Lelê Teles: Deus, a escala 6×1, Severino e o patrão

Tempo de leitura: 5 min
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Por Lelê Teles

Quadro ''Café'', de 1935, de Candido Portinari. Imagem: Projeto Portinari.

Por Lelê Teles*

tomava eu o meu corotinho colorido, sentado no meio-fio da quebrada quando, do nada, aproximou-se um sujeito maltrapilho.

pediu-me um cigarro.

seus olhos fundos olharam desejosamente para a minha garrafinha de corote (veja PS do Viomundo).

saquei outra do bolso do capote, lacrada, e lhe ofereci; sentou-se.

“valeu, professor”, agradeceu-me.

“o trabalhador se esfola o dia todo e não tem grana pra comprar uma camisinha, imagina pra pagar uma puta”, queixou-se o pobre-diabo.

magro como um faquir, o sujeito ostentava uma esvoaçante cabeleira desgrenhada e uma barba engordurada e selvagem.

aparentava uns 50 anos, mas podia ter de 30 a 35.

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devia trabalhar desde os 11, nunca passou um fim de tarde ouvindo o canto dos pássaros à sombra de um parque arborizado, nunca foi ao cinema ou ao teatro, nunca teve grana pra entrar numa dessas modernas arenas de futebol…

severino perdeu a esposa porque perdeu a libido, chegava em casa exausto, o pau murcho, a bunda mole, a saúde mental destruída.

aquilo nem era um homem, era apenas uma ferramenta de trabalho.

cuspiu, deu um longo gole no líquido de fogo – “ahhhhh” -, e acendeu o cigarro.

em seguida, desembestou a falar.

uma fala cansada e cheia de revolta.

que era pedreiro, que havia sacolejado por duas horas dentro de um ônibus lotado e que logo mais, cedinho, teria que fazer a mesma viagem de volta ao trabalho.

disse que eu é que era feliz porque amanhã, sábado, não teria que trabalhar.

perguntei se, por acaso, ouvira falar sobre a proposta de acabar com a desumana escala seis por um.

disse que soube no trabalho, vendo um vídeo que recebera pelo zap.

perguntei o que achava da proposta.

“deus é contra”, ele me disse.

espantei-me: “homem, como diabos deus pode ser contra um diabo desses?”

a lua já ia alta, iluminando um céu negro e estrelado, a rua, vazia de gentes, era ocupada pelo vento fresco e serenoso, um cachorro sujo e de olhar tristonho se coçava sob uma marquise.

gorete, a rapariga das canelas finas, caminhava toda sinuosa e insinuante pela beira da pista mal iluminada, os peitos quase de fora, a boca lambuzada de batom, farejando algum cliente encachaçado…

enquanto isso, o pedreiro tagarelava.

que se chamava severino e que estava ajudando a construir a casa de um empresário evangélico, dono de uma pequena igreja de bairro.

e que foi o ricaço quem lhe falou sobre deus e erika hilton.

disse que o sapatênis visitava a obra todos os sábados, logo cedo, lia um trecho da bíblia pros peões e abençoava o dia de trabalho deles.

“sabe por que que o patrão só vai lá na obra aos sábados, professor?”, perguntou-me o infeliz.

e ele mesmo respondeu.

“porque a empresa dele não abre nem no sábado e nem no domingo.”

o mestre de obras, continuou o tagarela, havia sugerido ao patrão que eles só trabalhassem até sexta, porque os trabalhadores tinham problemas em pegar condução no sábado e que aqueles miseráveis renderiam mais se pudessem descansar.

o empresário identificou ali uma fala subversiva, uma insolência hiltoniana, e resolveu contra-atacar: arrancou a bíblia do sovaco e leu o gênesis 2:2-3.

aquele trecho que fala que deus fez o mundo em seis dias e que no sétimo ele descansou.

captei a falta de ética daquele protestante e protestei:

“é um bom argumento, severino, mas pense comigo, se deus que é deus, pai de todos os pais, infalível e invencível se cansou em seis dias de trampo, imagina você.

severino olhou pras canelas magras da gorete, pensativo.

eu aproveitei pra tagarelar.

“e olha que deus não trabalhou debaixo de um sol desgraçado como você, severino.”

severino, com seus olhos tristes, lambia a sombra seminua da gorete, projetada na poça de lama.

“cê tá ligado, severino, que deus só inventou o sol depois que terminou o serviço dele, né?”

agora fora severino que se assustara.

“sim, homem, deus fez o sol pra descansar na sombra, antes disso tudo era treva.”

severino teve um sobressalto:

oxen, e como é que deus trabalhou no escuro, professor?”

gorete, acostumada a labutar na penumbra, deu uma sonora gargalhada, tossiu e quase se engasgou com o pigarro.

severino se sentiu enganado pelo patrão, ele se deu conta de que, no início dos tempos, nem deus havia inventado o sol e nem os homens ainda haviam inventado os dias da semana, uma vez que deus sequer havia inventado os homens.

a alma de severino voltou pro corpo, ele era um homem novamente.

gorete se aproximou, lasciva, com 90% das pernas expostas ao relento, e pediu fogo pro cigarro.

baforou a primeira fumaça na cara magra de severino, deu uma gargalhada pombagírica e voltou pro seu posto, se equibilibrando nos saltos feito um papagaio.

enquanto o pedreiro admirava a magreza da rapariga, eu buscava um versículo no gugo…

achei.

“escuta essa, severino, pedro 3:8, amados, não se esqueçam disso, um dia com o senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”.

“oxen”, calculou o pedreiro, “então deus não trabalhou seis dias coisa nenhuma, eram seis dias pra ele, mas pra nós era como se fosse seis mil anos!”

balancei a cabeça afirmativamente.

eu não estava querendo jogar meu parceiro contra deus, queria lançá-lo contra o patrão.

“a bíblia também diz, severino, que deus inventou o trabalho pra punir adão.”

com mil cabruncos, quer dizer que o trabalho é um castigo, professor?”

“exatamente, meu caro.”

severino deu outra golada.

“a palavra trabalho, severino, vem do latim tripalium, que era uma chibata usada pra fustigar o lombo dos miseráveis.”

severino matou o corote numa longa golada.

“tu bem o sabes, severo, que é por isso que durante a escravidão só os pretos trabalhavam.”

severino teve insight: “peraí, se deus inventou o trabalho pra punir adão, então o que ele fez, ao criar o mundo não foi trabalho.”

não tive como discordar do pedreiro.

gorete, cansada de caminhar pra lá e pra cá, veio se sentar com a gente pra aquecer o corpo seminu.

deu uma talagada na minha garrafa, olhou pro pedreiro e ensinou: “a profissão, severino, é a primeira prostituição do mundo.”

por um instante, severino se viu na obra, de perna de fora, salto alto e batom vermelho, tentando seduzir o patrão no intuito de levar uma ração pra casa.

no meio desse pensamento absurdo surgiu uma viatura da polícia.

os peêmes vieram tirar um sarro com a gorete.

o cabo, freguês assíduo, lhe trouxe um espetinho de gato.

gorete agradeceu e mastigou a iguaria com um sorriso saliente.

ela sabia que os clientes de farda não apareciam todos os dias porque eles não trabalhavam todos os dias.

a puta, querendo deixar o pedreiro ainda mais encabulado, perguntou ao militar:

“qual é a sua escala de trabalho, peçanha?”

“eu trabalho vinte e quatro por quarenta e oito”, respondeu o pé-de-botas.

“ou seja, você trabalha um dia e folga dois, como um deputado.”

todos gargalhamos, menos severino.

o infeliz se deu conta que até a gorete fazia o seu horário de trabalho e que ali só ele tava na escala seis por um.

e já um pouco embriagado começou a contar nos dedos: “só trabalham seis por um o pedreiro, o porteiro, o padeiro, o garçon, a doméstica, a babá…

um carrão parou na esquina, gorete se levantou e foi até lá, meteu a cabeça pela janela, sorriu, deu a volta e entrou no carro.

severino reconheceu o automóvel.

era seo orácio, o patrão evangélico que aproveitava a noite de sexta-feira pra se divertir, dando uma parcela do dinheiro dos fiéis para uma prostituta.

a alma de severino voltou a abandonar o seu corpo.

aliás, corpo não, uma carcaça cansada.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

PS do Viomundo: ”Corote é uma espécie de vodka barata”, explica-nos Lelê Teles.

Tem 13,5% de teor alcoólico, é a cachaça mais em conta do mercado.

Em garrafinhas coloridas de todos os sabores, é uma verdadeira febre entre os jovens em bloquinhos de carnaval, fluxos de funk e rolês aleatórios.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Lelê Teles

Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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Zé Maria

“CAPIM DO VALE”
(Paulinho Tapajós / Sivuca)

Por Elba Ramalho da Paraíba

https://youtu.be/QvdGynFOYqM
https://youtu.be/N4NkQBRAX88

Lava esse cheiro de erva
Pimenta e capim do vale
Lava esse cheiro de erva
Pimenta e capim do vale
Lava o suor da colheita
E aceita que eu te agasalhe
Lava o suor da colheita
E aceita que eu te agasalhe

Larga a madeira na estrada
E larga essa faca de entalhe
Larga a madeira na estrada
E larga essa faca de entalhe
Larga o patrão na picada
E aceita que eu te agasalhe
Larga o patrão na picada
E aceita que eu te agasalhe

Sempre há de haver algum trigo
E da terra algum pedaço
Guarda a tua mão pra um amigo
Que não vai querer teu braço
Guarda a tua mão pra um amigo
Que não vai querer teu braço

Deixa o dinheiro mal pago
E mande que ele trabalhe
Deixa o dinheiro mal pago
E mande que ele trabalhe
Enquanto você toma um trago
E aceita que eu te agasalhe
Enquanto você toma um trago
E aceita que eu te agasalhe

Deita teu corpo em meu ventre
Que eu guardo a tua semente
Deita teu corpo em meu ventre
Que eu guardo a tua semente
Ninguém carrega a colheita
Dos frutos que são da gente
Ninguém carrega a colheita
Dos frutos que são da gente

Sempre há de haver algum trigo
E da terra algum pedaço
Guarda a tua mão pra um amigo
Que não vai querer teu braço
Guarda a tua mão pra um amigo
Que não vai querer teu braço

https://g.co/kgs/Us1M84Q

Álbum CAPIM DO VALE (LP 1980)
https://open.spotify.com/intl-pt/album/1xH1oGW46uGSRJykgnGdA4
https://www.youtube.com/playlist?list=PLrt7VbxNS8reFOkQcewzk0rrdUFC5yGNU
https://www.discogs.com/pt_BR/master/564679-Elba-Ramalho-Capim-Do-Vale?format=LP&year=1980

.

Zé Maria

“CANTO DAS TRÊS RAÇAS”
(Mauro Duarte De Oliveira / Paulo Cesar Francisco Pinheiro)

Por CLARA NUNES

https://youtu.be/dcVKb2ht6BE

Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil

Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou

Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Do Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou

Fora a luta dos inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou

E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo desta terra
Quando pode cantar
Canta de dor

Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô

E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas como um soluçar de dor

Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô

Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Do Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
E esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô

https://www.vagalume.com.br/clara-nunes/canto-das-tres-racas.html

Álbuns:

CLARA (LP 1976)
https://open.spotify.com/intl-pt/album/32VNQlyGmFb0otQdOr43Rx
https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mJdLFvoXkPeyw7Ulr90XBt8XciVk22Lc0
https://www.discogs.com/pt_BR/master/363726-Clara-Nunes-Canto-Das-Tr%C3%AAs-Ra%C3%A7as?format=LP&year=1976

MEUS MOMENTOS (CD 1994)
https://youtu.be/JxbV4mVoq5I
https://open.spotify.com/intl-pt/album/2tscVYWD89NffD6GnRljnk
https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_l4iTGlvg1feD5kuk9r-9xFWmilBNaGcpw
https://www.discogs.com/pt_BR/master/2000167-Clara-Nunes-Meus-Momentos

.

marcio gaúcho

Grande texto! Parabéns!!!

Lelê Teles

Gracias

Montenegro

👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾

Zé Maria

Atualmente, as palavras “Labor” e “Lavoro”
são Usadas como Significado de Trabalho,
em geral, e derivam do Latim “Labor(is)”
correspondendo a Atividade Penosa, Dor,
Esforço, Sofrimento, Fadiga, remetendo
à Definição da Palavra Grega “Ponos” que,
na Mitologia, era um “Daimōn” (“δαίμων”)*
“Espírito”, que personificava o Esforço Físico,
o Trabalho Pesado e a Fatiga.
https://en.wiktionary.org/wiki/%CE%B4%CE%B1%CE%AF%CE%BC%CF%89%CE%BD

Zé Maria

https://youtu.be/RfnkQaAkJiQ
O Tripalium era um Tridente de Madeira Usado
no Império Romano para Empalar Cristãos.
Esse Instrumento de Tortura foi Adaptado
pela Igreja da Inquisição com um Gancho
de 3 Pontas para Evisceração dos ‘Hereges’,
‘Blasfemos e ‘Pecadores’, que eram Estripados
e Deixados Vivos com Dor Intensa em Lenta Agonia.
https://portal.unisepe.com.br/unifia/wp-content/uploads/sites/10001/2018/06/Direito_em_foco_Tripalium.pdf

Zé Maria

.
.
O Trabalho Como Instrumento
de Exploração e de Dominação.

Ou:
.
.
“O Trabalho como Maldição,
como Crime e como Punição”

Por
Eduardo Antonio Bonzatto
Doutor em História Social

https://portal.unisepe.com.br/unifia/wp-content/uploads/sites/10001/2018/06/Direito_em_foco_Tripalium.pdf
.
.

Morvan

Não sei se são melhores: os insights do Severino, o corote compartilhado ou a esbórnia da Gorete, mas a crônica do Lelê Teles é maravilhosa.

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