Luís Carlos Bolzan: Cadê o médico? Quantidade basta ou é mais que isso?

Tempo de leitura: 4 min
De 2013 a 2018, os médicos cubanos foram prestar assistência onde os profissionais brasileiros não querem ir e muito menos se fixar. Fotos: Araquém Alcântara do seu livro "Mais Médicos"

Quantidade ou mais que isso?

Por Luís Carlos Bolzan, especial para o Viomundo

Em 2010, quando era diretor do Departamento Nacional de Auditoria do SUS – Denasus, do Ministério da Saúde, estava no Acre, voltando de viagem de carro de Cruzeiro do Sul para a capital Rio Branco. Paramos em Tarauacá para almoçar.

Na mesa ao lado, almoçavam três jovens, dentre as quais uma médica brasileira formada em Cuba, que trabalhava sob efeito de uma liminar.

Ela contou que fazia o trabalho que médicos formados no Brasil não queriam realizar, ou seja, atendia populações ribeirinhas, viajando durante a semana de barco para atender a população.

Detalhe: apesar de fazer o trabalho que demais colegas não queriam, ela recebia menos que os colegas.

Em 2013, como resposta à campanha da Frente Nacional de Prefeitos sob o slogan “Cadê o Médico?”, o governo Dilma Rousseff lançou o programa Mais Médicos para o Brasil, que tinha três eixos: fixação de médicos, formação médica e estrutura das unidades básicas de saúde.

O programa priorizou médicos brasileiros formados no Brasil para preenchimento de vagas.

Como a categoria não respondeu ao chamado, o governo abriu espaço para médicos brasileiros formados fora do país.

Mesmo após isso, milhares de vagas seguiam em aberto, passando o governo federal a chamar médicos estrangeiros.

Mas o problema persistia. Foi, então, que o governo Dilma passou a trazer médicos cubanos via convênio com a Organização Panamericana de Saúde (Opas).

No ápice do programa, cerca de 18 mil profissionais assistiam a população, sendo aproximadamente 11 mil cubanos.

Diferentemente dos demais médicos, os cubanos não escolhiam os municípios onde iriam trabalhar, cabendo-lhes os municípios que os demais não escolhiam.

A maioria desses municípios estava em regiões de muito difícil acesso, como a região Amazônica e demais áreas longínquas do interior brasileiro.

O programa foi sucesso absoluto, segundo avaliação dos usuários do SUS, com destaque para o trabalho dos médicos cubanos, alicerçado em clínica médica de excelência e forte capacidade de vínculo.

No final de 2018, quando os médicos cubanos passaram a ser hostilizados pelo recém-eleito presidente Bolsonaro, Cuba decidiu romper o convênio por falta de segurança de seus profissionais.

Passados quatro anos, Lula é novamente eleito presidente. Ao longo da campanha, muitas vezes citou o programa Mais Médicos do governo Dilma, inclusive explicitando que recuperaria o programa.

Nos últimos dias diferentes falas dão conta de um programa Mais Médicos no futuro governo Lula, mas sem profissionais estrangeiros.

A mais recente foi do médico e senador Humberto Costa (PT/PE), integrante da comissão de transição para a saúde.

Justifica que hoje há maior número de médicos no país, em comparação a 2013, quando o programa foi lançado.

De fato, atualmente, o Brasil forma mais profissionais do que em 2013, inclusive porque o Mais Médicos tinha como um de seus eixos a formação médica, priorizando abertura de novos cursos de medicina e novas residências médicas.

Tudo, então, se resume à questão quantitativa?

Se sim, o número de médicos formados atualmente consegue garantir o fim do vazio assistencial que atinge boa parte da nossa população?

E a população brasileira não aumentou de 2013 para cá?

Em 2013, éramos 201 milhões de brasileiros, segundo estimativa do IBGE. Hoje, somos 215 milhões.

O vazio assistencial médico brasileiro vai muito além de uma mera questão quantitativa.

Ele se mantém por condições que ultrapassam a medicina, dialogando mais com aspectos sociológicos e de economia política, para citar somente dois.

Por que devemos acreditar que os médicos formados de 2013 para cá têm perfil e objetivos diferentes dos médicos formados antes?

Esses novos recém-formados irão trabalhar em áreas de dificílimo acesso, como as que exigem viajar de barco por vários dias, sem voltar para casa?

Vão aceitar trabalhar em Bossoroca, no Rio Grande do Sul, ou em Mâncio Lima, no Acre?

Trabalharão no interior dos estados do Amazonas e Amapá?

Se fixarão no interior da Paraíba ou do Mato Grosso?

Parêntese. O Amapá só teve médico em todos os seus municípios com a implantação do programa Mais Médicos, especialmente graças aos profissionais cubanos.

Caso os médicos formados no Brasil aceitem ir para locais longínquos do país, permanecerão quatro anos trabalhando na área ou logo abandonarão o posto para assumir vaga em residência médica?

As entidades médicas sabotaram direto o programa Mais Médicos, alegando que o vazio assistencial seria resolvido, se fossem propostos carreira nacional, concurso e boa remuneração.

Será mesmo?

Ou elas ficaram contrariadas também porque um dos eixos do programa era a formação, com mais cursos de graduação e residências médicas?

Quantos de nós conhecemos casos de médicos e médicas concursados, que que deveriam atender em unidades básicas e de especialidades pelo SUS, mas não cumprem horário?

Quantos desses médicos, estão no mesmo horário em serviços privados, ajudando a estrangular média complexidade pelo SUS, gerando filas de anos de espera?

Muitos desses profissionais também não estão no mesmo horário nas escalas de serviços da rede de urgência/emergência, como as UPAs?

Ou seguem os pedidos da categoria para gestores municipais do SUS por exames de maior complexidade para realização de diagnósticos, como se todo município de médio e pequeno porte tivesse capacidade orçamentária para dispor de equipamentos para esse fim?

O mesmo ocorrendo com medicamentos recém disponibilizados pela indústria farmacêutica e seu conhecido lobby?

Seria muito bom que a falta de médicos se resolvesse por completo apenas pela questão quantitativa.

Mas, na prática, não é assim. As leis de mercado sequer se restringem a esse aspecto.

Mais do que isso. Seria desconsiderar que países com médicos em proporções maiores que o Brasil também tem características geográficas muito diferentes do Brasil.

Ou a Inglaterra, Portugal e mesmo o Uruguai não têm territórios muito menores que o Brasil?

Parece que a superação desse problema não se restringe a formar mais médicos, mas que, sim, devem ser consideradas muitas outras variáveis para a devida fixação médica no interior do país.

Todos os militantes do SUS fizeram grande esforço para resistir ao projeto fascista de destruição, inclusive contra a investida de entidades médicas que legitimaram criminosamente o equivocado kit covid.

É fundamental que os movimentos da saúde sejam partícipes do processo de reconstrução do SUS.

O SUS sempre foi um paradigma para outras políticas públicas, exatamente por ser vanguarda na participação popular em sua construção.

Isso não se deve apenas ao fato de termos bons técnicos na saúde coletiva.

Mas também porque exercitando a escuta e a participação dos diversos atores sociais, muitas alternativas são criadas para superar problemas impossíveis de serem resolvidos de forma reducionista.

O SUS merece muito mais. Nossa população também.

*Luís Carlos Bolzan é psicólogo, mestre em gestão pública.

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Comentários

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Annibal Botto

Há uma maneira de minorar esse problema de médicos não quererem atender “populações ribeirinhas”, etc. Quem se formou numa universidade pública foi FINANCIADO PELA POPULAÇÃO BRASILEIRA. Portanto, deve dar um CONTRAPARTIDA a este FINANCIAMENTO PÚBLICO trabalhando, OBRIGATORIAMENTE, onde houver necessidade de seus serviços profissionais por, por exemplo, CINCO ANOS…

Aracy Balbani

Parabéns ao autor pela argumentação lúcida e ao Viomundo pela publicação. Mais paz, mais SUS, mais profissionalismo, mais engajamento social e mais saúde para todas e todos que vivem no Brasil.

    Marilene Valério Diniz

    Concordo com Aracy Balbini e acrescento que o livro do Araquém mostra, de maneira irrefutável, as dificuldades e extrema pobreza de muitos de nossos conterrâneos e as condições precaríssimas que os médicos e médicas cubanas enfrentaram. O livro é maravilhoso, artístico, e, apesar da miséria retratada, emana um halo de esperança. Ainda tem médico/a que, mesmo por um salário baixo, coloca a vida humana acima de qualquer dificuldade. E ainda tem um fotógrafo capaz de enfrentar todas as condições adversas e ir lá retratar para mostrar ao mundo a precária realidade de muitos seres humanos.

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