Fatiados para vender. Ou para destruir

Tempo de leitura: 4 min

Post publicado originalmente pelo Viomundo em 26/04/2010

por Luiz Carlos Azenha

Semanas antes da invasão dos Estados Unidos ao Iraque, desembarquei em Bagdá. Eu era, então, correspondente da TV Globo em Nova York.

Percorrendo as ruas da cidade, fiquei espantado com as imagens gigantescas de Saddam Hussein, em poses e situações diversas, espalhadas pela capital iraquiana.

Não era o mesmo Saddam. Era Saddam, o ímpio, rogando aos céus (sunita, ele comandava um governo secular mas se sustentava em alianças com líderes religiosos locais, inclusive xiitas, aos quais brindou com a construção de gigantescas mesquitas). Saddam, de garrucha na mão, defendendo os iraquianos (árabes) dos persas iranianos. Saddam afagando a cabeça de uma criança. Saddam pastor de ovelhas. E por aí vai. Saddam, que governou montado em uma máquina de propaganda e de terror, tinha para todos os gostos. Era estudioso de Stálin.

Fast forward para alguns anos depois, em 2008, durante a campanha eleitoral nos Estados Unidos. O jovem senador Barack Obama não tinha, nem tem qualquer semelhança com Saddam Hussein. Estamos falando de sociedades completamente distintas. Como nenhum outro político, então, Obama compreendeu o quadro eleitoral que se avizinhava. O descrédito do governo Bush e suas “armas de destruição em massa” era gigantesco. O país mergulhava em uma profunda crise financeira. A falta de confiança nos partidos tradicionais era enorme. A internet, à qual estavam plugados milhões de eleitores, já tinha avançado muito como alternativa à mídia tradicional.

Através dela, novas relações entre os próprios eleitores, sem a necessidade de intermediários, floresciam. Teias invisíveis eram tecidas à distância e muitas vezes sem compreensão daqueles que estavam acostumados a controlar o fluxo e cobrar um “pedágio” por isso. A ideia de que o meio é a mensagem ruia. “Somos a mensagem”, diziam em outras palavras os partidários de Obama. Um candidato, argumentavam, é resultado da soma da força intelectual de todos aqueles que o apoiam. Obama, um homem de seu tempo, compreendeu perfeitamente isso. Expôs-se na internet. Dizem até que é o primeiro político da geração pós-privacidade. Mas isso é outra história.

Obama compreendeu, também, que lidava com uma sociedade fracionada pelo capitalismo, ao qual interessa mais ter consumidores que cidadãos: o motor econômico do país é a gigantesca classe média em “estado permanente” de consumo, vender duas geladeiras é sempre melhor que vender uma e a grande mobilidade geográfica dos estadunidenses contribuiu para isso (solidão faz bem, especialmente se você comprar bastante para preencher o vazio emocional).

Num perfil de Obama que escrevi, então, para a revista CartaCapital, associei Obama a uma corrente de pensamento, o “capitalismo comunitário”. Obama, lembrem-se, começou a carreira como ativista comunitário, em Chicago, tentando resolver problemas práticos dos moradores de bairros pobres, derivando daí talvez o senso pós-ideológico que tem da política, o que permite a ele se apresentar como mediador entre as diversas “tribos”.

Foi nessa conjuntura que a campanha de Obama o apresentou ao eleitorado. Num país assim interconectado, descrente dos políticos tradicionais e ávido por um “centro político”, Obama foi lançado como intérprete dos desejos difusos da maioria. Calibrou seu discurso: Obama não era contra o aborto, nem plenamente o defendia. Obama era contra a invasão do Iraque, mas defendia “guerras justas”. E assim sucessivamente. Obama foi “fracionado”, para melhor consumo.

Apoie o VIOMUNDO

O Partido Republicano, em resposta, também fracionou Obama em mil pedaços. Não literalmente, claro, embora desejo não faltasse. Para os católicos, era Obama, de sobrenome Hussein, o muçulmano que tinha estudado em uma madrassa (escola religiosa) na Indonésia. Para os brancos, era Obama representante das minorias e uma ameaça à própria nacionalidade. Para os conservadores tradicionais, muitos dos quais são socialmente sensíveis, era Obama o gastador, que pretendia inchar a máquina do estado e aumentar os impostos. Para os lunáticos, era Obama o “socialista”. Para os indecisos, era o Obama da ficha falsa (a certidão de nascimento dele é autêntica, nasceu mesmo nos Estados Unidos?). Para os defensores de uma política externa agressiva, era o Obama que não usava a bandeirinha americana na lapela do paletó.

A lista de factóides foi tão grande que Obama lançou um endereço na internet exclusivamente destinado a desmentí-los, que permanece no ar, aqui. Só não acusaram Obama de se fazer passar por um artista famoso, mas faltou pouco.

John McCain, para se livrar do legado de Bush, se apresentou como “independente”, trouxe uma cara nova para a campanha, Sarah Palin, e tentou se apresentar ao eleitorado como o verdadeiro Obama. De repente, o insider com longa carreira nos bastidores da política se apresentou como um “outsider”, distante das “mazelas de Washington”. Torcedor dos Cardinals, do Arizona, só faltou McCain comentar uma partida entre o Chicago Bears e o New York Giants torcendo para os dois! De noite, ele andava de braços dados com o democrata Joe Lieberman, um “esquerdista” pelos padrões republicanos. De manhã, acordava com a milenarista Palin.

Os factóides eram apresentados na internet, mas tinham a “mania” de acabar gerando um debate desmobilizador, nos infindáveis debates sobre se aquilo era falso ou verdadeiro, em programas de rádio e de televisão.

Obama “forçado” a usar a bandeirinha dos Estados Unidos na lapela:

Obama recebe “congratulações” de Osama bin Laden, com a tradução falsificada dizendo que “ambos temos amigos que ajudaram a explodir o Pentágono”:

Será que Obama, na verdade, é Osama bin Laden disfarçado?

E olhem aqui o que dizia a Fox News em rede nacional de televisão!

A campanha de 2008 nos Estados Unidos celebrou a vitória absoluta da propaganda sobre a política e do marketing sobre o Jornalismo.

Em um estado de fragilidade como há décadas não se via, agentes de uma guerra fracassada e de uma profunda crise econômica, os republicanos ainda conseguiram 45,7% dos votos (contra 52,9% de Obama).

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Leia também