Pesquisadora da Fiocruz: Dr. Quirino esconde os dados objetivos do quadro da saúde mental no Brasil; os últimos foram publicados em 2015
Tempo de leitura: 7 minpor Conceição Lemes
Na semana passada (27/11), foi lançada na Câmara dos Deputados a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Nova Política Nacional de Saúde Mental e da Assistência Hospitalar Psiquiátrica.
Entre os presentes, o ex-ministro da Saúde do governo Temer, o engenheiro e deputado Ricardo Barros (PP-PR), o deputado Roberto Lucena (Pode-SP) e o coordenador de Saúde Mental do Ministério Saúde, o psiquiatra Quirino Cordeiro Júnior.
Lucena é o autor da proposta da frente, que movimentos sociais e defensores do Sistema Único de Saúde (SUS) estão chamando de Frente Parlamentar Pró-Manicômios devido à sua composição; são parlamentares ligados a empresas de saúde e comunidades terapêuticas.
Bingo! Explico.
Em 21 de dezembro de 2017, o Ministério da Saúde (MS) publicou no Diário Oficial da União a portaria nº 3.588, que alterou as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM).
A mudança foi aprovada, sem discussão, uma semana antes pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) em reunião que durou míseros 10 minutos.
A CIT é a instância do SUS responsável pela aprovação de proposições do ministro da Saúde antes de sua publicação.
Ela é composta por representantes do MS e dos Conselhos Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems).
Na reunião de 14 de dezembro, os membros do Conass e Conasems não fizeram nenhum questionamento ao ministro, que estava presente. Quirino Cordeiro Júnior, por sua vez, se manteve em silêncio à sombra de Ricardo Barros.
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“A mudança foi praticamente clandestina, com manobras muito parecidas às usadas para a compra de votos no Congresso”, denunciou à época ao Viomundo Wálter Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).
“’Em poucos minutos, sem permitir manifestações contrárias, a mesa coordenadora da CIT sentenciou a volta dos manicômios ao cenário oficial da saúde brasileira’’, denunciou, em artigo publicado no Viomundo, o psicólogo Luiz Carlos Bolzan.
A truculência de Ricardo Barros foi tamanha que ele se recusou a dar a palavra a Paulo Amarante, professor da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e pesquisador respeitado internacionalmente.
Tampouco a Ronald Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância máxima de deliberação do SUS.
Na época, os movimentos da Luta Antimanicomial denunciaram:
1) O retrocesso evidente da portaria 3.588, que reverte a lógica organizativa da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) ao privilegiar os leitos hospitalares psiquiátricos.
2) O viés pró-empresas privadas de saúde e comunidades terapêuticas em detrimento do SUS.
Bingo, de novo!
Por exemplo, em agosto, o Ministério da Saúde publicou a portaria n.2434/2018, que reajusta as diárias pagas para internações psiquiátricas, inclusive as que duram mais de 90 dias.
Outra prova do desmonte em curso é o lançamento da frente parlamentar, para fortalecer as ações da nova política velha de saúde mental.
Entre os que discursaram, Quirino Cordeiro Júnior, que chegou ao Ministério da Saúde em fevereiro de 2017, em consequência do golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016.
Sua fala durou 9min31.
Um ponto chama muito a atenção.
Quirino desqualifica tudo o que foi feito na política de saúde mental no Brasil nos ‘’últimos 30 anos’’ acusando-a de ”absolutamente ideológica” , entre outras coisas.
Como Quirino é coordenador de Saúde Mental desde 10 de fevereiro de 2017 (veja PS), suponho que ele se refira ao período que vai de 1986 a 2016.
Quirino, aliás, tem se apresentado como o executor das políticas elaboradas por representantes do setor privado e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Há anos a ABP tenta o retorno ao modelo baseado em hospitais, que garante ao psiquiatra o controle absoluto do ‘mercado’ da psiquiatria.
É nesse contexto que se insere o artigo de Ana Paula Guljor sobre a apresentação de Quirino no lançamento da frente parlamentar.
Ana Paula é médica psiquiatra, pesquisadora da Fiocruz, no Rio de Janeiro, e diretora da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).
Por Ana Paula Guljor, especial para o Viomundo
A fala de Quirino no lançamento da Frente Parlamentar Mista Pró-Manicômio é a síntese do projeto político do governo Temer e também sinaliza o caminho que seguirá o presidente eleito.
A proposta deste grupo político se faz representar desde o ministro da saúde anterior, Ricardo Barros, por uma lógica privatista, que busca privilegiar o mercado de planos de saúde e medicina privada.
Reduz a concepção de saúde à ausência de doença.
Desta forma, o tratamento retoma um modelo biologizante restrito a intervenções centradas na medicalização e excluindo os determinantes sociais do processo saúde-doença.
Esta lógica se contrapõe ao processo proposto pela Reforma Psiquiátrica que direciona seu olhar para o sujeito e suas necessidades, não buscando apenas a remissão de sintomas.
A política em curso busca desconstruir o Sistema Único de Saúde em prol do favorecimento de nichos de mercado (indústria de fármacos, corporações médicas, medicina de grupo e planos de saúde), que passam a ditar as diretrizes dos “tratamentos eficazes”.
Esse processo leva quem tem condição econômica mediana e alta à compra de assistência médica privada e conveniada para obter seu tratamento, enquanto condena a massa da população vulnerável à desassistência.
Para isso, de um lado, restringem os recursos, ou seja, desfinanciam as ações estatais voltadas para a sustentabilidade dos sistemas de saúde locais, gerando precarização de infraestrutura e de recursos humanos.
Por outro lado, reiteradamente utilizam essas condições, premeditadamente produzidas, como sinônimo de ineficácia do modelo, buscando, assim, desacreditar sua potência e resolutividade.
Assim se traduz a questão central hoje no país: estamos diante de uma disputa de modelo de Estado e sua forma de proteção social. Qual seja entre o Estado mínimo com destinação de ‘benefícios’ apenas aos mais miseráveis (políticas focais) e o Estado inclusivo de direitos universais.
No campo da saúde mental, ela se traduz pela desconfiguração da política nacional de Reforma Psiquiátrica. O cuidado em liberdade que tem como principal dispositivo os centros de atenção psicossocial.
Ao longo das quase três últimas décadas, ele tem apresentado resultados substantivos na qualidade de vida dos portadores de sofrimento psíquico e em sua inclusão social como sujeitos de direitos.
A redução de 92 mil para 20 mil leitos psiquiátricos não gerou desassistência porque “não havia falta de leitos, mas sim falta de redes de cuidado eficazes”.
Grandes parcelas desses leitos não apresentavam rotatividade, pois eram ocupados por toda sorte de sujeitos, cuja motivação de permanência era a precariedade de condições econômicas e as mazelas geradas por décadas de institucionalização – descaso, isolamento social, perda das relações familiares e afetivas.
Este diagnóstico se apresentava de forma detalhada já nas produções da década de 80 (p.ex. no livro psiquiatria social escrito pelo reconhecido Luiz Cerqueira, publicado em 1984).
A construção de uma rede comunitária de cuidado contemplando as necessidades do sujeito, não se limitando à intervenção sobre a doença, tornou o Brasil uma referência na assistência em Saúde Mental, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde.
A alegação de política de saúde ideológica sustenta um argumento que procura ofuscar os resultados de uma construção coletiva, na qual diversos setores da sociedade elaboraram estratégias de garantia de direitos ao sujeito em sofrimento psíquico através de quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental.
Abriu caminhos para sua reinserção no mundo produtivo através dos projetos de economia solidária, das ações de arte e cultura.
Trouxe ainda a pauta da diversidade como impulsionador de mudanças positivas na sociedade.
As evidências científicas estão disponíveis em importantes periódicos e livros.
Quem quiser aprofundar seus conhecimentos, basta buscá-las.
Descobrirão iniciativas robustas que transformaram a vida de muitos usuários que antes viviam confinados em grandes instituições de isolamento (macro hospitais em condições sub-humanas).
Quirino é o filho pródigo de um governo que inaugurou o progressivo sufocamento dos serviços.
Inicialmente, através da não habilitação de novos serviços; os únicos habilitados estavam em processos judicializados.
Quirino inaugurou a prática da distorção de informações ao público não familiarizado com os dados científicos.
Quirino omite informações de gestão, já que a última publicização dos dados objetivos do quadro da saúde mental no Brasil é um relatório referente a 2015 com dados de 2014 (publicação chamada Saúde Mental em Dados nº 12).
Dessa forma, Quirino dificulta as análises da evolução do processo, pois demanda para si o lugar de único porta voz dos dados através de apresentações pessoais em power point.
Todo este cenário busca criar uma cortina de fumaça para possibilitar a publicação de portarias, que são efetivadas à revelia dos órgãos de controle social (como o Conselho Nacional de Saúde) e impostas sem discussão na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), como aconteceu com portaria 3588, em dezembro de 2017.
A partir dessa portaria, ele recolocou em cena os hospitais psiquiátricos e ampliou leitos psiquiátricos em hospitais gerais suprimindo da regulamentação (como havia na 3088/11), por exemplo, a análise da necessidade de cobertura local e quantitativo leitos hospitalares por habitante.
Resgatou a denominação “crônico” como marca simbólica da compreensão do louco como intratável e sem possibilidade de transformação de seu papel social.
Na sequência de portarias, publicou a 2434/18, que aumenta a verba para leitos em hospitais psiquiátricos de grande porte, que são reconhecidamente onerosos e ineficazes no cuidado ao sofrimento psíquico.
Neste momento, através da portaria nº 3659/18, ele suspende o repasse de recursos para inúmeros serviços, sob a égide de falta de prestações de contas.
E na portaria subsequente, a nº 3.718/18, determina que vários municípios devolvam verbas de incentivo para abertura de novos dispositivos de cuidado.
Os argumentos de ineficiência de gestão ou má versação dos recursos públicos usados por Quirino geram dúvidas quanto ao objetivo moralizante de seu autor visto as notícias de que entre os punidos com a devolução estão serviços implantados há anos e habilitados pelo próprio Ministério da Saúde. Já outros em funcionamento não foram habilitados, apesar das exigências cumpridas.
A propósito: desde a chegada de Quirino no Ministério da Saúde a coordenação de saúde mental não habilita novos serviços.
Como em todo sistema em construção, problemas existem.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é o maior sistema universal de cuidado em saúde do mundo e seu processo de implantação se iniciou há apenas 30 anos.
A Reforma Psiquiátrica rompeu com a ‘indústria da loucura’, como denominava Luiz Cerqueira na década de 70.
Possibilitou a liberdade para milhares de pessoas expropriadas de suas vidas por anos de asilamento.
Impediu que outros milhares tivessem o destino cruel de morrerem em celas fortes ou à míngua por falta de cuidados.
Gerou empregos para milhares de trabalhadores da saúde e áreas afins através de serviços abertos e trabalho cooperativo em equipe.
A Reforma Psiquiátrica gerou potência de vida, arte, cultura.
A Reforma Psiquiátrica principalmente demonstrou ser possível uma política elaborada coletivamente pela sociedade organizada, que seja porta voz das necessidades expressas por seus próprios protagonistas.
E este processo não será apagado da memória da política de saúde no país e/ou da memória daqueles que, através dela, construíram novos significados para suas existências.
Assim, Dr. Quirino, o que posso dizer de seu pronunciamento, além de lamentar as informações inconsistentes sobre as pesquisas no campo da avaliação de resultados do processo de Reforma Psiquiátrica?
Acho que posso dizer que seu grupo — empresários da saúde, corporações ligadas a indústria de medicamentos, parlamentares financiados pela indústria da loucura e da doença — e seus projetos de destruição das conquistas sociais são parte de uma história que muitos de nós já viveram.
Me refiro aos que, lá atrás, construíram a Reforma Psiquiátrica, a Reforma Sanitária e o processo de retorno à democracia do Brasil.
Novas roupagens, antigos objetivos.
Mas, como a história evolui em ciclos, os avanços sociais seguirão.
Posso dizer, adaptando o poeta Mário Quintana: ‘Vocês passarão e Nós passarinho’.
Estamos entrando em uma era sombria, mas que é onde se agiganta a mobilização e a luta.
Ana Paula Guljor é psiquiatra, pesquisadora da Fiocruz e diretora da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrame).
PS Blog da Saúde: Quirino Cordeiro Júnior assumiu a coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde em fevereiro de 2017 e não em maio de 2016, quando o ministro Ricardo Barros tomou posse. Alteramos o texto publicado inicialmente para fazer essa correção.
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