Roberto Liebgott: Não se pode fechar os olhos diante da dor e morte de indígenas por falta de assistência à saúde

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Mobilização dos povos Pataxó, Tupinambá e Pataxó Hã-Hã-Hãe contra a municipalização da saúde indígena, em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Política de atenção à saúde indígena: caminhos em meio aos percalços

Artigo de Roberto Liebgott, um dos organizadores do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas e coordenador do Cimi Regional Sul

Por Roberto Liebgott, Cimi Regional Sul 

A política de atenção à saúde indígena no Brasil se desenvolve através de percalços, de sonhos, expectativas e se convive com alguns avanços e retrocessos.

Quando, em 1999, foi constituído o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI), vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Lei Arouca, 9.836/1999, acreditava-se numa política estruturada em distritos sanitários especiais específicos e diferenciados, os quais constituiriam as bases de sustentação de todas as ações e serviços.

Sonhava-se com uma estrutura com autonomia admirativa e financeira e que nela houvesse plena participação dos povos no planejamento, execução e fiscalização.

Estes sonhos vieram em deliberações e diretrizes da Segunda Conferência Nacional de Saúde Indígena, realizada no ano de 1993, talvez, dentre as cinco, ao longo dos últimos 35 anos, esta tenha sido a mais importante em termos de organicidade, coesão, linhas de ação, sinalização e sistematização das propostas das comunidades acerca de uma política pública efetivamente respeitosa e participativa.

Os 34 Distritos Sanitários Especiais foram criados a partir de critérios étnicos, culturais, territoriais, ambientais e geográficos e ficaram sob a administração da Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

Somente uma década mais tarde, em 2010, foi criada, por meio da Lei nº 12.314/2010, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), responsável, até hoje, pela administração e gestão da política.

É importante lembrar que a partir da Lei Arouca se deveria assegurar aos povos indígenas o direito ao controle social, através dos conselhos locais e distritais de saúde, além, por óbvio, ficando garantida a participação nos órgãos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação das políticas de saúde, tais como o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e os conselhos estaduais e municipais.

Neste sentido, é importante destacar o papel da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI), criada em 1991 como espaço de discussão, reflexão, avaliação e proposição junto ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), acerca das realidades indígenas no que tange à saúde.

Os governos, desde 1999, sempre se colocaram em oposição a autonomia dos distritos sanitários e, por conta disso, ao longo das décadas manteve as ações e serviços em saúde aos cuidados de organizações indígenas – no princípio – e de ONGs ou organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs), com as quais o Ministério da Saúde estabelece convênios e parcerias para a prestação de serviços, num movimento de terceirização.

Naquelas regiões onde havia uma certa estrutura organizativa e participativa dos indígenas, a exemplo dos distritos Leste de Roraima, Yanomami e Alto Xingu, o modelo parecia ser adequado e funcional.

Mas não foi o que sucedeu nos demais distritos onde os desencontros e a pouca experiência, somadas a frágil capacidade técnica e administrativa, geraram um ambiente de insegurança e desagregação.

Os povos indígenas e suas lideranças engajadas nos debates sobre a política de atenção à saúde foram, ao logo dos anos, com sabedoria e protagonismo, dominando os ambientes públicos e exigindo que seus direitos, no âmbito do subsistema de saúde, fossem respeitados, especialmente no tocante ao controle social e na formulação dos planos distritais de saúde, que ficavam, em geral, centralizados (sob a tutela) da entidade prestadora de serviços e da própria Funasa e depois Sesai.

A participação indígena nas discussões, planejamentos e na atuação como fiscais deram sobrevida a uma política que foi descaracterizada, dentro do subsistema, através da terceirização.

Ao longo das décadas, houve significativos avanços a partir do novo modelo de atenção à saúde, dentre eles, há que se destacar:

— o incremento orçamentário, ou seja, passou a ter muito mais recursos para a saúde do que anteriormente;

— os planos distritais, embora excessivamente centralizados nas conveniadas e Funasa – depois Sesai – compunham as ações e serviços necessárias a serem executadas ao longo dos anos de vigência dos planos e convênios;

— as equipes de saúde deixaram de fazer assistência pontual nas aldeias, passando a conviver um pouco mais com as comunidades e a tentar identificar, conhecer e entender as realidades locais, as culturas e os modos de ser de cada povo;

— os processos formativos, tanto das equipes externas como dos agentes de saúde indígenas, técnicos e auxiliares em enfermagem tiveram uma importante priorização ao longo de muitos anos;

— ocorriam reuniões nos polos bases, nas comunidades ou nos ambientes distritais para tratar das demandas em saúde com a participação de lideranças indígenas e também das equipes de saúde; 

— o controle social e a formação de conselheiros também passou por momentos de avanços e que deram sustentabilidade ao modelo de atenção em saúde.

Importante ressaltar que desde 1986 ocorreram cinco conferências específicas sobre saúde indígena, agregando propostas e norteando a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), que deveria sempre alicerçar-se a um modelo complementar e diferenciado, acerca da organização dos serviços, à promoção, proteção e recuperação da saúde, garantindo dignidade, cidadania, protagonismo e autonomia.

Havia deliberação e chegou a ser iniciada a Sexta Conferência Nacional de Saúde, com as etapas locais e distritais, mas acabou abortada pelo atual governo. Noticia-se que no mês de novembro de 2022, quatro anos depois de seu início, ocorrerá a etapa nacional.

Indígenas fazem manifestação em frente ao Ministério da Saúde durante o ATL 2019. Foto: Leonardo Milano/Mídia Ninja

Os retrocessos marcaram esses anos todos do subsistema de atenção à saúde. E, para além da terceirização, ainda em curso, foram, ao longo dos vários governos, sendo apresentadas propostas de criação de um instituto privado – Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI) – que gerenciaria os serviços em saúde, ou a transferência da assistência para conglomerados empresariais ligados a exploração econômica da saúde, ou a municipalização das ações.

Todos esses movimentos políticos geraram fortes protestos e insegurança no meio dos povos indígenas.

Se percebia que a cada novo governo, ou a cada período, interesses mercadológicos ou politiqueiros se sobrepunham aos direitos indígenas e apontavam rumos antagônicos aos definidos nas conferências de saúde indígena e ao próprio Sistema Único de Saúde do país.

Há, além das intenções de mudar a política e a prestação de serviços – sempre apontadas pelo submundo da política e dos governantes – problemas contínuos na execução da política, na gestão dos distritos, na elaboração dos planos distritais, na atenção básica ou primária, na relação com os hospitais para a assistência de média e alta complexidade, no saneamento básico, no enfrentamento das endemias e pandemias e, por fim, no controle social.

A execução da política acaba sendo submetida aos governos que nomeiam, aos cargos de chefia, apadrinhados dos partidos, ou de corporações e/ou de amigos.

Nos últimos quatro anos, a saúde indígena vem sendo operada – quase literalmente – por agentes vinculados às polícias, ao Exército, Marinha e Aeronáutica.

Em geral, são pessoas que não conhecem a administração pública federal e muito menos entendem acerca dos povos indígenas, seus direitos e são absolutamente leigas no tocante à saúde.

A gestão dos distritos passa por graves desafios porque neles foram abrigados sujeitos com esse perfil.

E pelo fato de não conhecerem do funcionamento dos distritos, das especificidades étnicas, culturais, geográficas e por estarem a serviço de um governo descompromissado com a garantia dos direitos indígenas, mantêm uma relação truculenta, autoritária e desrespeitosa com as populações indígenas, suas lideranças, com servidores e funcionários ligados aos distritos, tanto públicos como contratados pelas entidades prestadoras de serviços.

Os Planos Distritais são o pulmão do subsistema. Nele estão contidos os princípios, linhas de ações norteadoras, concepções em saúde, os objetivos, metas, alcance das ações, o planejamento semanal, mensal, anual de todos os serviços.

Nele se prevê a vinculação dos servidores públicos e das conveniadas – médicos, dentistas, enfermeiros, técnicos em enfermagem, psicólogos, motoristas, barqueiros, administradores, bem como os agentes indígenas de saúde, os agentes ambientais e todos os demais contratados.

Também estão no plano as formas de participação indígena na sua elaboração e na execução dos serviços, bem como a inclusão nas ações dos pajés, parteiras, as medicinas tradicionais. Estão previstas ainda as instâncias de controle social e os processos de formação.

O Plano Distrital, apesar de ser o pulmão, que faz respirar, dá vida e põem em movimento os distritos, vem sendo, nos últimos anos, negligenciado, especialmente quanto a participação dos indígenas – comunidades, povos e suas lideranças – na sua elaboração e depois de pronto, para acessá-lo.

A atenção primária visa a garantia da integralidade da assistência no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, prevista na Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Portanto, deve-se assegurar o acesso à saúde por meio de uma atenção diferenciada, tendo por base a diversidade sociocultural e as particularidades epidemiológicas e logísticas de cada comunidade e povo.

Embora tenha havido aumento considerado de recursos financeiros no subsistema, as ações e serviços ainda são frágeis e apontam a histórica existência de graves e profundas desigualdades entre os povos indígenas e os demais segmentos.

Somando-se – já mencionado – a limitada participação indígena no controle social e nas discussões sobre as ações nas comunidades, nota-se grande descontentamento dos povos em relação a descontinuidade dos serviços.

O problema se amplifica diante da carência e da rotatividade de profissionais, bem como a falta de diálogos interculturais, desconectando a medicina alopática com os saberes tradicionais.

Verifica-se, a partir dos relatos e queixas de lideranças, que as práticas assistenciais são excessivamente centradas em paliativos ou atividades emergenciais.

As atuações das equipes de saúde também desconsideram a importância dos agentes de saúde, não raras as vezes eles servem apenas para identificar doentes, indica-los a equipes e quando muito, acompanham aqueles que precisam ser removidos para os centros de atendimento fora das aldeias.

Indígenas cobram melhorias na saúde indígena. Foto: Cimi

No que tange a atenção de média e alta complexidade, há muitas queixas das comunidades, especialmente no que tange a demora na realização dos exames, nos custos de certos medicamentos, que não raras as vezes os indígenas são obrigados a adquirir, no uso excessivo de antibióticos, analgésicos e anti-inflamatórios.

Há ainda que se destacar que nos hospitais de referências, em geral, os indígenas são atendidos e hospitalizados em enfermarias junto de dezenas, quando não centenas de outros pacientes, submetidos a situação de constrangimento porque os profissionais de saúde não sabem, ou não compreendem que há necessidade de uma atenção diferenciada.

O saneamento básico se constitui, desde sempre, num dos graves e profundos problemas e dele se desencadeiam doenças que acabam descontroladas como verminoses, hepatites, contaminações por agrotóxicos ou mercúrio e outros metais pesados.

Não há saúde sem água para beber, banhar, higienizar, cozinhar. Nestas circunstâncias há centenas de comunidades indígenas no Brasil.

Nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, comunidades são abastecidas remotamente com caminhões pipas por prefeituras.

Em geral, aquele tipo de fornecimento de água é de limitada serventia, já que a infraestrutura para seu armazenamento também é frágil, precária e de volume muito pequeno, ou seja, não atende a demanda quanto ao uso diário para beber e tomar banho.

Nada que se diga, no âmbito da Sesai, justifica tamanha negligência. É inaceitável submeter pessoas, comunidades, povos a situações de absoluta vulnerabilidade.

É visível a desumanização empreendida pelo governo federal nos órgãos de assistência no Brasil, especialmente naqueles responsáveis pelo atendimento a indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais.

Nos últimos três anos a pandemia da Covid-19 desvelou, além de todas as questões já existentes e conhecidas, a falta de organicidade, planejamento, infraestrutura e capacidade técnica para enfrentar casos de surtos de doenças, endemias ou pandemias.

Por ocasião dessa pandemia se identificou a inoperância das instituições no sentido de auxiliar, orientar, esclarecer, prevenir e assistir aos afetados pelo vírus infeccioso.

As graves consequências da pandemia entre os povos indígenas no Brasil também são evidenciadas pelos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), que registra 847 mortes de indígenas em decorrência da infecção por coronavírus em 2021.

Essas mortes ocorreram quando a vacinação já havia iniciado, e parecem corroborar as denúncias de que parte considerável da população indígena ficou amplamente desassistida em meio à crise sanitária.

Mas não foi somente a Covid-19 que impactou a saúde, há por exemplo o aumento assustador da malária nas regiões da Amazônia e os órgãos não dão conta de assegurar ações, mesmo que emergenciais.

Prefeitura de São Paulo foi ocupada contra a municipalização da saúde indígena pelos Guarani da TI Jaraguá. Foto: Cimi regional Sul/equipe São Paulo

Há altos índices de tuberculose, hepatites, doenças respiratórias e a fragilidade do sistema, diante dessa realidade, assusta porque não consegue responder e as pessoas morrem desassistidas.

Informações registradas pela Sesai e SIM, quanto à mortalidade na infância, com o recorte dos casos de 0 a 5 anos de idade, somam um total de 744 óbitos.

Importante ressaltar que esse número certamente está defasado, pois a informação repassada pela secretaria ao Cimi, via Lei de Acesso à Informação, foi coletada em janeiro de 2021.

As informações da Sesai, obtidas no início do ano de 2021, relativas a mortes de indígenas sem assistência indicam a ocorrência de pelo menos 124 casos. Além dos números, temos a realidade das invasões aos territórios indígenas.

Na terra Yanomami, por exemplo, instalações antes utilizadas por agentes públicos como postos de saúde, estão sendo utilizados para armazenamento de combustível, utilizado em balsas e barcos pelos invasores. É a realidade de total abandono pelo governo Bolsonaro àquele povo.

É, portanto, neste ambiente de graves desafios assistenciais e de uma profunda crise política que se planeja a realização da etapa nacional da “VI Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas no Brasil”.

Um evento articulado, quase que exclusivamente pelo Fórum dos Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde e nos gabinetes em Brasília, sem ter havido, depois de quase quatro anos, a retomada, junto às comunidades, povos e suas organizações, das discussões e debates acerca das propostas e deliberações das etapas locais e distritais ocorridas no ano de 2018.

Isso revela, em grande medida, que se pretende, agora, aliviar culpas e responsabilidades da atual gestão da Sesai – governo Bolsonaro – em relação ao caos assistencial desencadeado ao longo dos quatro últimos anos, ao boicote do controle social e a própria conferência.

Os desafios futuros não são mínimos, mas gigantes.

Ou se retoma a política de atenção à saúde, a partir dos princípios e diretrizes do subsistema, dando ênfase ao protagonismo dos povos e suas organizações, culturas, costumes, conhecimentos, medicinas e sabedorias tradicionais – juntamente com o controle social efetivo – em âmbitos local e distrital – ou se continuará com paliativos, engessamentos políticos e concessões aos interesses econômicos privados.

Não se pode fechar os olhos e colocar tampão nos ouvidos diante da morte por desassistência, pela ausência de ações básicas nas comunidades ou por falta de saneamento básico. A dor e a morte indígena precisam nos indignar.

Porto Alegre, RS, 10 de agosto de 2022.

Povos Guajajara e Pyhcop Citi Ji/Gavião manifestaram-se contra a municipalização da saúde indígena em Amarante (MA). Foto: Gilderlan Rodrigues/Cimi Maranhão

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Zé Maria

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“Amor de Índio”
(Beto Guedes/Ronaldo Bastos)

Vocal: Milton Nascimento

https://youtu.be/01HAbG95zhQ

Tudo que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo o cuidado
Meu amor
Enquanto a chama arder
Todo dia te ver passar
Tudo viver a teu lado
Com o arco da promessa
Do azul pintado
Pra durar

Abelha fazendo o mel
Vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor
E ser todo
Todo dia é de viver
Para ser o que for
E ser tudo

Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado
Meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do seu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver

No inverno te proteger
No verão sair pra pescar
No outono te conhecer
Primavera poder gostar
No estio me derreter
Pra na chuva dançar
E andar junto
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor
E ser todo

LP “A Barca dos Amantes” (1986)
(Gravado ao vivo no Circo Projeto SP)
Participação Especial: Wayne Shorter

https://immub.org/album/a-barca-dos-amantes

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