Rita Camacho: 1984, o PT faz a sua primeira viagem oficial à China

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A histórica delegação petista de 1984: Rachel Pomar, Wladimir Pomar, Jacó Bittar e Luiz Gushiken. Foto: Arquivo pessoal

1984: PT faz sua primeira viagem oficial à China

Honras diplomáticas e agenda intensa marcaram visita; apenas uma integrante da delegação está viva e conta algumas de suas lembranças

Por Rita Camacho, para a Fundação Perseu Abramo

O Partido dos Trabalhadores tinha apenas quatro anos de fundação quando realizou sua primeira viagem oficial à República Popular da China.

Era outubro de 1984: o PT formalizara a Secretaria de Relações Internacionais (SRI) havia seis meses; completava-se uma década da retomada das relações diplomáticas Brasil-China[1] e a Revolução Chinesa já somava 35 anos.

A comitiva designada para a missão era formada pelo então vice-presidente do PT, o sindicalista Jacó Bittar; pelo também sindicalista Luiz Gushiken, membro da executiva do partido, e pelo jornalista e escritor Wladimir Pomar, que integrava o Diretório Nacional. Somente Pomar foi acompanhado da esposa, a biblioteconomista Rachel Pomar.

Aos 88 anos, Rachel é a única integrante viva dessa empreitada internacional que no segundo semestre de 2024 completará 40 anos [2].

“O Wladimir dizia que os chineses deveriam nos achar um grupo de brasileiros muito estranho: um turco, um japonês e dois branquelas com cara de gringos”.

Naquela época, salvo as relações com Cuba, o PT, a rigor, não tinha contatos com os partidos comunistas em nenhum outro país, pois o Partido Comunista Brasileiro detinha o monopólio desses relacionamentos e não os compartilhava[3].

Os contatos com o Partido Comunista Chinês (PCCh) foram facilitados por Wladimir Pomar, que fora filiado ao PCdoB e possuía relações com a China.

O casal Pomar já conhecia o país e Wladimir se consolidaria nas décadas seguintes, dentro e fora do PT, uma referência no tema China [4].

Como Rachel e o marido foram mais de uma dezena de vezes à China, as lembranças dela se mesclam, então Rachel é cuidadosa ao tentar definir o que realmente fez parte da primeira visita oficial do PT.

Mas ela tem certeza de que o grupo foi recebido com honras diplomáticas quando o voo que os levava do Brasil chegou a Pequim, capital chinesa.

A recepção impactou muito Bittar, a ponto de ele destacar esse aspecto em seus relatos da viagem para a família.

“Meu pai voltou bastante impressionando de como o PT foi recepcionado lá”, relembra Kalil Bittar, o mais velho dos quatro filhos de Jacó Bittar.

O então vice-presidente do PT contou ao primogênito que o grupo teve prioridade no desembarque.

“E já tinham dois carros do governo chinês esperando por eles. Chegaram como se fossem chefes de Estado, inclusive não deixaram meu pai e o Gushiken no mesmo carro; meu pai foi no carro da frente, e foram com batedores até a sede do Partido Comunista Chinês ou para o hotel”, relembra Kalil, que tinha 20 anos à época.

“Como chefe da delegação, ele teve um tratamento com toda a pompa. Chamou muito a atenção dele toda a liturgia dos chineses durante a visita”.

Kalil disse que, na volta, o pai comentava sobre esse aspecto do cerimonial em conversas informais com companheiros do partido e atribuía o ritual à importância que o PT já estava conquistando. “Ele dizia: ‘o PT já é grande’…”

Aos 88 anos, Rachel é a única integrante viva da primeira visita oficial do PT à China e que no segundo semestre de 2024 completará 40 anos. Foto: Arquivo pessoal

Rachel confirma que o protocolo de deferência a Bittar se estendeu por toda a viagem. “Inclusive no hotel ele estava em andar diferente do nosso, numa categoria de conforto mais elevada”.

E Bittar seguiu se deslocando em carro separado do restante do grupo durante todo o período de estadia na China.

O destaque à posição de Bittar se estendia a reuniões e outras atividades, com lugar diferenciado à mesa, por exemplo. “Chinês gosta muito de cerimonial, tudo detalhado”, opina Rachel.

Na avaliação dela, “Gushiken era extremamente irônico e tirava o sarro; Bittar nem sempre entendia que era uma brincadeira, e levava a sério”.

Diante dessas situações, o clima no grupo, relata Rachel, oscilava entre diversão e estresse. “Mas chegou a um ponto em que Wladimir teve que interromper, porque a coisa ficou feia”.

Wladimir tentava apaziguar, manter um clima harmonioso e familiar entre todos. “Era uma situação em que devíamos estar mais unidos”.

A viúva de Gushiken, Elisabeth Leonel Ferreira, disse que o desentendimento foi “coisa pequena”. E preferiu não relatar detalhes: “Melhor esquecer. Não vale a pena”.

Kalil Bittar disse que o pai não mencionou nada a respeito.

Atualmente, Rachel reflete sobre a situação e diz que foram muitas horas de convívio concentrado e que isso se equipara ao volume de convívio que se tem com pessoas que se conhece há anos. Não era o caso dos integrantes da delegação.

Rachel, presença feminina exclusiva na comitiva, era na maioria das agendas oficiais também a única mulher.

“Você pode ver pelas fotos; um montão de homens e eu estou lá sozinha. Em algumas solenidades, passaram a ir algumas mulheres, não necessariamente esposas, eram mulheres que tinham cargos [no partido ou no governo]. A única mulher que nos acompanhou permanentemente foi uma intérprete, porque, mesmo com o inglês, havia muita dificuldade de comunicação. Lembro que, nessa viagem, dois intérpretes eram homens e tinham trabalhado na embaixada da China em Brasília. Um deles, inclusive, tinha vivido por oito anos aqui [no Brasil], e falava um português quase igual ao nosso. Até gírias ele sabia. Ele era notável, e um homem muito culto”.

O grupo teve a companhia de intérpretes durante todos os cerca de 20 dias em que estiveram na China.

Para a então esposa de Gushiken, Elizabeth, que ficou no Brasil, a viagem pareceu durar mais tempo: “Acho que um mês”.

“Durante o período que ele esteve em viagem à China, não consegui me comunicar com ele. Não sabia o que estava acontecendo. Não existia ainda o celular e a comunicação por telefone era toda monitorada, com certeza, ou bloqueada. Era um país comunista, né?”

Beth recorda que ligava no PT para tentar alguma notícia e que só lhe informavam que o retorno ao Brasil era reiteradamente postergado.

Elizabeth, viúva de Gushiken: ‘Ele trouxe dois cortes de seda chinesa. Eu escolhi o tecido preto com raminhos coloridos, ainda tenho a roupa  e uso até hoje’. Foto: Arquivo pessoal

Beth era funcionária do Banco do Brasil, enquanto o marido era do antigo Banespa e presidente (1984-86) do Sindicato dos Bancários de São Paulo.

A ex-bancária conta que o marido trouxe na mala dois cortes de seda chinesa.

“Eu escolhi o tecido preto com raminhos coloridos, ainda tenho a roupa e uso até hoje; e outro corte, bem clarinho, quase branco, com florezinhas rosas e verdes, ele levou para Marisa [então esposa de Luiz Inácio Lula da Silva, que a essa altura presidia o PT].”

Da bagagem que trouxe da China, Gushiken tirou também “muitas latinhas com uma pomada que servia para tudo e tinha cheiro de Vick Vaporub”.

Foi por conta desse cheiro intenso que Beth se deu conta de que estava grávida, pois enjoava cada vez que o marido abria uma latinha. O segundo dos três filhos do casal, Artur, nasceria em maio de 1985.

Beth se recorda de alguns relatos do marido a respeito da viagem: “Ele disse que a China, na época, tinha uma palavra de ordem: ‘ficai ricos’. Já era uma orientação diversa da anterior. Estavam mudando os conceitos. Já se voltavam ao sistema capitalista. Estavam se modernizando. Queriam sair do sistema feudal.”

A viúva de Gushiken disse que ele também descreveu alguns detalhes das agendas.

“Contou que foram a muitos almoços e jantares, onde serviam comidas exóticas e que os chineses fumavam durante a refeição. Levaram para conhecer muitas escolas e tinham orgulho delas e das crianças que se desenvolviam muito rapidamente. Ele trouxe fotos de jantares e almoços, sempre com bandeiras, emblemas ou fotos dos dirigentes nas paredes.”

Elizabeth, viúva de Gushiken, conta que os chineses levaram os membros da delegação do PT para conhecer muitas escolas. Eles tinham orgulho delas e das crianças que se desenvolviam muito rapidamente nelas. Foto: Arquivo pessoal

O sindicalista Gushiken trouxe de lembrança da China também, segundo Beth, sapatos ou sapatilhas chinesas pretas e dois uniformes do exército chinês, com os bonés de estrela.

“A estrela era de plástico. Parece que todos os trabalhadores usavam esse tipo de uniforme.”

Beth guardou as peças por muitos anos, até a última mudança de casa, recentemente, quando se desfez delas.

Bittar também trouxe de recordação da viagem à China jaquetas e boinas de cor verde oliva.

Quem desfilou com a indumentária chinesa foi o filho Kalil, despertando a atenção dos colegas na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde estudava Química. “Lembro que tinham as estrelas, e os botões eram na cor marrom”.

A jornada na China foi intensa e o grupo mal teve chance de se refazer da diferença de fuso horário, de 11 horas, e do voo longo.

Rachel não se lembra se nessa ocasião o voo foi direto ou se fizeram escala em Paris. Os passaportes dela e de Wladimir exibem carimbos do aeroporto Charles de Gaulle com datas de 8 e 26 de outubro de 1984, o que pode indicar as escalas de ida e volta para essa viagem.

“Eu acho que eles [os chineses] davam uma papeleta que utilizávamos para nos mover no país durante a estadia e que devolvíamos antes do embarque de volta ao Brasil”.

Nos passaportes mais recentes, que usaram para as demais viagens à China, vê-se o selo chinês que ocupa uma página inteira do documento.

O fato é que não houve descanso na chegada e imediatamente após ao desembarque já havia agendas a cumprir. “Delicadamente, eles impõem uma agenda”.

E tudo era sempre envolto a uma burocracia imensa, segundo Rachel.

“Foram muitas reuniões e, em algum momento, eu via que os temas já se repetiam”. Ela explica que havia atividades do governo e do PCCh, mas que, no geral, era difícil definir a diferença, pois tudo estava misturado.

Rachel lembra-se que o grupo também visitou o que os intérpretes traduziram para os petistas como Agência de Emprego.

“Demoramos muito para entender que não tinha nada a ver com o que chamamos de agência de emprego no Brasil. Era, na verdade, uma espécie de escola onde os chineses faziam cursos para aprender diversos ofícios, especialmente para trabalhar na indústria. Visitamos diversas fábricas também.”

O roteiro incluiu pontos turísticos internacionalmente famosos, como a Muralha da China. Nas memórias de Rachel sobre a primeira missão petista na China, mesmo sem conseguir precisar as províncias, estão também visitas a regiões agrícolas, onde havia habitações bastante rudimentares.

“Nós fomos a cultivos de soja, trigo e arroz”.

Kalil Bittar diz que o pai contou também que tiveram uma agenda cultural que incluiu a cidade de Nanquim, capital da província de Jiangsu.

“Chocava um pouco na época a forma como eles organizavam a sociedade, muito diferente da nossa. Já havia nessa época a política do filho único [que vigorou de 1980 a 2015][5]. Estávamos numa reunião ou atividade sobre esse tema, e me lembro que a intérprete que estava comigo me perguntou por gestos, por debaixo da mesa, quantos filhos eu tinha. Com os dedos, respondi que tinha três, e ela fez o mesmo, e rimos. Então, as mulheres não estavam nessa de um filho único; hoje você vê que era necessário; todas as crianças tinham garantia de creche e depois o que seria o jardim; a estrutura para as demais fases de ensino também se organizava a partir das necessidades de cada uma das províncias. As maiores tinham universidades.”

Na percepção de Rachel, as mulheres tinham mais chances de ter uma vida profissional, porque havia garantia de cuidados e educação para os filhos.

Mas a língua, segundo ela, era um impedimento para que pudesse entender com mais extensão e profundidade esse aspecto de gênero.

“Havia regiões em que necessitávamos de duas intérpretes. Uma local, que traduzia o dialeto daquele lugar para uma intérprete mandarim-português que traduzia para nós. E não tive também muita oportunidade de estar mais próxima da vida doméstica das mulheres, das famílias”.

Rachel disse que houve uma ou duas reuniões com a participação do Diretório Nacional para organizar a viagem. Não se recorda quem participou ou se houve alguma reunião de avaliação na volta.

Mas tem suas impressões e recordações esparsas da avaliação do marido, que não mencionou essa viagem específica em suas obras: “Não sei se estou exagerando, e não tenho muito crédito de que tenha sido muito bom. Eu acho que o PT não tinha ainda um acervo das coisas que fazia ou que queria fazer, um histórico… Então, acho que Wladimir ficou frustrado com muitas coisas. Não sei se na própria direção do PT havia um descrédito de que a China fosse ter o volume que teve depois e a importância que teria para o PT, inclusive no entendimento do problema operário, da massa, toda essa evolução de como lidar com os problemas que surgiam. E o PT era um partido extremamente novo”.

Luiz Eduardo Greenhalgh, secretário da SRI à época, não se recorda da realização dessa viagem inaugural do PT à China.

Ele argumenta que o foco da secretaria era a relação com partidos e movimentos de esquerda da América Latina, em especial com Cuba[6].

“Quem mais orientou o PT sobre a China foi Wladimir Pomar. Ele que nos abriu porta e contatos com a China, que nos mostrou como nos relacionar com os chineses, que nos mostrou como eles pensam. Ele era muito respeitado pelos chineses”, afirma.

Além de alguns recortes de jornal, pouco se encontra sobre China nas 88 caixas de arquivo com materiais da SRI que estão sob a guarda do Centro Sérgio Buarque de Holanda Documentação e Memória Política (CSBH), da Fundação Perseu Abramo.

Numa das caixas, está um telex assinado por Gushiken, que presidiu o partido de 1988 a 1990. Trata-se da nota oficial do PT declarando indignação a respeito da repressão violenta do regime chinês às manifestações de estudantes na praça da Paz Celestial, em 1989.

A mesma praça que ele havia visitado com os companheiros da delegação na viagem oficial. O breve texto de posicionamento do partido é finalizado com a seguinte frase: “Entendemos que aqueles trágicos acontecimentos são frontalmente contrários aos princípios do socialismo”. [7]

Sobre a viagem de 1984, nada foi encontrado no referido arquivo ou nos periódicos antigos digitalizados pelo CSBH/FPA.

Quase vinte anos depois, em abril de 2004, uma nova delegação do PT visitou a China, desta vez encabeçada pelo presidente nacional do Partido, José Genoíno. E assinou um protocolo de cooperação entre o Partido dos Trabalhadores e o Partido Comunista.

E, em 20 de setembro de 2023, durante a visita de uma delegação do PC da China ao Brasil, foi assinado um novo protocolo de cooperação. Polêmicas à parte, tudo indica que é uma amizade que veio para ficar.

Notas

[1] http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_16ago1974.htm

[2] Wladimir Pomar faleceu em 9 de junho de 2023, 35 dias antes de completar 87 anos. Jacó Bittar, que fundou e presidiu o Sindicato dos Petroleiros de Campinas e Paulínia e foi prefeito de Campinas-SP (1989-92), morreu aos 81 anos, em 26 de maio de 2022. Luiz Gushiken, que foi deputado federal por São Paulo (1987-99), presidente do PT (1988-90) e ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula I (2003-05), tinha 63 anos quando faleceu, em 13 de dezembro de 2013.

[3] Informação constante da tese Análise de Política Externa Brasileira: continuidade, mudanças e rupturas no Governo Lula, de Kjeld Aagaard Jakobsen, USP, 2016.

[4] Seu primeiro livro sobre o assunto, O Enigma Chinês – Capitalismo e Socialismo, seria publicado em 1987. Pomar também promoveu viagens de grupos à China, por meio da WP Consultoria, de sua propriedade.

[5] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/08/18/china-onde-politica-do-filho-unico-vigorou-por-35-anos-vai-dar-beneficios-as-familias-que-tiverem-mais-criancas.ghtml#

[6] Para mais informações a respeito, veja entrevista de Luiz Eduardo Greenhalgh à Fundação Perseu Abramo https://www.youtube.com/watch?v=ARBBDIUd0io

[7] O episódio ficou conhecido como o Massacre da Praça da Paz Celestial ou, na versão dos comunistas chineses e apoiadores, os Incidentes da Praça Tiananmen. Sobre o caso, veja Moção do VI Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, 1989, https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2019/07/Perseu_14.pdf, páginas 216 e 217.

Leia também

Valter Pomar: Miriam Leitão e suas críticas acerca da opinião do PT sobre a China

Rita Camacho: 2004, uma missão de parar o trânsito em Pequim


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Comentários

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Lucia Fernandes

2023. Exame de tradutor em japonês. A chinesa se levanta do grupo dela e vem nos cumprimentar. Havia um belo sorriso quando disse “Lula”. Só não abracei porque estava fora das formalidades.

Luiz Mattos

Só fera, Jacó , Pomar e esposa e o Samurai Gushiken bons tempos

Zé Maria

“Sonhos Desfeitos” pelo “Campo Majoritário” do Partido.

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