“Pesquisa Revela Como Médicos Atuaram a Favor
da Repressão e Encobriram Mortes na Ditadura
Militar Brasileira (1964-1985)”
A autoridade médica tinha um papel fundamental
nas torturas — “se o preso político está sendo
torturado e morre, ele não dá as informações
que queriam”.
[…]
Uma das profissões mais respeitadas,
a Medicina carrega consigo um
compromisso inegociável com a Ética.
Ou pelo menos deveria ser assim.
Em oposição completa à referência de Hipócrates,
a atuação dos médicos no apoio à tortura não foi algo
casual ou isolado, mas teve uma participação “ampla,
sistemática e estratégica”, como constata o historiador
e jornalista César Chevrand, com base em pesquisa
de mestrado inédita desenvolvida no Programa de
Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde,
da Fundação Oswaldo Cruz (PPGHCS/Fiocruz).
O estudo demonstra que a ditadura militar colocou
muitos médicos diante de dilemas pessoais.
“Existe um Código de Ética de Medicina,
existe um Juramento de Hipócrates
em que os médicos se comprometem
a fazer o bem, a cuidar e a preservar
a vida e a saúde acima de tudo”,
afirma o pesquisador.
Intitulada “DOUTORES DA DITADURA: MÉDICOS, REPRESSÃO POLÍTICA E VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL (1964-1985)” (*), a pesquisa
foi realizada entre 2019 e 2021 na Casa de Oswaldo
Cruz (COC/Fiocruz) — Radis abordou o assunto,
em reportagem que analisou os reflexos dos 60 anos
do Golpe para a saúde, e retorna ao tema para aprofundar as descobertas ‘incômodas’ trazidas pela pesquisa.
Com base em informações da Comissão Nacional
da Verdade (CNV) e de outras comissões instauradas
no Brasil, além de materiais do projeto Brasil Nunca Mais,
o pesquisador buscou desvelar a participação de
médicos na repressão.
Um dado que chamou a atenção foi justamente
a presença significativa de profissionais dessa
categoria na lista de agentes identificados e
acusados de participação em torturas.
“Dos 377 agentes de Estado acusados por crimes
no relatório, 51 denunciados eram médicos
(quatro militares e 47 civis)”, afirma — portanto,
13,5% dos acusados.
De acordo com César, há indícios de que esse número
seja ainda maior, devido ao fato de que os médicos
militares atuavam de forma clandestina e muitas vezes
sem identificação de sua formação durante as sessões
de tortura.
As suspeitas de que essas participações não teriam sido
circunstanciais se confirmaram ao longo do estudo:
“Ao mapear, reunir e analisar essas informações,
torna-se possível identificar padrões para além
das atuações individuais, compondo um quadro
complexo das relações que os médicos brasileiros
mantiveram com a repressão política durante a
ditadura”, destaca um trecho da dissertação.
Segundo o pesquisador, havia um lugar e uma finalidade
para esses profissionais na engrenagem do sistema
repressor:
“Na cadeia da repressão política engendrada e operada
pelos militares durante os 21 anos de regime, havia quem
investigasse, quem prendesse, quem torturasse, quem
assistisse a tortura, quem matasse o ‘inimigo’ e quem
assinasse um laudo falso — o médico”. [!!!]
E completa:
“Sem a ação coordenada de todos esses atores,
não somente a guerra em nome da ‘segurança nacional’
poderia estar comprometida, mas o próprio regime,
sustentado pela violência do poder do Estado”.
A autoridade médica tinha um papel fundamental
nas torturas — “se o preso está sendo torturado
e morre, ele não dá as informações que queriam”.
“Para ‘preservar’ a vida de quem era torturado durante
o interrogatório, o médico estava ali aferindo a pressão
arterial e dando aval para continuar ou interromper
as sessões de terror:
‘tá limpo, pode continuar’ …
‘não, é melhor parar
e deixar para amanhã’”,
descreve.
[…]
Além de atuarem nas sessões de torturas em
interrogatórios, outra colaboração fundamental
dos médicos em apoio ao regime foi na função
de legistas, acobertando os assassinatos com
a falsificação de laudos, quando as barbaridades
cometidas nos porões da ditadura resultaram
na morte dos detentos.
Além disso, esses médicos fizeram parte de
esquemas para o desaparecimento de muitos
dos corpos, ocasionando o sepultamento
de opositores do regime como indigentes,
o que aumentava o sofrimento de familiares
das vítimas.
Uma reportagem especial da Revista Ser Médico (nº 72),
do Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo (Cremesp), publicada em 2015, com o tema
“Os Médicos e a Ditadura Militar”, detalha um pouco mais
esses vilipêndios de cadáveres.
“Segundo relatos recolhidos pelo Grupo Tortura Nunca
Mais, os corpos dos militantes chegavam ao IML
assinalados com um ‘T’, de ‘terrorista’.
Era um sinal para que o legista atribuísse a morte
a qualquer outro evento, menos à tortura, e que
as vítimas fossem enterradas como indigentes,
sem tempo para que os sinais de violência fossem
constatados por alguém”, relata o texto assinado
pelo jornalista Aureliano Biancarelli.
César ressalta que ao esconder tais crimes —
e resguardados pela censura da imprensa (Radis 123) —,
os médicos protegiam o regime do desgaste que seria
gerado junto à opinião pública pelas violações de direitos
humanos frequentemente praticadas pelos militares.
“Basicamente os médicos legistas atuavam
nos institutos médicos legais (IMLs) subordinados
às Secretarias [Estaduais] de Segurança Pública.
Eles agiam nessa lógica policial, acobertando os crimes
na ditadura”, diz ele.
O pesquisador comenta ainda que as atrocidades
cometidas pelos médicos denunciados não se limitavam
à adulteração dos atestados de óbito e ocultação
de cadáveres.
“Houve denúncias de internação de presos políticos
em clínicas psiquiátricas.
Ou seja, com a participação de médicos assinando
laudos e punindo presos políticos com internações
psiquiátricas compulsórias e arbitrárias”, revela.
Ainda de acordo com o estudo, um dos principais legistas
envolvidos nesse sistema, com várias acusações de
falsificação de atestados de óbitos, foi Harry Shibata,
que chegou a ser diretor do IML de São Paulo (1973-1986).
Um dos casos mais emblemáticos envolvendo o legista
foi o assassinato do jornalista e integrante do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), Vladimir Herzorg, na época
diretor de jornalismo da TV Cultura, e que se tornou um
símbolo na luta pela redemocratização após sua morte.
Em outubro de 1975, ao se apresentar voluntariamente
à sede do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna],
na Vila Mariana, em São Paulo, Herzorg foi torturado
e assassinado pelos militares.
No laudo, assinado por Shibata, a causa da morte
foi atestada como suicídio, posteriormente descoberta
como falsa.
Outras denúncias similares acumularam-se contra
o legista.
A pesquisa de César enumera um total de 117 vítimas
da ditadura oficialmente relacionadas à atuação
dos médicos.
Revela ainda a maior concentração desses casos durante os chamados Anos de Chumbo, do general
Emílio Garrastazu Médici (1969 -1974), o período tido
como o mais sangrento da ditadura, a partir da
instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5), por Artur
da Costa e Silva, em dezembro de 1968.
Ao mesmo tempo em que médicos assessoravam
as torturas nos cárceres, outros profissionais
e estudantes de medicina sofreram com a repressão,
reagiram e se articularam coletivamente, principalmente
a partir da segunda metade da década de 1970,
integrando-se aos comitês pela anistia e às lutas pela
redemocratização do país — o que resultou, por exemplo,
na Reforma Sanitária Brasileira (Radis 259).
Esses médicos contrários à ditadura também sofreram
com perseguições.
“Das 474 vítimas do relatório da CNV, identifiquei
16 estudantes de medicina e quatro médicos.
Havia médicos na luta armada, na oposição
consentida, na oposição parlamentar.
A gente percebe que os médicos estavam muito
envolvidos nas lutas políticas e que questões
ideológicas estavam misturadas”, constata o
pesquisador.
Os médicos progressistas incorporaram questões
de direitos humanos à sua agenda corporativa
e organizaram-se no chamado Movimento Médico.
Essa mobilização era composta por residentes,
jovens médicos que lutavam por direitos trabalhistas
e integrantes da Renovação Médica, que eram
profissionais progressistas interessados em ocupar
a direção das entidades e associações médicas,
instituições que estiveram por muito tempo na mão
de pessoas alinhadas à ditadura.
“No final dos anos 70, esses médicos se integraram
às lutas pela redemocratização do país”, explica César.
Divididas entre um grupo conservador acomodado
ao poder e uma oposição envolvida na luta pela
democracia, as entidades médicas estavam no meio
de uma disputa política que atravessaria a década
de 1980.
“O Movimento Médico, a partir da Renovação Médica,
fez com que eles [os médicos progressistas]
começassem a disputar os sindicatos e associações
e conquistassem a direção dessas entidades, até
chegar aos Conselhos de Medicina.
Quando eles chegam aos conselhos, então conseguem
pela primeira vez responsabilizar os médicos
denunciados”, aponta o pesquisador.
Nesta trajetória, destacam-se dois processos
emblemáticos:
“Primeiro, a punição do médico-legista Harry Shibata
no Cremesp, com a perda do registro profissional,
em 1980 — recuperado posteriormente por meio de
ação judicial;
e depois, o julgamento do tenente-médico do DOI-Codi
Amílcar Lobo, no Cremerj [Conselho Regional de
Medicina do Estado do Rio de Janeiro, sob a Presidência
do Dr. Laerte Andrade Vaz de Melo], em 1988”.
Uma das conclusões da pesquisa de César é que
se os médicos participaram ativamente de violações
de direitos humanos durante a ditadura, a categoria
também foi crucial para as investigações, denúncias
e punições de seus colegas na reabertura política.
“Um ponto muito importante é que se a gente diz que
os médicos tiveram esse papel estratégico na repressão,
a gente também pode dizer que eles tiveram uma
participação importante na denúncia dos seus próprios
pares”.
Comentários
Zé Maria
https://bit.ly/doutoresdaditadura
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/50269
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/50269#collapseExample
Zé Maria
http://arch.ensp.fiocruz.br/uploads/r/escola-nacional-de-saude-publica-sergio-arouca-3/b/1/9/b1946ce0421400d798abbc2cc8cc0047a4edf89ea824a2cbebc8f47f943dfeeb/08-0202_141.jpg
DR. LAERTE VAZ é um dos Heróis da Resistência!
Sob a Presidência do Doutor Laerte Andrade Vaz de Melo,
o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ), em 1988, cassou o Registro Profissional
de Amílcar Lobo, Tenente-Médico do 1º Batalhão
de Polícia do Exército que, entre 1970 e 1974, serviu,
sob o Codinome “Dr. Carneiro”, no DOI-CODI do Rio
de Janeiro, um dos maiores centros de
tortura do país, à época.
Lobo foi denunciado publicamente em 1981 pela
ex-presa política Inês Etienne Romeu como um de
seus torturadores durante sua passagem pela notória “Casa da Morte”, um Centro Clandestino de Torturas
e Assassinatos criado pelo Centro de Informações do Exército (CIEx) na cidade de Petrópolis, estado do
Rio de Janeiro.
http://arch.ensp.fiocruz.br/uploads/r/escola-nacional-de-saude-publica-sergio-arouca-3/8/7/7/8779eb9a9b60b06d5e7e2b63cfab62fbb48b44937771e518348a5ff764008196/08-0203_141.jpg
“Médicos a Serviço da Ditadura”
“Pesquisa Revela Como Médicos Atuaram a Favor
da Repressão e Encobriram Mortes na Ditadura
Militar Brasileira (1964-1985)”
A autoridade médica tinha um papel fundamental
nas torturas — “se o preso político está sendo
torturado e morre, ele não dá as informações
que queriam”.
[ Reportagem: Glauber Tiburtino | Radis ENSP/FioCruz ]
[…]
Uma das profissões mais respeitadas,
a Medicina carrega consigo um
compromisso inegociável com a Ética.
Ou pelo menos deveria ser assim.
Em oposição completa à referência de Hipócrates,
a atuação dos médicos no apoio à tortura não foi algo
casual ou isolado, mas teve uma participação “ampla,
sistemática e estratégica”, como constata o historiador
e jornalista César Chevrand, com base em pesquisa
de mestrado inédita desenvolvida no Programa de
Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde,
da Fundação Oswaldo Cruz (PPGHCS/Fiocruz).
O estudo demonstra que a ditadura militar colocou
muitos médicos diante de dilemas pessoais.
“Existe um Código de Ética de Medicina,
existe um Juramento de Hipócrates
em que os médicos se comprometem
a fazer o bem, a cuidar e a preservar
a vida e a saúde acima de tudo”,
afirma o pesquisador.
Intitulada “DOUTORES DA DITADURA: MÉDICOS, REPRESSÃO POLÍTICA E VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL (1964-1985)” (*), a pesquisa
foi realizada entre 2019 e 2021 na Casa de Oswaldo
Cruz (COC/Fiocruz) — Radis abordou o assunto,
em reportagem que analisou os reflexos dos 60 anos
do Golpe para a saúde, e retorna ao tema para aprofundar as descobertas ‘incômodas’ trazidas pela pesquisa.
Com base em informações da Comissão Nacional
da Verdade (CNV) e de outras comissões instauradas
no Brasil, além de materiais do projeto Brasil Nunca Mais,
o pesquisador buscou desvelar a participação de
médicos na repressão.
Um dado que chamou a atenção foi justamente
a presença significativa de profissionais dessa
categoria na lista de agentes identificados e
acusados de participação em torturas.
“Dos 377 agentes de Estado acusados por crimes
no relatório, 51 denunciados eram médicos
(quatro militares e 47 civis)”, afirma — portanto,
13,5% dos acusados.
De acordo com César, há indícios de que esse número
seja ainda maior, devido ao fato de que os médicos
militares atuavam de forma clandestina e muitas vezes
sem identificação de sua formação durante as sessões
de tortura.
As suspeitas de que essas participações não teriam sido
circunstanciais se confirmaram ao longo do estudo:
“Ao mapear, reunir e analisar essas informações,
torna-se possível identificar padrões para além
das atuações individuais, compondo um quadro
complexo das relações que os médicos brasileiros
mantiveram com a repressão política durante a
ditadura”, destaca um trecho da dissertação.
Segundo o pesquisador, havia um lugar e uma finalidade
para esses profissionais na engrenagem do sistema
repressor:
“Na cadeia da repressão política engendrada e operada
pelos militares durante os 21 anos de regime, havia quem
investigasse, quem prendesse, quem torturasse, quem
assistisse a tortura, quem matasse o ‘inimigo’ e quem
assinasse um laudo falso — o médico”. [!!!]
E completa:
“Sem a ação coordenada de todos esses atores,
não somente a guerra em nome da ‘segurança nacional’
poderia estar comprometida, mas o próprio regime,
sustentado pela violência do poder do Estado”.
A autoridade médica tinha um papel fundamental
nas torturas — “se o preso está sendo torturado
e morre, ele não dá as informações que queriam”.
“Para ‘preservar’ a vida de quem era torturado durante
o interrogatório, o médico estava ali aferindo a pressão
arterial e dando aval para continuar ou interromper
as sessões de terror:
‘tá limpo, pode continuar’ …
‘não, é melhor parar
e deixar para amanhã’”,
descreve.
[…]
Além de atuarem nas sessões de torturas em
interrogatórios, outra colaboração fundamental
dos médicos em apoio ao regime foi na função
de legistas, acobertando os assassinatos com
a falsificação de laudos, quando as barbaridades
cometidas nos porões da ditadura resultaram
na morte dos detentos.
Além disso, esses médicos fizeram parte de
esquemas para o desaparecimento de muitos
dos corpos, ocasionando o sepultamento
de opositores do regime como indigentes,
o que aumentava o sofrimento de familiares
das vítimas.
Uma reportagem especial da Revista Ser Médico (nº 72),
do Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo (Cremesp), publicada em 2015, com o tema
“Os Médicos e a Ditadura Militar”, detalha um pouco mais
esses vilipêndios de cadáveres.
“Segundo relatos recolhidos pelo Grupo Tortura Nunca
Mais, os corpos dos militantes chegavam ao IML
assinalados com um ‘T’, de ‘terrorista’.
Era um sinal para que o legista atribuísse a morte
a qualquer outro evento, menos à tortura, e que
as vítimas fossem enterradas como indigentes,
sem tempo para que os sinais de violência fossem
constatados por alguém”, relata o texto assinado
pelo jornalista Aureliano Biancarelli.
César ressalta que ao esconder tais crimes —
e resguardados pela censura da imprensa (Radis 123) —,
os médicos protegiam o regime do desgaste que seria
gerado junto à opinião pública pelas violações de direitos
humanos frequentemente praticadas pelos militares.
“Basicamente os médicos legistas atuavam
nos institutos médicos legais (IMLs) subordinados
às Secretarias [Estaduais] de Segurança Pública.
Eles agiam nessa lógica policial, acobertando os crimes
na ditadura”, diz ele.
O pesquisador comenta ainda que as atrocidades
cometidas pelos médicos denunciados não se limitavam
à adulteração dos atestados de óbito e ocultação
de cadáveres.
“Houve denúncias de internação de presos políticos
em clínicas psiquiátricas.
Ou seja, com a participação de médicos assinando
laudos e punindo presos políticos com internações
psiquiátricas compulsórias e arbitrárias”, revela.
Ainda de acordo com o estudo, um dos principais legistas
envolvidos nesse sistema, com várias acusações de
falsificação de atestados de óbitos, foi Harry Shibata,
que chegou a ser diretor do IML de São Paulo (1973-1986).
Um dos casos mais emblemáticos envolvendo o legista
foi o assassinato do jornalista e integrante do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), Vladimir Herzorg, na época
diretor de jornalismo da TV Cultura, e que se tornou um
símbolo na luta pela redemocratização após sua morte.
Em outubro de 1975, ao se apresentar voluntariamente
à sede do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna],
na Vila Mariana, em São Paulo, Herzorg foi torturado
e assassinado pelos militares.
No laudo, assinado por Shibata, a causa da morte
foi atestada como suicídio, posteriormente descoberta
como falsa.
Outras denúncias similares acumularam-se contra
o legista.
A pesquisa de César enumera um total de 117 vítimas
da ditadura oficialmente relacionadas à atuação
dos médicos.
Revela ainda a maior concentração desses casos durante os chamados Anos de Chumbo, do general
Emílio Garrastazu Médici (1969 -1974), o período tido
como o mais sangrento da ditadura, a partir da
instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5), por Artur
da Costa e Silva, em dezembro de 1968.
Ao mesmo tempo em que médicos assessoravam
as torturas nos cárceres, outros profissionais
e estudantes de medicina sofreram com a repressão,
reagiram e se articularam coletivamente, principalmente
a partir da segunda metade da década de 1970,
integrando-se aos comitês pela anistia e às lutas pela
redemocratização do país — o que resultou, por exemplo,
na Reforma Sanitária Brasileira (Radis 259).
Esses médicos contrários à ditadura também sofreram
com perseguições.
“Das 474 vítimas do relatório da CNV, identifiquei
16 estudantes de medicina e quatro médicos.
Havia médicos na luta armada, na oposição
consentida, na oposição parlamentar.
A gente percebe que os médicos estavam muito
envolvidos nas lutas políticas e que questões
ideológicas estavam misturadas”, constata o
pesquisador.
Os médicos progressistas incorporaram questões
de direitos humanos à sua agenda corporativa
e organizaram-se no chamado Movimento Médico.
Essa mobilização era composta por residentes,
jovens médicos que lutavam por direitos trabalhistas
e integrantes da Renovação Médica, que eram
profissionais progressistas interessados em ocupar
a direção das entidades e associações médicas,
instituições que estiveram por muito tempo na mão
de pessoas alinhadas à ditadura.
“No final dos anos 70, esses médicos se integraram
às lutas pela redemocratização do país”, explica César.
Divididas entre um grupo conservador acomodado
ao poder e uma oposição envolvida na luta pela
democracia, as entidades médicas estavam no meio
de uma disputa política que atravessaria a década
de 1980.
“O Movimento Médico, a partir da Renovação Médica,
fez com que eles [os médicos progressistas]
começassem a disputar os sindicatos e associações
e conquistassem a direção dessas entidades, até
chegar aos Conselhos de Medicina.
Quando eles chegam aos conselhos, então conseguem
pela primeira vez responsabilizar os médicos
denunciados”, aponta o pesquisador.
Nesta trajetória, destacam-se dois processos
emblemáticos:
“Primeiro, a punição do médico-legista Harry Shibata
no Cremesp, com a perda do registro profissional,
em 1980 — recuperado posteriormente por meio de
ação judicial;
e depois, o julgamento do tenente-médico do DOI-Codi
Amílcar Lobo, no Cremerj [Conselho Regional de
Medicina do Estado do Rio de Janeiro, sob a Presidência
do Dr. Laerte Andrade Vaz de Melo], em 1988”.
Uma das conclusões da pesquisa de César é que
se os médicos participaram ativamente de violações
de direitos humanos durante a ditadura, a categoria
também foi crucial para as investigações, denúncias
e punições de seus colegas na reabertura política.
“Um ponto muito importante é que se a gente diz que
os médicos tiveram esse papel estratégico na repressão,
a gente também pode dizer que eles tiveram uma
participação importante na denúncia dos seus próprios
pares”.
*Íntegra da Pesquisa:
(https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/50269/va_Cesar_Chevrand_COC_2021.pdf
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/50269)
Íntegra da Reportagem:
https://radis.ensp.fiocruz.br/reportagem/60-anos-do-golpe/medicos-a-servico-da-ditadura/
https://www.dhnet.org.br/dados/livros/a_pdf/livro_memoria1_direito_verdade.pdf
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