José do Vale: Entidade americana denuncia manipulações da indústria farmacêutica

Tempo de leitura: 7 min
Ilustração: Carlos Lopes/Viomundo

Por José do Vale Pinheiro Feitosa*, especial para o Viomundo

É insuportável ver alguém morrer numa guerra estúpida. Tal qual morrer de fome quando tantos alimentos estão estocados para especulação financeira. Assim como morrer de sede quando a água é desviada das necessidades essenciais.

Acrescente a esse universo a falta de informações (para sustentação da vida e decisões pessoais), acesso a tratamentos médicos (são caros) e controle da exposição a situações de risco nas residências, no trânsito e no trabalho.

No Brasil, apenas no primeiro semestre de 2022, os medicamentos tiveram aumento geral de 10,4%.

Para piorar, nunca na história do País tantas pessoas dependeram de medicação de uso contínuo, já que os poucos recursos que dispõem são para garantir a sobrevivência.

A morbidade das doenças infecciosas (HIV, tuberculose, malária etc.), crônico-degenerativas (diabetes, hipertensão, neoplasias, doenças autoimunes etc.), psiquiátricas e dos eventos de causas externas  (violência no trânsito, acidentes domésticos e no trabalho, inclusive sequelas permanentes) está levando à dependência de medicamentos para reduzir a mortalidade.

É nesta dependência que observamos uma das maiores contradições do mundo capitalista, centrado no sistema financeiro a explorar a capacidade produtiva.

O economista e escritor americano Michael Hudson denuncia que se restabeleceu a prática histórica de castas ociosas (não produtivas) que controlam os capitais financeiros. E, desse modo, cobram “pedágio” na produção (por escolhas de melhor rentabilidade), na circulação de bens e serviços (para quem pode pagar melhor) e no consumo, deixando imensa quantidade de pessoas à margem.

A contradição se encontra na capacidade de exploração de uma casta rentista de 1%, ociosa, com baixa inteligência emocional, extraída da condição humana comum.

Seus integrantes são apenas os predadores do hoje, porque não podem pensar no amanhã, quando todos estarão degeneradamente mortos por cobrarem “pedágio” de sobrevivência de 99% da humanidade.

Tal classe cobra “pedágio” por privatização de terras, produção de qualquer nível, dos minérios, da energia, água, alimentos e tecnologias de saúde, educação, comunicação, transportes, guerra etc.

E o faz de tal forma injusta e predatória que tendem, o tempo todo, para dinâmicas farsantes, que nem mesmo promovem inovação de conhecimento e tecnologia.

Tal casta deu o golpe sobre as formas de organização da moeda e do sistema que a administra. E devido à organicidade das redes de conexão, que ligam todo o sistema produtivo, aconteceu a possibilidade de existirem “torres de comando” do sistema, tal qual Foucault estudou nos presídios e manicômios.

Na indústria farmacêutica há uma organização e uma dinâmica perversa, que vai além da produção. Ela renumera, de modo excedente, o investimento em avanço científico e em inovação tecnológica (novos medicamentos e vacinas).

Segundo análises realizadas, o sistema financeiro está na raiz das decisões de investimento em inovação e  remuneração do capital, para atender a tal sistema e aos acionistas da empresa.

Os executivos da indústria farmacêutica agem de modo corporativo junto ao Estado, à rede de saúde, ao comércio de medicamentos, às compras públicas e aos planos privados de saúde.

O setor segue este roteiro básico:

— A indústria farmacêutica dos Estados Unidos (sede de grandes empresas globais e do mercado que melhor consome e remunera os medicamentos) estima que para desenvolver um novo medicamento precisa investir em torno de U$ 2,87 bilhões. E, por isso, não pode haver controle público dos preços, pois desestimularia o investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).

— Tanto que o Tratado Mundial de Cooperação de Patentes, assinado por 156 países, garante a propriedade das descobertas de medicamentos e vacinas, cria uma espécie de proteção temporal suficiente para que o capital investido em P&D tenha retorno.

— Depois de um certo tempo, tais patentes caem e podem ser usadas para fabricação dos chamados medicamentos genéricos.

Nos Estados Unidos, há uma organização independente de pacientes focada exclusivamente em conseguir mudanças na política para baixar os preços dos medicamentos.

Chama-se Patients For Affordable Drugs e atua em defesa do acesso aos medicamentos essenciais para reduzir danos e salvar vidas

Em seu site, a Patients for Affordable Drugs apresenta estudos realizados pela comunidade científica e pelo Congresso americanos que mostram a política de manipulação e extorsão produzida pela indústria farmacêutica:

1. Na avaliação do Congresso americano, 1 em cada 5 dólares gastos com saúde nos EUA é com medicamentos. Porém, o setor farmacêutico leva 63% de todo o lucro com os gastos em saúde da sociedade, pois cobra 76% mais do que é necessário para financiar todas as suas pesquisas.

A realidade é que, mesmo que os lucros sejam reduzidos em bilhões, a indústria farmacêutica ainda seria mais rentável do que a maioria das empresas negociadas em bolsa de valores e, portanto, continuaria atraente aos investidores.

2. Parte das despesas alocadas como P&D é dinheiro destinado a lobbies, marketing (U$ 20 bilhões anuais com profissionais de saúde para indicarem seus produtos, congressos, publicações e amostras grátis) e publicidade (6 bilhões em propaganda direta ao consumidor);

3. Nove entre as dez maiores indústrias americanas gastam mais em marketing, vendas e custos indiretos do que em pesquisa de P&D. Em 2019, o grupo farmacêutico gastou mais de U$ 120 milhões com lobbies no Congresso americano.

4. Um novo medicamento não é a mesma coisa que inovação. De 1975 até hoje, apenas 10% a 15% das novas moléculas medicamentosas foram, de fato, inovações terapêuticas. O restante são pequenos ajustes nos medicamentos já utilizados com pouca diferença e sem significância clínica. Porém, a cada “inovação fake”,  a indústria farmacêutica cobra mais caro como se fosse uma nova descoberta.

5. Nos EUA, 78% das patentes são de medicamentos já no mercado. Em vez de investirem em P&D para novo avanço terapêutico, as empresas farmacêuticas gastam recursos na obtenção de patentes com alterações em drogas antigas, sem melhorar a saúde das pessoas.

Objetivos: estender a proteção de patentes, prolongar períodos de preços de monopólio e deixar o uso de genéricos concorrentes fora do mercado.

6. É mentira que a indústria farmacêutica gasta U$ 2,87 bilhões para criar uma nova droga terapêutica.

Recente trabalho publicado no Journal of the American Medical Association (Jama) indica que o custo de P&D para o desenvolvimento de um novo medicamento para câncer é de U$ 648 milhões (22% do custo fake da indústria farmacêutica).

No mesmo Jama foi publicado um estudo da London School of Economics mostrando que o custo de novo medicamento é um terço do que a indústria divulga.

7. Mesmo que se aceitasse o custo de P&D alardeado pela indústria farmacêutica, a lei de patentes (fazendo a reserva de mercado pelo período estipulado) garantiria o retorno do investimento.

Uma investigação do congresso americano concluiu que as empresas farmacêuticas aumentaram os preços dos medicamentos não para financiar a inovação — mas para bater metas de lucro e gatilhos de pagamentos de incentivo para executivos.

Como a indústria farmacêutica (privada) se enriquece com pesquisas públicas

Além de tudo isso, a Patients For Affordable Drugs apresenta um argumento que achei melhor colocar à parte: o chamado ganho sem causa. 

Traduzindo: a indústria farmacêutica ganha dinheiro em cima do contribuinte, pois se aproveita dos investimentos do Estado americano em pesquisas, que vão além da pesquisa básica. Elas envolvem a execução das fases avançadas de desenvolvimento tecnológico, ou seja, medicamentos eficazes.

A prova disso é que nos EUA 36% dos gastos com inovação em novos medicamentos foram bancados pelo NIH — o National Institutes of Health (Institutos Nacionais de Saúde, em português), portanto, investimento público.

Entre 2010 e 2019, o NIH participou do financiamento dos 356 novos medicamentos aprovados pela FDA (Food and Drugs Administration). Investimento na ordem de U$ 230 bilhões.

Em outras palavras: o financiamento do NIH gera grande número de patentes no setor privado com vultuosa repercussão para a atividade comercial do laboratório.

Há uma grande contradição: o “pedágio” cobrado pela indústria farmacêutica/sistema financeiro tende a desequilibrar a finalidade de tais inovações e o consumo correto dos medicamentos, porque as pessoas simplesmente não podem pagar por eles.

Há ainda um grande problema de saúde pública: universalizar e elevar os padrões sanitários, tendo como fator de desequilíbrio o próprio setor que deveria ser mais dinâmico que é a iniciativa privada.

Sem vontade soberana da sociedade e execução democrática do Estado haverá: mais iniquidade do que propriamente inovação; mais divisão de classes; e a formação de primeira e segunda categorias de seres humanos em relação ao acesso à saúde como vista na sociedade tecnológica.

Existem decisões importantes da soberania social que não podem ficar à disposição de executivos da indústria farmacêutica.

Por exemplo: inovações que não inovam com maior efetividade; inovação com retorno absurdo do capital; abandono das doenças dos pobres por baixo retorno financeiro (doenças negligenciáveis); cobrança de “pedágio” dos pacientes em risco de vida iminente e dos crônicos (os primeiros por ameaçar sua sobrevivência;  os segundos, porque necessitam do uso contínuo).

Segundo o relatório da Patients For Affordable Drugs, pacientes para os quais já existem tratamentos eficazes estão morrendo porque não têm acesso aos medicamentos inovadores porque são muito caros. Estima-se que, em 10 anos, 1,1 milhão dos americanos dependentes do “medicare”  morrerá por falta de acesso a tais tratamentos.

Em média, por ano, 130 mil idosos americanos perderão anos de vida por não poderem pagar pelo acesso a medicamentos que evitariam a morte. 

Segundo a Patients For Affordable Drugs, os aumentos de preços dos medicamentos nos primeiros sete meses de 2022 excedem os que ocorreram entre 2020 e 2021.

Houve 1.186 vezes alterações de preços de medicamentos. Só no primeiro semestre de 2022, o preço médio dos medicamentos aumentou 5%; 64 medicamentos de alto custo aumentaram este ano.

Essa situação está ficando insuportável para o americano médio diante do aumento recorde de inflação.

Pacientes deixando de ter acesso a medicamentos: “Três em cada dez pacientes relatam não tomar a medicação como prescrito devido aos custos; a dívida relacionada às despesas médicas afeta 40% dos adultos”. A população negra e a de descendência latina são as principais vítimas de tal situação.

Os americanos pagam os preços de medicamentos mais altos do mundo.

Vivemos uma civilização do avanço do conhecimento científico, com novos paradigmas metodológicos e inovação tecnológica para resolver problemas velhos e novos.

Isso tem que ser um bem comum de modo a se tornar avanço e não separação de privilégios e exploração.

O Brasil passa por um momento importante de sua soberania política com as próximas eleições. E essas questões são importantes, porque a saúde é uma prioridade dada a contradição que acabamos de expor.

Em fala recente, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou:

“Não importa o quanto o Ocidente e a elite supranacional se esforcem para preservar a ordem existente, pois uma nova era e um novo estágio na história mundial estão chegando”.

Apenas estados genuinamente soberanos podem garantir dinâmica de alto crescimento e se tornarem modelo para outros em termos de padrões e qualidade de vida, ideais humanistas elevados, tendo  como modelo de desenvolvimento aquele em que o indivíduo não é um meio, mas o objetivo final.

Soberania significa liberdade de desenvolvimento nacional. Portanto, de desenvolvimento de cada indivíduo. Trata-se da solvência tecnológica, cultural, intelectual e educacional de um Estado.

A sociedade civil responsável, ativa e nacionalmente orientada é o componente mais importante da soberania.

Para sermos fortes, independentes e competitivos, é preciso melhorar os mecanismos de participação das pessoas na vida do país.

Isso inclui o mecanismo de democracia direta e envolvimento das pessoas no enfrentamento dos problemas críticos delas”.

*José do Vale Pinheiro Feitosa é médico sanitarista


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