Gestão única de leitos públicos e privados para combater covid-19: Pode salvar vidas, defende Ligia Bahia; setor privado é contra

Tempo de leitura: 4 min

Da Redação

A seção Tendências, na Folha de S. Paulo, propôs à medica sanitarista Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro ( UFRJ) e a Henrique Neves, Vice-presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), o seguinte debate:

O Brasil deveria criar uma regulação de leitos públicos e privados no combate ao coronavírus?

Abaixo, a íntegra do posicionamento de ambos.

SIM

AUMENTAR A ESCALA DE REDE

Medida pode salvar vidas e nos tornar menos desiguais

por Ligia Bahia, na Folha de S. Paulo

O novo coronavírus é repentino, devastador e universal. Já houve crises sanitárias mais letais, mas a maioria permaneceu territorialmente circunscrita, e registram-se aquelas disseminadas, porém, quase sempre, com menores taxas de mortalidade.

A surpreendente ameaça à saúde vem sendo respondida com medidas também inusitadas. Estratégias de distanciamento social se conjugaram com a reorganização de recursos assistenciais.

Países como a Austrália, Irlanda, Espanha, Reino Unido procuraram reunir de forma coordenada insumos estratégicos. Barreiras de natureza jurídica foram rompidas pela celebração de acordos para uso comum de estabelecimentos privados durante a pandemia.

A maior parte dos termos de cessão de uso prevê o pagamento de valores compatíveis com a manutenção dos hospitais, deduzindo o lucro.

É vantajoso para ambas as partes porque evita a ociosidade decorrente das recomendações de adiamento de exames e internações eletivas e permite a necessária expansão de leitos por preços justos.

O uso compartilhado de leitos, acrescido com a montagem de hospitais de campanha, conforma uma escala adequada para a magnitude da pandemia.

Para o Brasil, onde a participação do setor privado é superior à de países com alta renda, o gerenciamento da capacidade instalada existente é vital para impedir discriminação de acesso para a maioria da população.

Temos uma inversão entre a oferta de leitos e as necessidades de internação. O SUS conta com apenas 53% do total de leitos de terapia intensiva.

Antes dos casos de Covid-19 já era um calvário conseguir tratamento para pacientes graves na rede pública.

Sem medidas para diminuir a desigualdade preexistente para o uso de procedimentos de suporte à vida, a veloz disseminação da doença poderá acentuar iniquidades, inclusive entre quem tem plano privado de saúde.

Parte significativa dos clientes da saúde suplementar está vinculada a redes assistenciais de baixa complexidade tecnológica.

A displicência com a inovação de determinadas empresas conformou um setor que manifesta desprezo pelos desfechos assistenciais e apela para o aumento de subsídios governamentais ao menor sinal de perda de receitas.

Agora, quando está comprovado que a experiência de profissionais de saúde e disponibilidade de equipamentos faz toda a diferença, seus porta-vozes parecem desatinados. Chegaram a demandar, quando a curva epidêmica ascende, o retorno de pacientes eletivos.

Ou seja, o perigo do contato de doentes infectados com pessoas com comorbidades seria inferior ao de balanços financeiros negativos.

A comparação dos resultados do tratamento de pacientes evidencia que leitos vazios devem ser ocupados pelos acometidos pela Covid-
19.

A experiência de Nova York é traumática. A pandemia nos EUA, apesar do elevado gasto com saúde e sofisticados hospitais, mas com clivagens definidas pela capacidade de pagamento, deixou um rastro duplamente trágico: número de mortes elevadas e diferenciais desfavoráveis para latino-americanos e negros.

A gestão única de leitos —com tempo definido, baseada na combinação de critérios de gravidade dos casos, proximidade geográfica e garantias previstas nos contratos dos planos—, é factível e assegura a priorização das necessidades dos doentes.

Compatibilizar direito à saúde com os de propriedade é uma tarefa urgente e exigente de sincera disposição para o diálogo; se bem executada, salvará vidas e nos tornará menos desiguais.

Ligia Bahia é doutora em saúde pública e professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

NÃO

CONSEQUÊNCIAS CATASTRÓFICAS

Hospitais privados terão consequências catastróficas

por Henrique Neves*, na Folha de S. Paulo

Com a responsabilidade de atender cerca de 47 milhões de brasileiros, a saúde suplementar não é só relevante pela quantidade de serviços ou pela percepção da qualidade dos atendimentos, mas por ser um importante pilar do setor ao desonerar o Sistema Único de Saúde (SUS) desse custo e responsabilidade.

Antecipando-se à chegada da Covid-19 ao Brasil, o Congresso Nacional editou a lei nº 13.979, em 6 de fevereiro, que contém um conjunto de medidas que interferem em direitos fundamentais e em regras habituais de comportamento da administração pública; dentre elas, a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas.

Nesta pandemia, a saúde suplementar tem responsabilidades com a proteção de seus empregados e com o atendimento aos usuários.

Planejou e realizou as compras de equipamentos e materiais em um mercado caracterizado pela escassez, que exigiu aquisições no exterior e o uso de rotas pouco usuais para evitar o confisco em outros países. Apesar deste zelo, este provimento vem sendo objeto de dezenas de requisições da administração pública.
Sem condicionar a adoção dessas medidas à coordenação e ao controle da União ou esgotar as alternativas menos gravosas disponíveis, o que se tem visto é o abuso de autoridades. Em um caso extremo, um município paulista retirou, com autorização judicial, equipamentos que haviam sido requisitados pela União, porém já adquiridos por instituições privadas, inclusive hospitais que atendem o SUS.
Iniciativas sem planejamento e alinhamento entre os diversos interesses envolvidos e sem a coordenação da União, somadas ao populismo de lideranças locais, mostram a dificuldade gerada por essas requisições, que mais contribuem para a insegurança jurídica e a desestruturação do sistema suplementar.

Ao se discutir a regulação única de leitos públicos e privados durante a pandemia, Espanha, Itália e Reino Unido são citados como exemplos —e ilustram dificuldades de planejamento, deficiências estruturais do sistema de saúde, sem que se vislumbrem os benefícios da regulação única.

O Brasil é um país continental com peculiaridades regionais, diferente dos europeus citados. Dos mais de 430 mil leitos de internação, 62% estão em instituições privadas.

Desses, 52% já são disponibilizados ao setor público. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2017, cerca de 60% das internações de alta complexidade do SUS foram realizadas por instituições privadas, grande parte delas filantrópicas.

Do ponto de vista prático, uma regulação única teria que estar ligada a uma capacidade de monitoramento e gestão desses leitos, que por sua vez estão ligados a um sistema mais complexo.

Mesmo com a cooperação da rede privada, engajada na construção e operação de hospitais de campanha, ações para impor a regulação única de leitos já foram iniciadas.

Caso avancem, as consequências serão —sem qualquer exagero —catastróficas, já que os hospitais privados serão obrigados a lidar com múltiplas requisições, sem qualquer controle ou planejamento.

Os déficits de leitos terão que ser avaliados em diversos níveis, como concentração de pacientes e capacidade do sistema de saúde e, se houver necessidade dos leitos privados, estes deverão ser utilizados nos termos e condições acordados entre a autoridade pública e os hospitais.

Vale lembrar, ainda, que os hospitais já são legalmente obrigados a atender os pacientes que os procuram em situações de emergência e urgência.

*Henrique Neves é vice-presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp)

 


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Comentários

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Zé Maria

Houvesse um Governo Sério, que realmente prezasse
pelo Interesse Público, Social, e pelo Bem Comum,
seria a hora de estatizar todo o Sistema de Saúde.

Zé Maria

Desde quando o Setor Privado foi a favor
de prestar Serviço, Público que fosse,
sem exigir Lucro sobre o Trabalho?
Tanto faz se é Saúde ou Educação.
Inda por cima com Governo e Legislativo,
com Supremo, com tudo dominado.

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