Depois de 40 mil mortos, Trump quer ganhar votos como maior adversário das orientações de seu próprio governo

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Tirania, nazismo e misoginia: a direita dos Estados Unidos ataca a governadora democrata de Michigan, agora, como atacou Hillary Clinton em 2016. Reprodução

por Luiz Carlos Azenha

Quando Saddam Hussein comandava com mão de ferro o Iraque, cartazes com a imagem do então líder iraquiano eram vistos nos cruzamentos mais importantes de Bagdá.

Eram centenas.

Ora Saddam aparecia retratado como o líder secular, de terno, o modernizador do Iraque, dividindo o painel com locomotivas e uma mulher de cabelos esvoaçantes (ao lado de marido e filho); ora, era pintado como o comandante fardado que defendera a Nação na guerra contra o Irã; em outro canto, aparecia fardado e ajoelhado, clamando aos céus pela benção de Maomé. Havia até a versão pop de Saddam, relaxado, com a xícara de chá em uma das mãos, como qualquer outro cidadão comum.

Saddam: tudo para todos.

Provocado por este repórter, um analista da cena iraquiana de então resumiu:

Ainda que numa sociedade muçulmana haja uma clara contradição entre a mulher de cabelos esvoaçantes, sem qualquer tipo de véu, e um líder que se ajoelha, com as mãos erguidas ao céu, o que importa ao regime é que Saddam ofereça a cada iraquiano o que ele, cidadão comum, quer ver em seu líder.

Do ponto-de-vista da propaganda, Saddam era tudo para todos, na tradição do que outros ditadores já haviam feito, em outros países, para sustentar sua popularidade.

A cena de Bagdá me ocorre agora, ao ver Donald Trump levando a sério a pandemia do coronavírus, em longas entrevistas coletivas, E AO MESMO TEMPO incentivando seus seguidores a “libertar”, nas ruas, seus estados do isolamento social.

Virgínia, Minessota e Michigan — os estados onde apoiadores de Trump foram às ruas contra o isolamento social — são, não coincidentemente, governados por democratas.

A ambiguidade de Trump quanto à pandemia serve, neste momento, essencialmente a seu projeto de reeleição.

De um lado, Trump tentou se retratar como um war president, presidente de tempos de guerra, associando sua imagem à de Franklin Delano Roosevelt.

Entre 1933 e 1944, período que compreendeu da turbulência causada pelo Crash de 1929 à Segunda Guerra Mundial, FDR falava com familiariedade a milhões de norte-americanos pelas ondas de rádio, no que ficaram conhecidas como “conversas de lareira”.

Eram papos em que o líder, informalmente, transmitia segurança aos liderados.

Trump apropriou-se das entrevistas coletivas diárias do grupo de trabalho que montou para enfrentar a pandemia à medida em que percebeu que a audiência dos briefings diários disparou na TV.

Inicialmente, ele compartilhava o púlpito com especialistas e evitava entrar em detalhes sobre questões médicas ou curvas estatísticas.

Com o passar do tempo, passou a dominar quase completamente as entrevistas, algumas com mais de duas horas de duração, anunciando toda sorte de medidas e atacando repórteres que lhe faziam perguntas inconvenientes.

Ao levar a pandemia a sério, Trump se afastou da reação inicial negacionista de boa parte de sua base política, que se viu refletida na Fox News.

Com isso, Trump ganhou pontos nas pesquisas de opinião.

Porém, 40 mil mortos depois, a opinião pública tornou-se cada vez mais crítica da reação atrapalhada do presidente e do governo federal à pandemia.

Sentindo a oportunidade, os democratas rapidamente puseram fim ao processo de escolha de seu candidato à Casa Branca e se juntaram em torno do ex-vice-presidente Joe Biden, numa manobra aparentemente conduzida nos bastidores por Barack Obama.

Na média das pesquisas mais recentes, Biden aparece com 5,8% de vantagem sobre Trump.

Na que a rede NBC e o Wall Street Journal divulgaram, feita entre 13 e 15 deste mês, Biden tem 49%, contra 42% de Trump.

Em alta, a taxa de desaprovação de Trump bateu em 50,9% na média das pesquisas.

 Mas, por que então Trump faz pressão pela abertura da economia?

De um lado, porque precisa atender à sua própria base negacionista e ao empresariado que lhe dá sustentação.

Ao escolher governadores democratas como nêmesis, ele politiza a decisão de relaxar o isolamento social — que, como no Brasil, cabe aos governadores — em ao menos dois estados que são considerados chave na eleição de novembro, Michigan e Minesotta.

Em ambos, pesquisas recentes mostram Joe Biden avançando (4,4% de vantagem em Michigan, 12% em Minesotta).

Além disso, Trump sabe que quanto mais for retardada a reabertura da economia, pior será o estado do país durante o trecho final da campanha.

O maior risco para o presidente está no bloco do eleitorado mais velho, que apoiou Trump maciçamente em 2016 contra Hillary Clinton (53% a 44%), mas é o mais afetado pelas mortes causadas pela pandemia.

Por isso, o presidente dos Estados Unidos continua dizendo que sua prioridade é “salvar vidas”.

A ginástica eleitoral de Trump exige que ele pose de presidente de guerra para este eleitorado mais velho, que tem a memória de FDR, ao mesmo tempo em que cobra a reabertura da economia para atender à sua base negacionista, mais jovem e menos vulnerável ao coronavírus.

Ao menos até novembro, feito o Saddam Hussein, Trump terá de ser tudo para todos se quiser garantir a reeleição.

Isso exige que ele governe como um líder que eficazmente combate a pandemia, ao mesmo tempo em que age como um outsider, combatendo ao lado de seus fãs mais ardorosos, contra as autoridades que representam “o mal”: governadores democratas, a China Comunista e a Organização Mundial de Saúde.


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