por Luiz Carlos Azenha
Eu era correspondente nos Estados Unidos quando o governo de George W. Bush tentava convencer os norte-americanos a aceitar a privatização da Previdência Social.
Os argumentos eram exatamente os mesmos brandidos hoje pelos neoliberais no Brasil: o sistema ia quebrar por causa do envelhecimento da população.
A oposição mais à esquerda do Partido Democrata, no entanto, dizia que era possível fazer uma reforma muito mais branda, sem jogar o bebê fora com a água.
Por trás de Bush, obviamente, estavam os interesses do sistema financeiro.
Foi quando o influente economista Paul Krugman, mais tarde Prêmio Nobel, publicou um artigo na edição de 17 de dezembro de 2004 do New York Times.
A reforma da Previdência chilena, apontada como modelo por alguns neoliberais, era um fracasso!
Krugman reclamava que a mídia dos Estados Unidos não se interessava por expor o fracasso, que resumiu em dois pontos:
A privatização dissipa uma grande parte das contribuições dos trabalhadores em taxas de administração cobradas pelas empresas encarregadas de investir o dinheiro.
Deixa muitos dos aposentados na pobreza.
O que Krugman não disse é que a mídia era e é em grande parte refém de Wall Street. No Brasil, do sub do sub de Wall Street.
O petardo de Krugman teve grande repercussão no debate. Vale reproduzir o trecho final:
Privatistas que elogiam o sistema chileno nunca mencionam que ele ainda não cumpriu a promessa de reduzir os gastos do governo. Mais de 20 anos depois de ter sido criado, o governo ainda joga dinheiro nele. Por que? Como um estudo do Banco Central dos Estados Unidos demonstrou, o governo chileno tem de “oferecer subsídios para os trabalhadores que não conseguem acumular capital suficiente para ter um valor mínimo de aposentadoria”. Em outras palavras, a privatização teria condenado muitos aposentados à miséria, e o governo teve de entrar em campo para salvá-los. A mesma coisa aconteceu no Reino Unido. A Comissão de Aposentadoria alerta que aqueles que acreditam que a privatização de [Margaret] Thatcher resolveu o problema das aposentadorias estão vivendo num “paraíso dos tolos”. Um grande gasto adicional do governo foi exigido para evitar o retorno da pobreza generalizada entre os aposentados — um problema que os britânicos, assim como os norte-americanos, pensavam que tinha sido resolvido. […] Assim, o governo Bush quer acabar com um sistema de aposentadorias que funciona e pode se tornar seguro por várias gerações com reformas modestas. No lugar dele, quer instalar o fracasso, copiando sistemas que, tentados em outros lugares, não economizaram dinheiro público, nem protegeram os mais velhos da pobreza.
Mas, e os chilenos, o que dizem do sistema?
Será que o Chile, o primeiro país a ser visitado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, é mesmo “modelo” de que nos fala o futuro superministro Paulo Guedes?
Hoje, os críticos do sistema chileno — e há muitos no país — confirmam o que escreveu Paul Krugman 14 anos atrás (isso dá uma ideia aos leitores de como os debates chegam atrasados ao Brasil, graças à omissão da grande mídia).
Afirmam, por exemplo, que só foi possível instalar o sistema sob a ditadura sanguinária de Augusto Pinochet, que àquela altura havia dizimado qualquer oposição.
Trata-se de um sistema gerido pelas administradoras de fundos de pensão, conhecidas pela sigla AFP — daí a brincadeira com o Aqui Se Fabricam Pobres.
No sistema, apenas os trabalhadores contribuem, com 10% da renda mensal, mais uma gorda taxa de administração.
O sistema é compulsório, ou seja, todos são obrigados a contribuir, mas podem escolher entre as seis administradoras hoje existentes.
Alguns grupos chilenos, como a Fundación Sol e o No Más AFP, fazem campanha para acabar com as AFP e adotar um sistema tripartite como o brasileiro, onde as contribuições seriam divididas entre o trabalhador, a empresa e o Estado, com administração estatal.
Ao contrário do que diz a mídia brasileira, a Seguridade Social brasileira como um todo é superavitária.
O famoso “déficit da Previdência” é causado pelo fato de que os governos de turno não contribuem com sua parte, destinando o dinheiro a outras rubricas ou ao pagamento de juros da dívida interna — que beneficia os graúdos.
Sistemas como o nosso são a regra, o chileno é quase absoluta exceção
Marco Kremerman, da Fundación Sol, lembra que 70% dos chilenos ganham menos do equivalente a 2 mil reais por mês, resultando em aposentadorias que, em média, ficam em 1.000 reais — um salário mínimo brasileiro.
O Chile “modelo” de Paulo Guedes, portanto, é algo que só existe na cabeça dele.
Importante lembrar que, quando o sistema das AFP foi criado no Chile, a promessa era de que as aposentadorias seriam de ao menos 70% do último salário — hoje, quando muito, chegam a 50%; na base, só com infusão de dinheiro público.
Kremerman, da Fundación Sol, apresenta estatísticas de 2013, segundo as quais as AFP arrecadaram o equivalente a R$ 3,5 bilhões — incluindo a contribuição do governo, para garantir a aposentadoria mínima, equivalente a R$ 530 milhões — mas pagaram o equivalente a R$ 1,3 bi em aposentadorias.
A diferença, afirma Kremerman, poderia duplicar ou triplicar o valor da aposentadoria média paga aos chilenos.
Mas, qual é o segredo?
As administradoras de fundos de pensão são ligadas a grandes grupos econômicos.
A Habitat, por exemplo, é de um gigantesco conglomerado chileno.
A Provida é majoritariamente controlada pela MetLife, dos Estados Unidos.
Lembram-se das estatísticas que Kremerman apresentou sobre 2013, segundo as quais as empresas só devolveram em aposentadorias cerca de 40% do que arrecadaram?
Pois bem, foi desta forma que as seis AFP acumularam a administração de U$ 170 bilhões!
Dinheiro que circula no sistema financeiro internacional, rende juros, taxas de administração e financia empresários chilenos.
Ou seja, é um imenso esquema de redistribuição de renda dos de baixo para o andar de cima — onde estão instalados banqueiros a empresários, aqueles que não contribuem com o sistema.
Os críticos notam que a porta giratória entre os administradores de fundos e integrantes de diferentes governos do Chile nunca parou de girar.
Seria este o motivo para o esquema ter sobrevivido muito além do governo ditatorial de Augusto Pinochet, com reformas menores aqui e ali e contínua contribuição estatal — para evitar que os aposentados morram de fome.
José Manuel Piñera Echenique, o criador da previdência privada chilena, foi ministro de Pinochet e é irmão de Sebastián Piñera, o empresário e investidor que agora é presidente do Chile.
Na mais recente proposta que apresentou, Piñera quer reduzir a barreira de entrada para novas AFP.
Alega que, com mais competição, o “mercado” resolverá o problema que criou.
Mas, isso liberaria cerca de U$ 1 bi para as seis AFP já existentes.
Negócio entre amigos.
Faz todo o sentido que Piñera, o Sebastián, seja o primeiro líder internacional visitado por Paulo Guedes e Jair Bolsonaro.
7 comentários
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Evandro I. Barreira
01 de novembro de 2018 às 16h22Confesso que não entendo nada sobre previdência. Gostei do texto por ser bem didático e esclarecedor.
Minha vontade é ver mais textos de qualidade sobre este assunto.
Luís Carlos Azenha, porque o governo não é desmascarado com relação a alegar que a previdência é deficitária.
É culpa de um povo alienado ou analfabeto funcional? É culpa da maioria da mídia que é omissa e covarde? É culpa da estrutura governamental que é manipuladora e Anti-democrática ( estamos constatando isso agora com clareza) ??
Agradeço pelo trabalho que vem realizando.
Gabriel
01 de novembro de 2018 às 15h05O PSDB faria a mesma coisa nessa área.
Isso não vai resolver o problema, só vai agrava-los.
Vejam os fundos de previdência dos funcionários da CEF, BB e Correios só tem administrador larápio. Qtas vezes esses fundos não apareceram no noticiário nacional com déficit ou suspeitas de roubo por parte dos administradores.
Se a própria pessoa pode investir no tesouro, para que pagar uma taxa de administração alta para um administrador especular com o seu dinheiro e o gênio do banco perder metade do seu patrimônio na bolsa.
Provavelmente irão investir na bolsa de valores e pagar somente os juros contratados. Os juros da bolsa menos o do contrato ficam com o banco.
Negócio da China.
Se não tem emprego ou trabalho como a pessoa vai contribuir continuamente ?
A economia não cresce há vários anos.
luiz francisco da cruz
01 de novembro de 2018 às 12h47O brasil está abarrotado de analfabetos políticos,inclusive de curso superior,todos são massa de manobra.não perceberam que o neoliberalismo é a galinha dos ovos de ouro dos USA.meus pezames.
Nelson
31 de outubro de 2018 às 23h42Com a assunção do poder por um presidente totalmente afeito ao mercado, a reforma da Previdência, que os neoliberais querem empurrar goela abaixo do povo, tem o objetivo de único de mais espaços para os planos de previdência privado.
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Assim, tenho que parabenizar o Azenha pela abordagem do tema e sugerir que muitas outras matérias a respeito sejam publicadas pelo Viomundo.
Bel
31 de outubro de 2018 às 10h51O que esse desabafo tem a ver com eleitores de Bolsonaro? A Lei antiterrorismo que vai impedir manifestações até dos que se arrepnderem de ter votado nele, dirá.
¨Kanye West rompe com Donald Trump e se diz traído: “Fui usado”.. entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/10/30/kanye-west-rompe-com-donald-trump-fui-usado.htm
Sandra rota
30 de outubro de 2018 às 23h47A título de curiosidade eu indico o episódio 12, Bala Fotogênica, da primeira temporada da série Sea Quest. É que neste episódio um hacker que havia trabalhado para a CIA ordenou a outros hackers que invadissem o sistema eleitoral brasileiro durante as eleições. Os hackers descobriram que estava havendo fraudes no sistema e colocaram um vírus para monitorar a apuração das eleições. Os hackes apagavam os rastros. Ou seja, na ficção alguém já pensou na possibilidade de invasao, fraude e contaminacao com vírus no sistema eleitoral brasileiro.
Sandra rota
01 de novembro de 2018 às 00h33Para quem se interessar a série Sea Quest é vendida no Mercado Livre. Vai que alguém ficou meio inspirado, né.