Lígia Bahia: Enfiar o SUS no mesmo saco das atuais divisões político-partidárias é um erro

Tempo de leitura: 3 min
Fotos: Reprodução e Antônio Cruz/Agência Brasil

Saúde nas eleições de 2020

por Lígia Bahia*, em O Globo, sugestão de Euclides Castilho

Para a saúde, a década de 2010 termina com mais baixos do que altos.

A taxa de mortalidade infantil decresceu em ritmo menor que em períodos anteriores e se manteve acima de 14 por 1.000 bebês entre 2014 e 2017.

A proporção de brasileiros que vive abaixo da linha de pobreza aumentou de 6,6% em 2016 para 7,4% em 2017.

Houve melhoras, entre as quais, o declínio da fecundidade entre mulheres jovens e incremento na escolaridade feminina.

Esses impasses, retrocessos e alguns avanços não reconhecem barreiras do calendário, adentram 2020.

Entre 2010 e 2018 houve cinco eleições, 3 para governadores, deputados e presidente e 2 para prefeitos e vereadores.

Invariavelmente a saúde ganhou destaque em todas as eleições. Mas, com raras exceções, deixou de ser prioridade logo após o encerramento das urnas.

Uma possível explicação para essa diferença abissal entre o que se promete e o que será realizado é o apelo a propostas vagas a respeito do SUS.

Declarar aspirações é uma vantagem, permite angariar votos de eleitores com interesses divergentes e afirmar depois a necessidade de redução da marcha, e que está se recorrendo a medidas de transição para alcançar a miragem apresentada na plataforma eleitoral.

Quando os contrastes entre o SUS eleitoral e o real ficam exuberantes, contribuem para queda dos índices de avaliação de quem pretende se reeleger, a culpa é dos governos anteriores.

Dois exemplos.

O compromisso do Presidente Bolsonaro de estabelecer uma Carreira de Estado para médicos foi ajustado e reajustado, restou um contrato CLT para alguns médicos, os incluídos no Programa Médicos pelo Brasil, menos de 4% dos que estão em atividade. Nem carreira, nem garantias trabalhistas para a maioria.

O Prefeito Crivella declarou, entre outras intenções de expandir a rede pública assistencial, que iria investir em quatro anos mais R$ 2 bi no SUS municipal.  E ocorreram   cortes, congelamento e remanejamento indevido de R$ 1,5 bi.

O governo federal atribui dificuldades com a quantidade, formação e inserção de médicos à política de abertura de faculdades privadas de medicina, iniciada em 2013, mas não fechou vagas.

Pelo contrário, os estímulos do Ministério da Educação à intensificação da privatização do ensino superior são notórios.

Crivella considera que a crise da saúde no Rio de Janeiro não existe, é apenas uma campanha da imprensa “canalha.”

Um prolongamento das eleições via redes sociais, que reafirma o quão odientos são os inimigos e esconde as estruturas fundamentais das políticas.

Entre 2010 e 2019, a rede SUS nacional perdeu cerca de 7 mil leitos obstétricos enquanto o número de nascimentos cresceu, e não ocorreram mudanças no tempo de permanência das gestantes em hospitais.

Na cidade do Rio de Janeiro, os leitos de terapia intensiva aumentaram, sendo 161 para o SUS e mais de 935 para os clientes de planos privados.

Gestantes peregrinas e mortes sem acesso a cuidados e outras desigualdades inadmissíveis na saúde passaram de ano.

Retóricas vazias sobre o SUS e desconfianças permanentes entre as forças políticas que já se preparam para disputar as eleições estão impedindo a construção de um terreno comum para conversar sobre saúde.

Enfiar o SUS no mesmo saco das atuais divisões político-partidárias é um erro.

Para escapar do ciclo eleição, frustração, nova eleição é preciso dar um passo à frente, exercer com rigor o direito de divergir.

Os esforços de governos anteriores e dos atuais (incluindo erros e acertos) em todas as esferas da federação têm sido insuficientes para se contrapor às tendências estruturais de retração do SUS.

Ao invés de se procurar apagar as diferenças é necessário entendê-las para propor alternativas concretas.

Apoio e oposição ao SUS são difusos.

Empresários e a parte da população com maior renda temem perder posições relativamente privilegiadas de retornos financeiros e atendimento qualificado.

Acordos, ainda que mínimos, demoram tempo.

É tempo de buscar convergências para melhorar a saúde. É preferível ter mais SUS do que requentar discursos de SUS idílico.

*Lígia Bahia é médica, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e importante referência na defesa da saúde pública no Brasil.


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Comentários

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Ruth Bittar Souto

Bom texto mas a conclusão deixou em aberto o que seria o mais SUS em contraponto ao SUS idílico. Gostaria de saber a proposta.

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