela não mova o país, com o apoio de todas as classes representativas, numa direção que já a destaca entre as nações com parcela maior de responsabilidades”. Jornal do Brasil, 31 de março de 1973.

“Participamos da Revolução de 1964 identificadas com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada”. Editorial de Roberto Marinho, O Globo, 7 de outubro de 1984.

Leia também

Geraldo Elísio: 60 anos do golpe, 60 anos de reportagem

Roberto Amaral: Os 60 anos do golpe e o recuo de Lula


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Bernardo

Passados 60 anos essa mesma mídia está bem pior porque antes eram só os jornais e hoje é toda uma teia urdida em TVs, rádios, sites, redes de difamação pela internet, enfim são os mesmos que querem anistiar o golpistas de 08 de janeiro e dar liberdade ao facínora que se travestiu de presidente por 4 anos, em substituição ao traidor de SP. Mudam as moscas mas a m… é a mesma.

Zé Maria

Professora Pesquisadora ÂNGELA CARRATO (UFMG),
no Viomundo:

“Enquanto a mídia tenta passar para a população
que o terceiro governo Lula vai mal, com avaliação
positiva ‘apenas’ na casa dos 35%, faz de tudo
para incutir na cabeça do cidadão comum que
um Legislativo que tem 22% de aprovação vai bem.

O nome disso é manipulação, mas poucos se dão conta.

Mais ainda: depois que se tornou público que a Folha divulgou
como matéria jornalística publicidade milionária do prefeito
de São Paulo, Ricardo Nunes, e, a partir daí, vem destacando
‘aspectos positivos’ de sua gestão, é bom ficar de olho
na cobertura que o jornal dos Frias dá para o bolsonarista
Arthur Lira, presidente da Câmara, e para o escorregadio
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado.

Chefe do Centrão, Lira, cujas atividades políticas e empresariais
merecem reportagens investigativas que nunca são feitas,
tem sido tratado a pão de ló por esta mídia, que vê nele um aliado.

Não por acaso, ele é também um dos principais adversários de Lula.

Ninguém pode perder de vista que o governo não tem maioria na Câmara
e para a aprovação de qualquer medida de interesse popular, tem que
negociar com Lira. O mesmo se dando em relação a Pacheco.

Se fosse para noticiar o que acontece, era para essa mídia estar
mostrando as chantagens que Lira e Pacheco fazem permanentemente
contra o governo.

Não se trata, como alguns alegam, de parte do jogo democrático.

Não é competência do Legislativo abocanhar amplos nacos
do orçamento da União, mas isso tem acontecido sob o silêncio
de jornais, emissoras de rádio, de TV e de seus comentaristas
amestrados.

A divulgação de outra pesquisa, dessa vez por parte do controvertido Instituto Paraná, paga pelo PP, uma das agremiações bolsonaristas
que integram o Centrão, vem se somar a essa campanha, pois
visou pesquisar o ambiente político eleitoral.

Do nada, o instituto divulga, com ampla repercussão na mídia,
que num eventual embate hoje entre Lula e Bolsonaro,
Lula teria 41,6% e Bolsonaro 41,7%, empate técnico.

Em si a pesquisa é uma provocação às instituições brasileiras, uma vez que Bolsonaro está inelegível por oito anos.

Mais grave ainda: no momento em que a Justiça analisa se, ao permanecer dois dias na Embaixada da Hungria, após ter seu passaporte aprendido, o ex-presidente descumpriu medidas disciplinares, a pesquisa funciona como combustível para alimentar o fanatismo dos seus seguidores e tentar inibir que a lei seja cumprida.

Era para a mídia estar cobrindo todos os passos de Bolsonaro, se tivesse – o que não é o caso – compromisso mínimo com a informação.

Tanto não tem que foi pelo jornal estadunidense The New York Times que a população brasileira ficou sabendo, na última segunda-feira, da estranha presença e hospedagem do ex-capitão na embaixada da Hungria.”

Íntegra:

https://www.viomundo.com.br/politica/angela-carrato-golpistas-de-ontem-e-de-hoje.html

Zé Maria

“Como Carlos Lacerda ‘vendeu’ golpe de 64 em tour pela Europa”

[ Reportagem: Thomas Pappon | BBC de Londres ]

‘Estamos ansiosos por um governo honesto’.
Esse foi um dos argumentos usados pelo Governador da Guanabara,
Carlos Lacerda, [Dono do Jornal Tribuna da Imprensa] para justificar
o golpe militar de 31 de março de 1964 em entrevista à BBC dois meses
depois, em 8 de junho.

Lacerda, um dos principais pilares civis do novo regime militar — e um dos
governadores a apoiarem abertamente o golpe que derrubou o presidente
João Goulart, o Jango — embarcara para Europa em maio, pouco após
a posse do general Castelo Branco, eleito presidente pelo Congresso,
com a missão de divulgar os planos do novo governo.

Segundo pesquisa feita por Vilma Keller para o Centro de Pesquisa
e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação
Getulio Vargas [FGV], Lacerda “esteve na França, Inglaterra, Itália,
Grécia, Alemanha, Portugal e Estados Unidos da América (EUA), concedendo entrevistas à imprensa e entrando em contato com
autoridades governamentais”.

Na curta entrevista à BBC, um raro documento de como lideranças
de direita brasileiras respondiam a críticas, no exterior, ao golpe militar
(“O sr. não acha deprimente ter um general como presidente?”
é a pergunta inicial feita pelo apresentador da BBC Colin Jackson),
Lacerda diz então acreditar que o governo militar era temporário e
que o objetivo deste era recolocar o país em uma trajetória voltado
‘para o futuro’.

“As eleições serão convocadas no momento devido, que é outubro
de 1965” [*], afirma Lacerda na entrevista, em inglês, concedida ao
programa Ten O’Clock em 8 de junho de 1964 — e recentemente
descoberta nos arquivos da BBC.

‘Intérprete da Revolução’ ‘Não Confiável’

Na época, segundo historiadores, Lacerda já era visto como possível
candidato à Presidência.

O próprio apresentador britânico pergunta se ele “esperava se tornar
presidente nas próximas eleições”.

“Pode ser que aconteça”, responde Lacerda.
“No momento, estou pensando apenas em conseguir todo o apoio possível
para que o governo atual possa reorganizar o Brasil, preparando-o para
um futuro brilhante em um futuro próximo.”

Para a Historiadora Marina Gusmão de Mendonça, Professora do Curso
de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
e autora de “O Demolidor de Presidentes”, sobre a trajetória política de
Carlos Lacerda, a “missão oficial” na Europa não foi exatamente concebida
pelo governo militar como uma grande arma de marketing para “explicar a ‘revolução’ aos europeus”.

“Lacerda se dava mais importância do que realmente tinha”, diz Mendonça.

“(Os militares) sabiam que ele não era confiável e que não teria respaldo
na imprensa estrangeira.

Chegando na França, o (presidente Charles) De Gaulle não o recebeu.
A imprensa francesa caiu matando em cima dele.”

A viagem, segundo Mendonça, teria sido um favor de Castelo Branco
a Lacerda, que declarou “que estava muito estressado e cansado
com os acontecimentos (no país)”.

“Ele se apresentava como ‘intérprete da revolução’ mas na verdade
era um passeio dele (pela Europa)”, afirma a historiadora.

O apoio de Lacerda ao governo militar, entretanto, durou pouco.

Poucos meses depois, ao ver que seu próprio partido, a União Democrática
Nacional (UDN), permitiu o adiamento das eleições presidenciais e a prorrogação do mandato de Castelo Branco, ele passou a fazer oposição
ao regime militar, sentindo que as chances de haver uma eleição em que
ele pudesse concorrer à Presidência se evaporavam.

Assim, ele lançou, em 1966, uma frente de oposição ao regime militar,
juntamente com os antigos adversários Juscelino Kubitschek e João Goulart.

Lacerda foi cassado e preso em 1968.

*[Antes do Golpe de 1964, as Eleições Presidenciais estavam, de fato,
marcadas para ocorrer em outubro de 1965, mas foram Canceladas
pela Ditadura do General Castello Branco por meio da Decretação do
Ato Institucional Nº 2 ( AI-2), que extinguiu os Partidos Políticos de então
e estabeleceu Eleições Presidenciais Indiretas pelo Congresso Nacional,
onde a Ditadura Militar tinha Maioria Parlamentar.

Os Brasileiros só voltariam a votar para Presidente da República em outubro
de 1989 – após, portanto, a Promulgação da Constituição Federal de 1988 –
quatro anos depois do término da Ditadura dos Generais no País.]

Leia a íntegra da Entrevista de Carlos Lacerda Concedida
ao Programa Ten O’Clock da BBC, em 8 de junho de 1964:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckrdx4vrky4o
.
.

Zé Maria

.
.
Não se Fazem Mais ‘Evangélicos’ como Antigamente
.
.
Série: “GOLPE MILITAR: 60 ANOS”

[ Reportagens: Julia Braun | BBC de Londres ]

“Os Pastores Evangélicos Perseguidos
pela Ditadura Militar [1964-1985]”

“Os choques me provocavam convulsões e gritos.
A sensação era de perda total de controle
sobre minha capacidade mental, racional, e
sobre os meus movimentos. Era insuportável!”
Anivaldo Padilha,
Líder Ecumênico Metodista.

Foi assim que Anivaldo Padilha, líder ecumênico metodista, descreveu as torturas que sofreu durante os 21 dias em que ficou preso em São Paulo no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), uma agência de repressão política subordinada ao Exército durante a ditadura militar iniciada em 1964.

Padilha foi um dos líderes religiosos evangélicos perseguidos pelo regime no Brasil. Ele foi acusado de “infiltração comunista” na Igreja Metodista, segundo seus próprios relatos, e passou, ao todo, 11 meses detido.

Pai do atual ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), ele foi delatado, no início da década de 1970, pelo pastor e pelo bispo da igreja da qual fazia parte.

Na época, ocupava o cargo de diretor do Departamento Nacional de Juventude da Igreja Metodista e era editor de uma revista da igreja dirigida a esse público.

Íntegra em:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czdzj9x2888o
.
.
https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/800/cpsprodpb/77a9/live/e2957a20-e887-11ee-b88e-b3293b38661d.png

Como Testemunhas de Jeová Foram Vigiadas,
Interrogadas e Punidas na Ditadura Militar:
“Maus exemplos contra interesses nacionais”

Íntegra em:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84j147nkxeo
.
.
“Os Evangélicos que se Reuniram
há 60 Anos no Nordeste
para Discutir Revolução Social”

Entre as muitas memórias que a ditadura militar no Brasil
se esforçou para apagar e deixar para trás está um importante
evento da história do protestantismo no país.

A Conferência do Nordeste, realizada em Recife em 1962,
é vista por muitos historiadores como um marco do que é
até hoje um dos mais significativos movimentos de
engajamento social de lideranças progressistas cristãs
na América Latina.
Porém, são poucos os que sabem da existência desse evento.

Íntegra em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62273483
.
.
Leia também:

“Meus Avós Esconderam Mistério Sobre Morte do Meu Pai na Ditadura”

[ Reportagem: Vinícius Lemos | BBC de Londres, em São Paulo]

Em uma noite de setembro de 1990, Dorival Mata Machado assistia à televisão com os avós paternos quando foi transmitida uma notícia que mexeu com a família: a descoberta de uma vala clandestina no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo.

A informação deu origem a um acontecimento que Dorival, na época com 18 anos, considera um dos mais emblemáticos sobre a história que ele conhece do próprio pai, José Carlos da Mata Machado, que morreu quando o filho tinha 1 ano de idade.

Diante da notícia na televisão, os avós de Dorival, Yedda Novaes e Edgard de Godoi da Mata Machado, se entreolharam, cochicharam e disseram ao neto que deveriam checar se o pai dele não estava enterrado lá.

Dorival se lembra que ficou surpreso com o comentário, por que durante anos acreditou que sabia onde o corpo do pai estava.

“Quase todo Dia de Finados na minha vida, até então,
vocês me levam no cemitério da Colina [em BH]
para ver uma lápide onde está escrito José Carlos
da Mata Machado. Como assim? Meu pai não está lá?”,
questionou Dorival.

O pai dele havia sido uma das centenas de vítimas da ditadura militar brasileira, que teve início após o golpe entre 31 de março a 1º de abril de 1964.

Foram 224 pessoas comprovadamente mortas e 210 desaparecidas, que os familiares não localizaram seus corpos até hoje, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que entre 2012 e 2014 apurou os crimes da ditadura.

No ano em que o golpe faz 60 anos, histórias como a de Dorival e do pai dele ajudam a recontar o horror do passado.

A notícia no telejornal de 1990 fez o jovem perceber que os avós ainda tinham perguntas sem respostas sobre o próprio filho.
[…]
José Carlos da Mata Machado, mais conhecido como Zé Carlos, foi morto aos 27 anos, em outubro de 1973.

Estudante de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Zé Carlos foi uma figura importante do movimento estudantil de Belo Horizonte.

Foi presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UFMG e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE).

O gosto pela política veio de família. O pai de Zé Carlos, Edgard de Godoi da Mata Machado, foi deputado federal.

Contrário ao regime militar, Edgard teve o mandato cassado durante a ditadura, em 1968, com base no Ato Institucional Número Cinco (AI-5), que permitiu medidas antidemocráticas, como a cassação de parlamentares da oposição.

Naquele mesmo ano, em meio ao endurecimento do regime militar, Zé foi preso em um congresso da UNE em Ibiúna, no interior de São Paulo, e ficou detido por oito meses.

Quando deixou a prisão, Zé Carlos e a companheira de militância Maria Madalena Prata Soares se casaram. Em fevereiro de 1972, nasceu Dorival.

Depois de um episódio de meningite do filho do casal e em meio à luta contra o regime militar, os pais decidiram deixar Dorival com os avós paternos.

Conforme os documentos da Comissão Nacional da Verdade, Zé Carlos passou a ser perseguido intensamente por órgãos de repressão a partir de março de 1973, em meio a uma operação contra um grupo de militantes de esquerda do qual ele fazia parte, intitulado Ação Popular Marxista Leninista (APML).
No período, diversos integrantes desse Coletivo foram presos ou mortos.

Zé e a esposa estavam organizando uma fuga para uma fazenda no interior de Minas Gerais.
Antes, porém, ele foi a São Paulo para buscar apoio jurídico aos companheiros presos.

Na saída de São Paulo, ele foi preso por agentes do regime militar
em 19 de outubro de 1973.

Posteriormente, segundo os documentos da CNV, ele foi encaminhado
a Recife, onde dias depois foi morto sob tortura, junto com um outro
militante, Gildo Lacerda.

Na época, o regime militar divulgou que os dois morreram em um tiroteio
que teria sido provocado por outro colega de militância.

A nota oficial dizia que os dois haviam sido mortos após um colega desconfiar que Zé e Gildo estariam traindo os membros da APML.

Mas a versão era fantasiosa, conforme foi comprovado por advogados
da família na época e, décadas depois, pela Comissão Nacional da Verdade.

Zé Carlos e Gildo foram mortos por agentes do Departamento de Operações
de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI),
a agência de repressão política subordinada ao Exército da época.

Apurações independentes, reforçadas na CNV, apontaram que os dois foram presos em locais distintos – Zé Carlos em São Paulo e Gildo, em Salvador – e foram levados a Recife, onde foram mortos.

Os depoimentos de diversos ex-presos políticos confirmam que Zé Carlos e Gildo Lacerda foram vítimas de uma sessão de tortura no DOI-CODI de Recife.

Um homem que estava preso no mesmo local, segundo a CNV, afirmou ter visto Zé Carlos sangrando pela boca e pelos ouvidos, pouco antes de morrer, ao lado de um militante que parecia já estar morto.

O homem disse ter ouvido Zé Carlos, completamente machucado, pedindo: “Companheiro: meu nome é Mata Machado. Sou dirigente nacional da AP (Ação Popular). Estou morrendo. Se puder, avise aos companheiros que eu não abri nada”.

Quase 20 anos depois, o cunhado de Zé Carlos, Gilberto Prata Soares, que também era um militante de esquerda, declarou à Comissão Parlamentar Externa sobre Mortos e Desaparecidos Políticos que deu informações a militares, o que os levou a encontrar Zé Carlos.

Além da dor da perda do filho, os pais de Zé não sabiam onde o corpo dele estava. Não havia qualquer certidão de óbito que explicasse a morte do jovem.

Desesperados, os familiares dele pediram ajuda a Mércia Albuquerque, que hoje é considerada uma das mais atuantes advogadas de presos políticos da ditadura militar.

A partir da primeira conversa, a defensora começou uma busca que, posteriormente, classificaria como “uma das maiores barbaridades que testemunhei, praticadas pelo aparato brutal da repressão”.

Em dezembro de 2001, ao receber o título de cidadã de Natal e do Rio Grande do Norte, Mércia fez um discurso sobre a sua carreira e mencionou Zé Carlos.

Ela contou que, após falar com familiares dele, vasculhou os cemitérios da região em busca do corpo do estudante, que o DOI-CODI não queria entregar à família.

Ela percorreu alguns lugares quando uma pessoa disse que deveria fazer buscas no cemitério da Várzea. Ela seguiu para o local e um coveiro relatou que havia dois jovens enterrados em caixões de madeira sem tampa.

“De posse das fotografias pude identificar, apesar do início da decomposição, o corpo barbarizado de José Carlos da Mata Machado”, relatou Mércia.

A defensora descreveu ter ficado assustada com o estado do corpo do militante. Ela contou à família dele que Zé Carlos havia sofrido violência intensa, com diversas fraturas ósseas e que estava com a cabeça “espatifada”.

O outro militante também enterrado como indigente era Gildo Macedo. Mas Mércia disse que os familiares dele estavam pressionados e atemorizados com a situação, por isso não pediram que fosse retirado dali – os restos mortais de Gildo nunca foram localizados e, até hoje, a família o busca para enterrá-lo.

Para tentar liberar o corpo de Zé Carlos, Mércia disse ter ido ao Exército falar com um coronel, que criou diversos obstáculos.

“Mostrei-lhe as fotografias das covas. O coronel, com semblante de ódio, disse-me apenas que voltasse depois. Perguntei-lhe quando. Ele então fitou-me, impaciente, e disse: ‘É uma pena que a senhora, tão jovem, defenda terroristas'”, relatou Mércia em seu discurso.

Para convencer o coronel, ela disse ter respirado fundo e argumentado que enterrar os mortos seria um direito sagrado até mesmo na guerra, em que “os exércitos concedem sempre uma trégua, respeitando o inimigo, e entregando os corpos para sepultamento”.

“Zé Carlos está morto, e a família chora seu corpo.
O Exército brasileiro agora quer torturar a família
pelo resto da vida”, narrou Mércia, ao contar
o que disse ao pedir a liberação do corpo.

Só então, o Coronel concordou,
mas havia condições:
‘não poderia ter aviso fúnebre,
o caixão deveria permanecer lacrado
e a imprensa deveria ficar longe’.

As condições foram aceitas, e o caixão seguiu em um avião de Recife,
com autorização das Forças Armadas, em direção a Belo Horizonte.

Após o episódio, Mércia disse ter sofrido represália.

A advogada contou ter sido sequestrada por quatro homens em um carro
em alta velocidade, que ameaçaram jogá-la na rua a qualquer momento.

Em seguida, segundo ela, os homens a abandonaram em uma zona
de prostituição em um bairro em Recife.

“Fui socorrida por uma prostituta apelidada ‘Biscuí’, que surgiu à minha
frente qual uma nova Maria Madalena, confortando-me e enxugando
as minhas lágrimas”, narrou a advogada.

A história de Mércia inspirou livros e, mais recentemente, uma peça
de teatro intitulada Lady Tempestade, na qual a atriz Andréa Beltrão
dá vida à advogada de vítimas da ditadura — há estimativas que
apontam que ela tenha defendido mais de 500 pessoas.

Íntegra em:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz4dd1zq5qno
.
.

Deixe seu comentário

Leia também