O velório da utopia

Tempo de leitura: 3 min

por Luiz Carlos Azenha

Provocado por um leitor, vou ver o debate completo da Band na rede e opinarei de forma mais completa nas próximas horas. Levei um certo tempo para descobrir o que me incomodou tanto nos trechos que assisti. Sou suficientemente rodado para saber que debates nos dias de hoje, com tantas regras, não decidem eleições, salvo se houver um escândalo provocado por um dos contendores (segundo o Eduardo Guimarães, com quem conversei por telefone, algo como um dos candidatos saltar a bancada e fazer um strip ao vivo). Já fui mediador de um debate local, nos tempos da Globo. Um dos candidatos pediu uma plataforma de madeira, para não parecer tão baixo aos telespectadores.

Nos Estados Unidos, eu estava lá quando Lloyd Bentsen nocauteou Dan Quayle. Ambos eram candidatos a vice. Bentsen, do democrata Michael Dukakis. Quayle, de George Bush pai. Quayle, um zero à esquerda, uma espécie de Índio da Costa dos republicanos na época — estamos falando de 1988 — era um all american boy, que costumava se comparar ao jovem John Kennedy. A juventude e o idealismo de Quayle eram importantes para uma chapa capenga (Bush pai era um burocrata desprovido de carisma), mas ele precisava apagar a impressão de que era senador apenas por causa do dinheiro da família. Quando Quayle tentou se comparar a Kennedy no debate, no entanto, tomou um direto no queixo de Bentsen, que disse assim: “Senador, eu trabalhei com Jack Kennedy. Eu conheci Jack Kennedy. Jack Kennedy foi amigo meu. Senador, o senhor não é Jack Kennedy”. Veja aqui, no You Tube. O fato é que a dupla Bush-Quayle se elegeu tirando proveito da gigantesca popularidade de Ronald Reagan.

Nos debates de hoje em dia, são raras as oportunidades que os candidatos oferecem. Todo mundo “joga na retranca”.

Pois foi exatamente este o motivo do incômodo, que eu já havia sentido em outras ocasiões, mais recentemente durante a campanha eleitoral nos Estados Unidos, quando Barack Obama se elegeu.

Obama tinha dois slogans de campanha: “Sim, podemos”, apelava ao idealismo dos eleitores. “Mudança na qual podemos acreditar” era uma tentativa de dar segurança ao eleitorado e ao mesmo tempo se contrapor à “mudança na qual não se devia acreditar”, representada por John McCain. Hoje, nem é preciso dizer que a maioria do eleitorado mais progressista de Obama está descontente com ele. Está cada vez mais claro que o idealismo projetado na campanha foi um golpe de marketing. Na crise financeira, Obama escolheu Wall Street. Na reforma da saúde, escolheu o lobby das seguradoras. Na política externa, escolheu o AIPAC. “Change that we can believe in” é um slogan que hoje caberia perfeitamente nos escritórios daqueles que votaram em McCain.

Sou de uma geração que cresceu assistindo a materialização da utopia nas ruas. Você podia não fazer a menor diferença, mas se sentia responsável pelo mundo. Sou do tempo em que Antonio Carlos Magalhães, governador da Bahia, mandou apagar as luzes e atirar pó de mico sobre os estudantes que refundaram a UNE, em Salvador (ou pelo menos a gente achava que foi ele). Ou do tempo em que os estudantes pintavam os muros de São Paulo com “a UNE de volta em novo sabor: limão nos olhos da ditadura”.

Os tempos, obviamente, mudaram. Especialmente na América Latina, a esquerda chegou ao poder pelo voto. No Brasil, Lula deu concretude às antigas reivindicações: acesso à moradia, à universidade e ao consumo esvaziaram antigas palavras-de-ordem. Estamos em um período de mudanças incrementais, até porque a margem de manobra de qualquer grupo político se reduziu enormente num mundo “domesticado” pela globalizaçao e pelas novas tecnologias. Fidel Castro na Sierra Maestra seria pulverizado, hoje em dia, por um frota de Predators guiados por GPS e manejados à distância. Os limites para o exercício da democracia foram afunilados: você pode escolher, sim, desde que seja entre a Coca e a Pepsi. A margem de manobra mesmo dos governantes mais “poderosos” do mundo se reduziu enormemente diante do poder das grandes corporações.

O que me incomodou no debate da Band foi ver o teatro ali tão aparente, sem disfarces. Foi a rendição quase completa à lógica das campanhas contemporâneas, em que os candidatos dizem não o que gostariam ou poderiam dizer, mas o que os assessores ou as pesquisas dizem a eles que deveriam dizer. Foi a política subordinada completamente à lógica do marketing e da TV, com comerciais e tudo. Sei que os quatro candidatos representam projetos políticos distintos. Muito distintos. Mas foi doloroso vê-los ali naquele jogo ensaiado, numa espécie de velório da utopia.

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