Com nota, Dilma rejeitou papel de testemunha da corrupção no governo Lula

Tempo de leitura: 6 min

por Luiz Carlos Azenha

O ministro relator da Ação Penal 470, Joaquim Barbosa, tem um currículo impecável. O blogueiro Eduardo Guimarães já demonstrou (aqui e aqui) a hipocrisia dos críticos que passaram a adular Barbosa depois da atuação dele no caso do mensalão. Hipocrisia, aliás, que também é dos que elogiaram Barbosa quando ele enfrentou Gilmar Mendes no plenário do STF e que agora o criticam. E que também alcança aqueles que elogiaram decisões importantes do STF no passado — como no caso das células tronco, do reconhecimento da união homoafetiva e das cotas raciais –, mas que agora questionam a legitimidade do tribunal.

Já foi observado que o julgamento poderá ou não ter reflexos futuros em casos similares apreciados pela Justiça, inclusive pelo próprio STF. Se não tiver, só então poderia se argumentar que foi, de fato, um julgamento de exceção.

Como notou o comentarista Jotavê, originalmente no blog do Nassif, está claro que “os critérios para o reconhecimento da corrupção passiva se alargaram” por conta especialmente do voto do relator Joaquim Barbosa:

Como o ministro [Ricardo Lewandowski, em seu voto] ressaltou, esse alargamento não tem nada a ver com a “exigência de ato de ofício”, como se antes fosse exigida a comprovação da prática de tal ato. O que se exigia antes (e não se exige mais) é a comprovação de um vínculo efetivo (e não meramente abstrato, virtual) entre o recebimento presente e o ato futuro. Quem recebe a vantagem, pela interpretação antiga, deveria de algum modo sinalizar a disposição de agir de tal e tal modo no exercício de seu cargo de modo a retribuir a vantagem indevida que está recebendo. Pela nova interpretação, a comprovação desse vínculo tornou-se dispensável. Se Fulano recebeu dinheiro indevido e existe a perspectiva (por abstrata que seja) de um favorecimento em função do cargo que ocupa, então Fulano corrompeu-se, e ponto final.

Em outras palavras, pouco importa se quem recebeu dinheiro do PT durante o primeiro mandato do governo Lula de fato votou com ou contra o governo no Congresso. A perspectiva de que poderia favorecer o governo Lula é suficiente para a condenação por corrupção passiva.

Critérios “alargados” como estes favorecem a condenação  dos réus do chamado “núcleo político” — o ex-ministro José Dirceu, o ex-presidente do PT José Genoíno e o ex-tesoureiro do partido, Delúbio Soares.

O PT tentou explicar os pagamentos feitos a líderes aliados durante o primeiro governo Lula como resultado de caixa dois, ou seja, de repasses que cobririam despesas da campanha de 2002. O partido argumentou, também, que não faria sentido comprar votos de seus próprios parlamentares, já que os ex-deputados federais João Magno, Professor Luizinho e Paulo Rocha também são réus na ação.

Ao contrário de algumas interpretações ligeiras, segundo as quais a presidente Dilma Rousseff teria divulgado nota oficial para dar um “tranco” em Joaquim Barbosa ou mera satisfação aos petistas, o que ela fez na prática foi circunscrever as acusações feitas pelo relator a todo o governo Lula.

Em seu voto, Barbosa pintou um quadro de corrupção generalizada na relação do governo Lula com o Congresso, muito além das acusações específicas de que o PT teria comprado determinados votos de determinados parlamentares em determinadas votações. Sem provas específicas, Joaquim Barbosa optou por jogar uma grande rede e evocou o testemunho de Dilma com o objetivo de reforçar sua tese de que a ação corruptora/corrompida foi ampla, geral e quase irrestrita. Basta analisar este trecho do voto do relator, no qual condutas individuais são várias vezes generalizadas:

Os autos também permitem concluir que se os parlamentares divergissem da orientação do governo e assim contrariassem os interesses de quem os estavam a corromper deixariam de receber os milhares de reais em espécie com que vinham sendo agraciados. Há um exemplo claro de que a infidelidade neste contexto produziria essa consequência, que foi a expulsão do Partido dos Trabalhadores de parlamentares que contrariaram a orientação do governo na votação das reformas da Previdência e Tributária. Se o Partido dos Trabalhadores abriu mão de parlamentares com importância histórica em suas fileiras, conclui-se que os deputados federais do Partido Progressista, do Partido Liberal, do Partido Trabalhista Brasileiro e do PMDB beneficiados pelos pagamentos já mencionados estavam obrigados a garantir o seu apoio e o apoio da maioria dos seus correligionários ao governo no decurso dos trabalhos da Câmara na perspectiva de continuarem a receber as vantagens indevidas.

Assim, em troca da vantagem indevida, estes negociaram a prática de atos de ofício em prol dos representantes do PT e do governo que, como nós já demonstramos à saciedade nesses autos, pagaram essas vantagens indevidas. As defesas alegaram ainda que não há comprovação de vínculo entre os atos de ofício e os pagamentos recebidos. Repita-se em primeiro lugar que o argumento é irrelevante para fins de consumação dos delitos de corrupção passiva que, como já visto neste voto, são crimes formais e portanto independem da efetiva prática do ato de ofício que se pretende influenciar através do pagamento da vantagem indevida.

De toda sorte, os autos revelam que essa vinculação existiu e foi duradoura, formando uma sólida base aliada em troca de elevadas quantias em dinheiro. Vale salientar mais uma vez que houve pagamentos mais vultosos e concentrados às vésperas e no decorrer das votações de reformas importantes como a da Previdência e Tributária, períodos em que todos os acusados foram contemplados com recursos oriundos do esquema operacionalizado por Marcos Valério e Delúbio Soares e simultaneamente garantiram os votos majoritários das bancadas por eles lideradas e influenciadas.

Para refutar a caracterização do vínculo entre esses pagamentos e votações exemplificadas nos autos, as defesas sustentaram que os parlamentares acusados já haviam votado favoravelmente às reformas da Previdência e Tributária no governo anterior. O argumento a meu sentir não afasta a configuração do crime de corrupção, pois o fato de os parlamentares terem votado a favor das propostas legislativas da administração anterior também não conduz à conclusão de que se manteriam fiéis ao novo governo, tanto é que vários parlamentares de outros partidos também haviam votado favoravelmente às reformas no governo anterior mas não repetiram a mesma orientação no novo governo.

Ademais, são amplamente conhecidas as complexidades da política partidária brasileira, pouco afeita a compromissos programáticos das agremiações partidárias de modo que a afirmação de que o apoio era natural ou programático não corresponde à experiência histórica da maioria dos nossos partidos e do nosso Parlamento. Afirmar que o recebimento de dinheiro em espécie não influencia o voto e que é a manifestação parlamentar guiada pelo programa do partido no caso brasileiro é a meu ver posicionar-se a léguas de distância da realidade política nacional.

Portanto, não impressiona a alegação de que os parlamentares acusados apoiaram nos governos anteriores projetos de lei e de emenda constitucional semelhantes. Nada disso afasta o dado extraído dos autos de que os parlamentares acusados emprestaram seu apoio em troca do recebimento de elevadas quantias em espécie. Some-se a isso a constatação de que os pagamentos foram efetuados em valores de tal magnitude e durante período de tempo tão extenso que é difícil acreditar que estes recursos se restringissem à obtenção do apoio apenas naquelas duas reformas legislativas e constitucionais.

Na verdade, o que houve foi a compra de parlamentares para consolidar a base aliada do novo governo durante todo o período de pagamentos. Trecho do depoimento do ex-deputado Roberto Jefferson durante o procedimento de cassação do seu mandato por decoro parlamentar parece-me bastante ilustrativo em suas entrelinhas do modo como a fidelidade é percebida em certos círculos do nosso Parlamento. “O PTB não é como o PMDB que tem o presidente do Senado e pode lhe fazer mal. O PTB não é como o PP, que tem o presidente da Câmara e pode lhe fazer mal. Nós só temos a lhe dar e temos lhe dado, mais do que o PT, seu partido, é lealdade nas votações”. Palavras de Roberto Jefferson.

Percebe-se que a lealdade parlamentar é de fato uma das armas dos parlamentares na obtenção de vantagens junto aos governos e no caso destes autos essa lealdade foi concedida em troca de suntuosas remunerações. Anoto ainda que além dos próprios conteúdos dos votos os pagamentos podem influenciar diversos outros aspectos da atividade parlamentar. Em depoimento prestado nestes autos a Excelentíssima Sra. Presidente da República Dilma Rousseff, na condição de testemunha, disse o seguinte: disse ter ficado surpresa com a rapidez com que foi aprovada, por exemplo, na Câmara dos Deputados, o marco regulatório do setor energético naquele período. Disse ela: que acredita que o deputado José Janene ocupou a presidência da Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados; que no período foi votado o novo modelo do setor elétrico elaborado em 2003 e editado por duas medidas provisórias no dia 11 de dezembro de 2003, votado e aprovado no dia 15 de março de 2004 e teve o seu decreto de regulamentação editado em 30 de julho de 2004. Que se surpreende vendo com os olhos de hoje com a rapidez da aprovação do projeto. Pode-se assim avaliar a dimensão das atribuições dos parlamentares, que funcionaram como verdadeira mercadoria em troca dos pagamentos milionários de quantias vistas nestes autos e explicitadas em meu voto.

PS do Viomundo: A dedução lógica é que a aprovação do marco regulatório do setor energético teve algo a ver com corrupção e que Dilma Roussef, então ministra das Minas e Energia, foi testemunha privilegiada disso.

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