Merhy, Bertussi e Santos: Não basta acesso universal; é preciso um sistema universal de saúde

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NÃO BASTA ACESSO UNIVERSAL, FALTA MESMO É UM SISTEMA UNIVERSAL DE SAÚDE: O QUE APRENDER NOS DISTINTOS COMBATES À COVID-19

por Emerson Elias Merhy, Débora Cristina Bertussi e Mara Lisiane de Moraes dos Santos*, especial para o Blog da Saúde

Há quatro segundas-feiras atrás, em 23 de março de 2020, o biólogo Átila Iamarino foi o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo.

Tema central: a pandemia pelo novo coronavírus, a Covid-19.

Em vários momentos, ele ratificou o discurso de especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS), que consideram as estratégias adotadas pela China como a mais competente ação de combate a uma epidemia de alta gravidade já realizada pela humanidade.

Iamarino citou, por exemplo,  a implementação de várias medidas que agiram sinergicamente:

*decisão rápida de adotar o isolamento horizontal;

*isolamento fronteiriço da região onde emerge a epidemia (Wuhan);

*vigilância rígida sobre o movimento das pessoas impondo restrições fortes para quebrar o contágio pessoa a pessoa;

*preparação de ofertas de acesso a tecnologias duras (respirador, ventilador mecânico, leitos, entre outras) necessárias para cuidar dos 5% dos casos totais que complicam – aquilo que o nosso presidente chama de “gripezinha”.

Nós — Emerson, Débora e Mara – concordamos com essas posições apoiadas por Iamariano, mas outras nos causaram inquietude.

Iamarino disse não ser possível repetir a China, pois “lá é um país governado autoritariamente, de modo distinto dos países do Ocidente”

Aí, caiu na esparrela do olhar preconceituoso, muito influenciado por um certo americanismo, e taxou rapidamente a China, sem tirar mais proveito do modelo de combate que esse país desenvolve.

Na verdade, a China construiu mais do que ele apontou.

A China construiu uma rede de cuidados que vai desde os territórios das vidas e dos trabalhos até os serviços de alta tecnologia hard.

Isto é, os chineses construíram uma rede de ações no campo das tecnologias de cuidado leves-relacionais, que agiu de modo altamente competente desde a produção do  acolhimento e do cuidado nos territórios onde as pessoas viviam e trabalhavam.

Assim como na oferta de tecnologias de baixo custo para completar suas ações, nesses lugares, como: máscaras, testes diagnósticos, proteção dos trabalhadores de saúde e informações intensas sobre o que estava acontecendo e como agir.

Iamarino esqueceu que a competência na China vem do fato de ela ter um Sistema de Saúde Universal, público e gratuito, que não exclui ninguém e nem comercializa as vidas.

Só com uma ação altamente coordenada entre os cuidados nas comunidades das vidas e dos trabalhos, junto com a oferta de tecnologias hards necessárias, é possível enfrentar de modo efetivo essa pandemia da Covid-19.

Por outro lado, os Estados Unidos, tão elogiado por Iamarino, está vivendo uma hecatombe devido à falta de um sistema público de saúde.

Lá, nunca houve um Sistema Nacional de Saúde.

Na terra de Tio Sam saúde sempre foi um bem privado e do mercado.

Resultado: já são mais de 700 mil casos confirmados da Covid-19 e 33 mil óbitos.

Os americanos estão em choque. Está faltando tudo. Desde uma rede básica de cuidado até luvas, máscaras e aventais.

A situação da Europa também é dramática.

Recentemente, vários médicos da cidade de Bergamo, na Lombardia, centro do disparo da pandemia na Itália, diante da morte de 800 italianos no hospital da cidade, escreveram um documento apontando que o combate deveria partir da ação competente que produzisse uma gama forte de possibilidades de cuidados nas comunidades e que os hospitais ficassem como o que deveriam ser: retaguardas para esses cuidados.

Esse documento reforça o que temos afirmado olhando a China.

Sem um real Sistema Nacional de Saúde, não há como combater de modo efetivo os efeitos desastrosos dessa pandemia.

A Itália revela outra dimensão dessa situação: embalados pela visão neoliberal de que só o mercado resolve, a maior parte dos países ocidentais destruiu seus sistemas de saúde.

Isso ocorreu na Itália, França, Espanha e Inglaterra, inclusive.

Na França, o presidente Macron reconheceu publicamente a destruição do sistema de saúde do país, via privatização.

Ao mesmo tempo, está agora advogando que saúde é um bem universal e um patrimônio da Nação e o sistema de saúde tem de ser público.

Enquanto isso, o nosso SUS vem sendo submetido a uma política de terra arrasada, que inclui desde menos recursos até a privatização do sistema.

A devastação começou em 2016 com o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff e tomou posse o usurpador Michel Temer e segue a passos galopantes no governo Jair Bolsonaro.

ANDAR PARA TRÁS DE FORMA REAL

Nem os modelos fracassados que existem hoje no mundo têm sensibilizado o governo brasileiro, a reconhecer a necessidade das redes de proteção social que tínhamos até poucos anos atrás.

É só seguir a necro-política do presidente e do seu ministro da Economia para ter a prova.

Enquanto liberam urgentemente bilhões para as empresas e bancos, inclusive planos privados de saúde, Paulo Guedes cria dificuldades para gerar o apoio às famílias que vivem em grandes fragilidades socioeconômicas e serão dizimadas se o combate ao coronavírus continuar do jeito que está.

Seiscentos reais sabidamente não é suficiente para o que estas famílias têm de necessidade em termos de sobrevivência.

DESFINANCIAMENTO BRUTAL DO SUS

O cenário político e econômico no Brasil imposto pela crise dos últimos anos tem produzido evidente retração social e as perdas de direitos sociais têm se mostrado catastróficas, colocando em xeque o SUS, a Previdência Social e a Assistência Social.

Ou seja, as políticas de proteção social.

A pandemia da Covid-19 acontece no pior momento do Brasil em relação às políticas de proteção e garantia de direitos sociais.

Essa situação produz muitas dificuldades para a população realizar a única estratégia capaz de impactar o crescimento da transmissão do vírus: ficar em casa.

É que essa população não consegue ficar em casa, por não ter condições para acessar alimentos e por falta de espaço físico real em suas casas.

Mas também porque é obrigada a trabalhar pelo empregador. Isso, claro, quando tem trabalho.

Antes da Covid-19 a fome já se espalhava pelas grandes cidades brasileiras.

E, se nada for feito, a situação piorará muito mais do que vem vivendo várias populações latino america e o grupo de negros e negras dentro dos Estados Unidos, que estão morrendo muito mais que a população de pessoas brancas.

A outra condição muito grave no Brasil é o modo como se tem organizado o SUS nos últimos anos, com perda de competências e potências.

É importante destacar que a competência estruturante e fundamental que deveria ser desenvolvida pelos municípios/estado/união seria a competência/potência de cuidar das pessoas nos territórios, identificando suas necessidades de saúde.

Ao contrário da nossa pretensão na criação do SUS, como um Sistema de Saúde Universal, Equânime e Integral, experimentamos nos últimos anos descumprimento generalizado da constituição de 88 e suas regulamentações, um intenso e profundo sucateamento do SUS.

Se até 2016 houve subfinanciamento do SUS, a partir da Emenda Constitucional 95/2016, do “Teto dos gastos”, vivemos o desfinanciamento brutal do Sistema.

Sem diretrizes precisas do governo federal em relação ao isolamento social, falta de testes diagnósticos, equipamentos de proteção individual, respiradores e insumos para o funcionamento de UTI, hospitais e rede de atenção à saúde, como estão operando os municípios para o enfrentamento da pandemia?

Tomemos como analisador o que está acontecendo em alguns municípios.

Por exemplo, municípios que vêm produzindo movimentos na perspectiva de cuidar da população na comunidade, preparando as equipes da rede básica para o acolhimento de pessoas com sintomas respiratórios, acompanhamento dos casos suspeitos e dos grupos de risco por meio de monitoramento por telefone  durante o período de transmissão viral, aumento do número de leitos hospitalares, inclusive leitos de UTI.

Enquanto planejam e organizam toda a rede para o cuidado das pessoas, enfrentam falta de equipamentos de proteção individual, de testes laboratoriais, sobrecarga de trabalho dos profissionais de saúde em função da pandemia e dos afastamentos por suspeita ou infecção pelo Coronavírus.

Diante de todos esses problemas, alguns prefeitos e suas equipes estão criando modos de auto-organização e estabelecendo parcerias entre municípios para compra de EPI, testes laboratoriais, respiradores, camas hospitalares e demais insumos necessários para o cuidado adequado dos brasileiros.

Tudo isso associado ao financiamento insuficiente e às dificuldades na sustentação do isolamento social.

Por outro lado, há governos municipais que não apostam na gravidade da situação. Nesses casos, constata-se um sistema de saúde municipal sem capacidade de efetivo acompanhamento das pessoas com sintomas respiratórios e sem capacidade de produzir cuidado em saúde para população na comunidade.

Embora o Ministério da Saúde tenha um discurso que coloca os serviços da rede básica como prioritários no SUS, na prática, o modelo priorizado para o enfrentamento da Covid-19 é hospitalocêntrico, com ampliação dos leitos de UTI, equipados com aparatos altamente tecnológicos, em tecnologias duras, deixando a rede básica em um papel secundário de acolhimento e triagem dos casos suspeitos, com acompanhamento por telefone das pessoas com sintomas respiratórios leves e sem indicação de internação hospitalar.

Todas essas medidas são válidas e importantes.

Contudo, a rede básica tem potência para produção de outras ações que são fundamentais para a redução do contágio e cuidado das pessoas nos territórios, sobretudo, das populações mais vulneráveis e expostas ao risco de serem infectadas, a exemplo de outros países como China, Nova Zelândia e Coreia do Sul.

Nesse momento é muito importante disparar o debate sobre a potência da rede básica de saúde para mudar o foco do enfrentamento, inclusive com mais efetividade.

Vale destacar como já dissemos sobre Bergamo no norte da Itália, a reflexão dos profissionais de saúde  de um hospital sobre a necessidade  de se criar uma linha de cuidado que comece pela ação das equipes de saúde junto às comunidades, com intervenção tecnológica de cuidados potentes e adequados nesse nível.

Ainda vale ressaltar a dificuldade que vários governos estaduais têm tido em sustentar suas medidas de mitigação, sobretudo a de isolamento horizontal, que vem sendo demonstrado pelas várias reportagens da mídia televisiva e radiofônica, ao mostrarem as grandes aglomerações em muitas cidades do país.

A cidade de São Paulo, epicentro da pandemia no país, não tem conseguido manter 50% da população em isolamento horizontal, mostrando a pouca capacidade de articulação do próprio governo estadual com os vários níveis municipais, em um planejamento conjunto de intervenção na pandemia.

Corrobora esta falha a própria dificuldade de articulação desses níveis de governo, inclusive na compra de materiais e distribuição nos serviços que estão nas pontas dos mesmos. Muita propaganda e pouca efetividade!

Diante deste quadro que estamos vivendo da falta de governos para conduzir de forma resolutiva os problemas, ainda contamos com um governo federal que joga contra tudo que é indicado para o manejo competente da Covid-19.

Viveremos uma situação trágica. Mesmo sem informações precisas podemos dizer, com base em estudos já divulgados, que os casos confirmados e óbitos pela Covid-19 são muito maiores que os números que são divulgados.

* Emerson Elias Merhy é médico sanitarista, professor de Saúde Coletiva da UFRJ coordenador do Grupo de Pesquisa do Observatório de Políticas Públicas em Saúde e Educação em Saúde.

Débora Cristina Bertussi, pós-doutora EICOS/IP/UFRJ e pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Observatório de Políticas Públicas em Saúde e Educação em Saúde.

Mara Lisiane de Moraes dos Santos, professora do Instituto Integrado de Saúde da UFMS; pós-doutora EICOS/IP/UFRJ; pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Observatório de Políticas Públicas em Saúde e Educação em Saúde.


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Comentários

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Zé Maria

A título de sugestão, para tentar diminuir a concorrência do COVID-19 com
outras doenças do Aparelho Respiratório, evitando a saturação de vagas
em Leitos Hospitalares, notadamente UTIs, para muitos pacientes do
Grupo de Risco, proporcionando o salvamento de dezenas de vidas:

De acordo com a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias
no Sistema Único de Saúde (CONITEC), o SUS disponibiliza as Vacinas
Pneumocócica Conjugada 10-Valente (VPC-10) – para crianças de risco
até os 5 anos de idade – a Pneumocócica Conjugada 13-Valente (VPC-13)
e a Pneumocócica Polissacarídica 23-Valente (VPP-23) para Prevenção
de Doenças Pneumocócicas (DPs) em pacientes acima de 5 anos de idade,
pertencentes a grupos de risco, mais suscetíveis à Infecção Pneumocócica
(Streptococcus pneumoniae), especialmente pessoas com comprometimento
imunológico, adultos – principalmente idosos – portadores de doenças com
condições crônicas pré-existentes (cardiovasculares, pulmonares, doenças
hepáticas, desordens urinárias e renais, Diabetes Mellitus e outras).

Talvez fosse o caso neste momento – se não for tarde – de imunização
dos pacientes, principalmente idosos, que integram o grupo de risco
de ambas as doenças.

https://sbim.org.br/images/files/guia-pneumologia-sbim-2018-2019.pdf
http://conitec.gov.br/images/Relatorios/2019/Relatorio_Vacina_PneumococicaConjugada_13valente.pdf
http://conitec.gov.br/entenda-a-incorporacao-da-vacina-pneumocococa-conjugada-13-valente
http://conitec.gov.br/consulta-publica-da-vacina-pneumococica-conjugada-13-valente-para-prevencao-da-doenca-pneumococica-em-pacientes-de-risco-acima-de-5-anos-de-idade-esta-disponivel

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