Paulo Capel: Rio vive um apagão sanitário, é muito mais que água repugnante

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Fotos: Conversa Afiada e Wilson Dias/Agência Brasil

Cerveja, água, sexo e o SUS

O apagão sanitário no Rio de Janeiro atinge diversas áreas. A má qualidade da água da capital vem sendo informada por órgãos de vigilância sanitária há muito tempo. É resultado de politicagem na designação dos dirigentes, das demissões em massa de técnicos e abandono de projetos de manutenção de mananciais.

por Paulo Capel Narvai*, em A terra é redonda

O Rio de Janeiro vive um “apagão sanitário”, afirmam dirigentes cariocas do CEBES, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde.

A crise não se restringe, porém, aos serviços de saúde, como as unidades básicas de saúde, ambulatórios e hospitais, que estão demitindo funcionários e paralisando atividades em decorrência de decisões de empresas contratadas para gerenciá-los que alegam não receber o que o governo lhes deve.

As demissões atingem mais de 5 mil funcionários. Mas saúde é mais, muito mais do que serviços de saúde.

Em pleno carnaval 2020, a cidade é duramente atingida pelas águas. As das chuvas trazem os problemas crônicos de alagamentos e, com eles, o risco de leptospirose, além da proliferação de Aedes aegypti e outros agravos sanitários.

Mas a dificuldade maior desse período está sendo com as águas de abastecimento público, que apresentam cor e cheiro repugnantes, contaminadas por geosmina – e não se sabe se também por produtos de infiltrações na rede de distribuição, fato negado pela CEDAE, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro.

O samba de uma nota só da ideologia privatista (“sucateia, privatiza, corta; sucateia, privatiza, corta; sucateia, privatiza, corta; sucateia, privatiza, corta”), sabe-se, está na origem do “apagão sanitário”.

Os serviços de saúde do SUS na cidade padecem de problemas crônicos de saques de seus recursos por quadrilhas especializadas em roubá-los, com fragilização de controles administrativos, falta de transparência, desrespeito aos conselhos de saúde e abandono dos princípios da administração pública.

Privatizados, pioraram a qualidade do atendimento.

A má qualidade da água da CEDAE resulta de loteamento de cargos e politicagem na designação de seus dirigentes, demissões em massa de técnicos de alto nível, estratégicos à operação da empresa, e não priorização da execução de projetos necessários à manutenção de mananciais que proporcionam água à capital do Estado e demais municípios da região.

Os tais critérios técnicos para provimento de cargos de direção em ministérios e empresas públicas, tão alardeados em campanhas eleitorais, não passam de ideologia.

Witzel, no RJ, e Bolsonaro, no governo federal, governam para seus eleitores, traem compromissos de campanhas e programas de governo registrados na Justiça Eleitoral, desdenham o interesse público e agridem o Estado brasileiro.

No Rio de Janeiro, especialistas vêm alertando há tempos sobre o significado do esfacelamento da gestão das unidades do SUS, tanto na capital quanto no estado fluminense.

A má qualidade da água da capital vem sendo informada por órgãos de vigilância sanitária também há muito tempo. O SUS, que faz vigilância da água, cumpre sua missão, mas isto não basta.

Enquanto isso, segue o samba de uma nota só: “sucateia, privatiza, corta; sucateia, privatiza, corta; sucateia, privatiza, corta; sucateia, privatiza, corta”.

A lucrativa CEDAE está na mira do governo federal, que quer assumir a empresa como pagamento da dívida do Estado do RJ para, em seguida – adivinha? – privatizá-la, claro.

Estima-se que serviços de saneamento, incluindo o tratamento da água, renderam à CEDAE cerca de R$ 800 milhões em 2019.

Também em Minas Gerais, a vigilância sanitária fez bem feito o seu trabalho e teve suas ações reconhecidas publicamente ao detectar agravos à saúde, incluindo mortes, em consequência da ingestão de cerveja contaminada por dietilenoglicol.

A primeira vítima da intoxicação teria sido uma mulher, falecida em 28 de dezembro de 2019. Chegou-se a cogitar de sabotagem, decorrente de guerra comercial, logo descartada pela polícia com o aprofundamento das investigações.

O assunto foi amplamente noticiado, mas como acontece frequentemente, pouco ou nenhum destaque foi dado ao SUS e aos profissionais de vigilância em saúde.

Conforme mencionado pelo sanitarista Antonio Dercy Silveira Filho, em postagem com grande repercussão em redes sociais, os servidores da saúde pública do município de Belo Horizonte e do estado de Minas Gerais “conseguiram estabelecer o nexo causal entre a ‘misteriosa doença’ que atingiu inicialmente um bairro de classe média alta de BH e a contaminação de um lote de cerveja”.

Para isto colocaram em prática os princípios do método de investigação epidemiológica desenvolvido em meados do século XIX em Londres “pelo médico John Snow, o pai da epidemiologia moderna”.

Conseguiram, desse modo, “barrar a progressão da tal doença e cobrar as medidas necessárias à reparação social”.

Sabe quem são eles? – perguntou Silveira Filho –, “são Servidores Públicos do SUS, com a devida estabilidade de emprego e que agiram para a proteção de toda a sociedade.

Você que defende o fim do SUS ou o fim da estabilidade do servidor ou pior, a substituição de toda mão de obra laboral pública estatal pela privada, pense e responda para si mesmo:

(1) Você mora num bairro classe média alta? Acha que não usa o SUS, porque ele é só para os pobres? Toma cerveja? Então poderia ser você um dos contaminados que ficaram doentes, certo?

(2) Sem o SUS, a iniciativa privada iria fazer uma investigação dessas? Onde está o interesse econômico? Nas pessoas saudáveis ou doentes chegando aos hospitais e consultórios?

(3) Supondo que uma equipe de trabalhadores da iniciativa privada, não estáveis, pagos para fazerem a Vigilância Epidemiológica e Sanitária o fizessem e descobrissem que a cerveja mais vendida é a culpada da nova doença. Diante dos interesses econômicos e políticos que estruturam nossa sociedade, o que aconteceria com a investigação? O que aconteceria com esses trabalhadores sem estabilidade? Agora…

(4) Entendeu a importância do SUS?

(5) Entendeu a importância da autonomia e estabilidade de emprego do servidor público?

(6) Entendeu o quanto você ficará vulnerável se isso acabar?”

Mas enquanto Antonio Dercy Silveira Filho pede-nos com razão que defendamos o SUS, pois ele “é uma das maiores conquistas da sociedade brasileira”, e todos usam o SUS de algum modo, o senador Marcio Bittar, do MDB do Acre, relator da Proposta de Emenda à Constituição 188/2019, que trata do Pacto Federativo, avisou que obteve sinal verde do ministro da Economia, Paulo Guedes, para acabar com os pisos mínimos destinados à saúde e à educação.

Não bastassem os efeitos deletérios da EC-95/2016, a do teto de gastos, também conhecida como EC da Morte, agora Guedes, o ministro-Mãos-de-Tesoura, quer tirar o piso do financiamento.

O SUS, que desde sua criação padece de subfinanciamento crônico, ficou sob ameaça de desfinanciamento com a EC da Morte e, se aprovada a “receita” do senador Bittar, ficará sem financiamento algum.

O ex-ministro da Saúde Adib Jatene, ficou tristemente conhecido no Congresso Nacional como o “ministro do pires”, pois sem recursos assegurados para financiar nosso sistema universal de saúde, todos os anos, a cada aprovação do Orçamento Anual, lá estava Jatene “passando o Pires” para conseguir recursos para o SUS.

A aprovação da Emenda Constitucional 29, em 2000, fixou recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde do SUS, para a União, Estados e Municípios, embora apenas em 2012 a Lei Complementar 141 a tenha regulamentado, conferindo desse modo alguma estabilidade financeira ao SUS.

Mas Guedes-Mãos-de-Tesoura tem outros planos para o dinheiro dos nossos impostos.

Haverá, decerto, recursos para a saúde (e, também, para a educação), mas atenção: prefeitos, governadores e o governo federal ficarão “livres” para alocar esses recursos “da saúde” em qualquer área, ou, dito de outro modo, onde lhes der na telha.

O fim da vinculação orçamentária representa uma das mais graves agressões ao SUS, dentre tantas que o atingiram desde sua criação, em 17 de maio de 1988.

Por enquanto, porém, há recursos e, como todos usam o SUS, a ministra Damares Alves também quer meter a mão no dinheiro da saúde pública.

Mandou para o ministério da Saúde a conta da campanha publicitária sobre abstinência sexual como estratégia populacional de contracepção.

Ela não quer ninguém fazendo sexo “antes da hora” e, segundo a sua crença, a decisão “da hora” cabe ao Estado e não aos que querem fazer sexo.

O mote da campanha é o tal “Escolhi Esperar” e ai de quem escolher o contrário, pois para a ministra cabe ao Estado, e ao governo que ela representa, estimular jovens a não fazer sexo, a adiar o início da vida sexual, e “conscientizar” a juventude sobre o que é uma relação sexual e suas consequências.

Recomendar “camisinha”, nem pensar, pois segundo o governo federal, “os contraceptivos não apresentam 100% de eficácia” (sic).

A deputada paulista Janaína Paschoal (PSL/SP) foi além e disse que ela seria ainda mais enfática, pois “sexo é para adultos”.

Ministra e deputada, e um monte de gente, acreditam que suas convicções são suficientes e bastam para elaborar, definir e implementar políticas públicas. É a democracia fake em curso.

O ministro Mandetta, da Saúde, avisou que a posição da sua Pasta é de que a “abstinência não pode ser nossa única nem principal política” e que “questões religiosas não devem pautar” o tema da gravidez na adolescência.

Mas vai colocar dinheiro do SUS na campanha do “sexo não”.

O Conselho Nacional de Saúde não concorda. Em sua 325ª Reunião Ordinária, realizada em janeiro de 2020, conselheiras e conselheiros criticaram a proposta do governo federal, liderada por Damares.

Para o CNS, a informação e a educação sexual são formas mais eficazes de prevenção de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis, entre jovens e adultos.

Presente à reunião do CNS, Julieta Palmeira, secretária de Políticas para as Mulheres da Bahia, apresentou a iniciativa intitulada “Respeita as Minas”, criada para combater o assédio no carnaval de Salvador.

Para ela, “estamos saindo de um conceito de atenção para um momento de autonomia sobre o nosso corpo”, destacando a importância de se debater o que denominou de “masculinidade tóxica”, entendida como um estereótipo repressivo que define um comportamento masculino marcado pela violência, sexo, status e agressão.

Para ela este padrão cultural da masculinidade ideal “prejudica homens e mulheres, só que as mulheres perdem a vida”.

Cristiane Cabral, docente do Departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da USP, afirma que adotar a abstinência como política implica deixar de desenvolver “habilidades afetivas e emocionais sobre como se relacionar com o próprio corpo, com o ciclo menstrual (para meninas) e com o parceiro. (…) Tem um erro em achar que a idade por si só vai trazer a maturidade e ajudar esse jovem a decidir. Quem faz isso não é a idade, é a educação sexual, e precisa começar o quanto antes”.

A professora da USP critica também a intenção do governo federal de mudar a perspectiva de direitos sexuais e reprodutivos para um referencial moral e religioso, pois quando se rompe o silêncio sobre o assunto, ou seja, “quando você coloca a conversa sobre sexo de um modo franco e não só dentro da família, mas também para educadores e no sistema de saúde, existe o aprendizado e a dimensão de um direito”.

O desrespeito, a violação e o não reconhecimento de direitos, postos no centro político-ideológico do governo federal para agradar parte da sociedade, vai se estendendo a cada dia por todo o Estado brasileiro, e deixando suas marcas na água repugnante, na cerveja que mata e no sexo que não se faz por prazer, mas apenas para procriar.

Um sexo que reprime e não quer gozar por gozar. Um sexo que, transformado em política pública moralista e religiosa, poda, poda, poda.

* Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.


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