José do Vale: O rol taxativo de procedimentos da ANS tem a cara de um rol de negócios

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Paulo Rebello, presidente da ANS. E o plenário da sessão de 8 de junho de 2022 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que julgou o rol taxativo de procedimentos da ANS, defendido pelas empresas de planos de saúde. Seis ministros do STJ votaram a favor dos planos de saúde e 3 contra. Fotos: Edmilson Rodrigues/Agência Senado e Rafael Luz/STJ

O ROL DE PROCEDIMENTOS DA ANS TEM CARA DE UM ROL DE NEGÓCIOS

Por José do Vale Pinheiro Feitosa*, especial para o Viomundo

Primeiro, veio a lei nº 9656, de 3 junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde no Brasil. Ou seja, é ela que regula os planos de saúde.

Um avanço da sociedade sobre um grande negócio implantado aqui pelas empresas multinacionais, a partir do modelo americano.

Dois anos depois, surgiu a Lei nº 9.961,  de 28 de janeiro de 2000, que cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). É a instituição estatal responsável pela regulação dos planos de saúde na prática.

Não repetirei aqui o que, de fato, os planos privados de saúde são obrigados a cobrir na atenção de saúde aos seus beneficiários, pois isso é desnecessário.

Vou dizer apenas que tudo, absolutamente tudo que se refere à cobertura de saúde, foi “grampeado” pelos planos de saúde, nos quais a ANS tem a voz final.

Este “grampo” é o chamado rol de procedimentos, tão famoso nos últimos tempos.

Um Frankenstein monstruoso que vai desde um equipamento meio até um medicamento finalístico no tratamento. E todas as dúvidas são cabíveis, especialmente pela palavra Rol.

Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra rol vem do latim rollus que significa pergaminho enrolado. Em português com as seguintes acepções: série de palavras, frases, ideias; relação, lista.

Mas existe outra acepção do vocábulo rol que é “uma capa de couro à qual os caçadores prendiam asas de aves, em seguida fazendo-a girar e depois soltando-a aos falcões, para adestrá-los na caça”.

Rigorosamente é a segunda acepção que imaginamos ter o efeito da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu pela taxatividade do rol de procedimentos da ANS.

Devido à tal taxatividade, se o procedimento não estiver no rol da ANS, os beneficiários dos planos de saúde não poderão reivindicá-lo na justiça para sua melhora ou cura.

Com todo o respeito aos senhores ministros do STJ que decidiram a favor do rol da ANS, as ressalvas impostas aos usuários dos planos de saúde são contraditórias e impraticáveis.

Quais ressalvas?

Elencarei três.

1. Primeira: a operadora não será obrigada a pagar por procedimentos para os quais há similares previstos na lista da ANS.

Existe aí uma briga entre operadoras e prestadores de saúde (o que está rareando, já que muitas operadoras são donas de clínicas e hospitais), onde mesmo existindo no rol o tal procedimento não é oferecido numa região, mas o similar é.

Quem paga o pato? A causa principal da existência de um plano de saúde: o beneficiário (adiante explicarei melhor).

2. O tratamento precisa ter eficácia comprovada “à luz da medicina baseada em evidência”.

Só que a entidade “medicina baseada em evidência” não é pacífica. Não há sequer um mecanismo de consensos de inovação e incorporação tecnológica (embora a Anvisa tenha certo papel nisso, assim como o SUS).

3. O que seria uma brecha para negociação, quando o magistrado poderia realizar “diálogo institucional” com especialistas da área.

Só pessoas bem relacionadas e com muita força conseguirão tais diálogos e isso se não houver emergência ou urgência de tal procedimento.

O que acontece com tais decisões é, principalmente, amarrar o rol às “asas da decisão” que determinam as necessidades por demanda de saúde dos beneficiários dos planos a uma disputa de terceiros por seu próprio patrimônio social.

Ficou difícil compreender o último parágrafo?

Os planos de saúde, segundo a lei é composto por três atores sociais: a operadora dos planos de saúde, os prestadores de serviço e os beneficiários dos planos de saúde.

Seria ótimo que tais atores pudessem interagir espontaneamente, mas não há essa possibilidade.

É que são atores diferentes, mas com uma caraterística essencial: os planos de saúde são fundos (com características marcantes de fundos mutuais) calculados conforme as regras atuariais (típica de seguros), cuja formação unicamente é financiada pelos beneficiários dos planos.

As operadoras são “exploradoras” financeiras e de capitais dos fundos formados exclusivamente pelos beneficiários (a lei obriga que cada plano tenha suas reservas de salvaguardas).  

Os prestadores de saúde lucram com os fundos dos planos de saúde através dos cuidados de saúde que adotam para prevenir, controlar e recuperar a saúde dos beneficiários dos planos de saúde.

Fica claro, portanto, que o papel social dos beneficiários é muito mais vulnerável, pois são parte desse mecanismo quando perdem a saúde quando precisam ser recuperados pelos chamados avanços científicos.

Ou, “medicina baseada em evidência”, como dizem os ministros do STJ em frases de efeito.

Isso quer dizer, evidência científica. Tecnologia de base científica ou outra coisa que queiramos acrescer ao longo da história.

O tempo do beneficiário é curto, e ele está sujeito a danos irreversíveis ou à morte.

Já o tempo das operadoras e prestadores é longo; eles são apenas sujeitos do “negócio” e do “lucro”, do acúmulo de capital.

Ao tornar taxativo um rol de procedimentos, a Justiça brasileira expõe todo cidadão beneficiário de plano de saúde a um ator oculto na lei. É o ator mais importante e determinante para que a ANS inclua ou exclua procedimentos.

Esse ator são as grandes empresas farmacêuticas, os poderosos fabricantes de equipamentos de saúde que controlam as pesquisas científicas inovadoras de saúde (a maior parte financiada por fundos estatais) e as tecnologias do mercado de saúde.

Chega a ser patético quando a ANS define os reajustes dos planos de saúde junto com os porta vozes das operadoras e prestadores gritando por aumentos nas mensalidades dada a “inflação da saúde”.

A rigor, neste momento, operadoras e prestadores estão sendo pressionados pelas grandes empresas do complexo industrial da saúde.

Um dado fundamental: os planos de saúde existem essencialmente devido aos planos empresariais, que são composições trabalhistas, muitas vezes com os trabalhadores perdendo, outras ganhando. A aplicação de tais planos pelas empresas é para garantir a manutenção da mão-de-obra.

O STJ, por deficiência crítica da realidade deste mercado, não compreendeu que um plano de saúde só tem sentido se ele é garantidor da plena atenção de saúde.

O plano de saúde só tem um resultado a entregar: a saúde do seu beneficiário.

E como fazer isso não se resume a um mero rol a beneficiar o complexo industrial da saúde. Talvez os planos de saúde sejam inviáveis mesmo.

A grande solução pode ser um Estado regulador e democrático que possa tornar a manutenção e inovação da tecnologia de saúde bens comuns, como um direito universal.  

*José do Vale Pinheiro Feitosa é médico sanitarista.


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