Francisco Funcia: Financiamento federal do SUS, certezas e incertezas

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Financiamento federal do SUS em 2024 e a partir de 2025: certezas e incertezas

Por Francisco R. Funcia*, no Instituto de Direito Aplicado

O objetivo deste texto é avaliar sinteticamente o grau de certeza e incerteza do financiamento federal do Sistema Único de Saúde (SUS) neste momento e no futuro próximo.

Inicialmente, cumpre destacar que a atual gestão do governo federal adotou medidas positivas que fortaleceram o financiamento federal do SUS a partir do início de 2023, entre elas:

a) a primeira foi antes da posse, ainda em dezembro de 2022, quando articulou politicamente com o Congresso Nacional o aumento de mais de R$ 20 bilhões à proposta orçamentária de 2023 que fora enviada pelo governo passado.

Com essa medida, o novo governo sinalizou concretamente seu compromisso com a saúde da população, estancando o processo de retirada de recursos federais do SUS, cujas perdas atingiram mais de R$ 70 bilhões no período 2018-2022 (como decorrência dos efeitos negativos da Emenda Constitucional – EC – nº 95/2016); e

b) a segunda foi antes e depois da posse em janeiro de 2023, quando articulou junto ao Congresso Nacional a tramitação de projetos com mudanças na Constituição Federal e na legislação para estabelecer um novo arcabouço fiscal, em substituição à regra do “teto de gastos”, o que ocorreu com a aprovação pela Lei Complementar nº 200/2023 em agosto de 2023.

Entretanto, na época, foi noticiado pela imprensa que houve resistência de parte do Congresso Nacional em aprovar a flexibilização das regras fiscais conforme proposta originalmente encaminhada pelo governo federal.

Além disso, durante todo o primeiro semestre de 2023, a imprensa noticiou desconfiança do mercado em relação à proposta do novo arcabouço fiscal, cuja posição resistente do Banco Central para redução da taxa básica de juros contribuiu para essa desconfiança, além de retardar bastante a possibilidade de retomada do crescimento econômico.

No contexto político dessa difícil correlação de forças, houve uma flexibilização muito limitada das regras fiscais na Lei Complementar nº 200/2023, especialmente para “banda” de variação das despesas primárias entre 0,6% e 2,5% ao ano, sem excepcionalizar as despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), dentre outras da área social.

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Essa flexibilização limitada das regras fiscais, por sua vez, veio acompanhada de manifestações de alguns representantes da área econômica do governo (Fazenda e Planejamento) na imprensa (1), com a introdução de um tema para debate durante o ano de 2023 que não fazia parte da agenda política até aquele momento: a necessidade de revisão das regras dos pisos constitucionais de aplicação federal mínima em saúde e em educação, diante dos riscos que tais pisos poderiam trazer para o cumprimento das metas fiscais em 2023 e, nos termos da Lei Complementar nº 200/2023, a partir de 2024.

Sobre isso, dois acontecimentos causaram muita preocupação em meados de 2023.

Um foi a decisão da área econômica do governo federal em consultar o Tribunal de Contas da União sobre a necessidade ou não de cumprir o piso federal da saúde em 2023, diante do contexto de transição das regras fiscais e da revogação da regra da EC 95 somente no segundo semestre de 2024 (efetivamente com a Lei Complementar nº 200/23).

Outro foi a tramitação e a aprovação da Lei Complementar nº 201/2023, com a incorporação do artigo 15 por meio de emenda parlamentar, que estabeleceu como regra do piso federal do SUS (somente para 2023) 15% da receita corrente líquida da União estimada originalmente na Lei Orçamentária de 2023 aprovada pelo Congresso Nacional, diferentemente do que estabelecia a Constituição Federal após a revogação da EC 95 (15% da Receita Corrente Líquida apurada em cada exercício, conforme redação da EC 86 que voltava a vigorar).

A polêmica em torno desses dois acontecimentos não é objeto deste texto.

Porém, essa situação precisa ser mencionada porque faz parte do cenário para avaliar as certezas e incertezas sobre o financiamento federal do SUS em 2024 e a partir de 2025, a saber.

Quanto às certezas: o governo federal programou despesas ASPS na Lei Orçamentária de 2024 no valor de R$ 218,6 bilhões, portanto, cerca de R$ 400 milhões acima do que determina a EC 86 (15% da Receita Corrente Líquida corresponde a R$ 218,2 bilhões) que está vigorando após a revogação da EC 95.

Além disso, o Ministério da Saúde apresentou a Programação Anual de Saúde de 2024 com base no Plano Nacional de Saúde 2024-2027 aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde.

Esse fato merece destaque após a situação inédita experienciada no período 2020-2022, em que o Ministério da Saúde realizou a execução orçamentária com base no Plano Nacional de Saúde 2020-2023 que foi reprovado pelo Conselho Nacional de Saúde no início de 2021, em flagrante desrespeito ao princípio constitucional da participação da comunidade no SUS e às deliberações da Conferência Nacional de Saúde e do Conselho Nacional de Saúde nos termos da Lei nº 8142/90 e da Lei Complementar nº 141/2012.

Quanto às incertezas: falta alocar ainda no Orçamento de 2024 do Ministério da Saúde cerca de R$ 2,5 bilhões de despesas ASPS, que corresponde à compensação de restos a pagar (valores empenhados em 2022 e anos anteriores) cancelados em 2023, cuja aplicação deve ser adicional ao valor do piso de 2024).

Não há também nenhuma sinalização para devolver ao SUS cerca de R$ 70 bilhões (2), que foram retirados no período de 2018 a 2022 pelas gestões passadas do governo federal (o que foi possível pela iniciativa que tiveram de propor, e o Congresso Nacional de aprovar, mudanças na Constituição Federal para esse fim).

Além disso, alguns cenários projetam a arrecadação da receita para 2024 menor que a estimada na Lei Orçamentária, o que significa dizer que parte da programação orçamentária não seria disponibilizada para uso do Ministério da Saúde até o final do ano (considerando que, historicamente, a área econômica do governo federal trata o piso, que é aplicação mínima, em teto, que é aplicação máxima, desde 2000).

Por fim, no campo das incertezas, há também aquela relacionada com o que foi mencionado anteriormente, a saber, a intenção da equipe econômica do governo federal em revisar o piso constitucional da saúde (e também da educação) com o objetivo de adequá-lo às limitações de crescimento da despesa estabelecido pela regra do arcabouço fiscal aprovada pela Lei Complementar nº 200/2023, ou seja, reduzir os valores desses pisos a partir de 2025.

Considerando a prática de respeito à participação social adotada pela atual gestão do governo federal, seria muito importante que a área econômica do governo dialogasse urgentemente sobre esse tema com o Conselho Nacional de Saúde, que é a instância legal de caráter deliberativo do SUS na esfera federal em obediência ao princípio constitucional de participação da comunidade no SUS, com representação paritária de usuários, trabalhadores e gestores do SUS, além de debater tecnicamente o tema com as entidades da Reforma Sanitária Brasileira e com os movimentos sociais vinculados à defesa do SUS e ao direito à vida.

Por fim, sempre é bom lembrar das manifestações do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva: “É uma inversão que a gente precisa fazer. Para a elite dominante desse país, tudo que é benefício é gasto. Saúde é gasto. Ora, a saúde é um baita de um investimento. Todo mundo sabe o quanto custa uma pessoa doente aos cofres do Estado. E o quanto pode produzir, trabalhar e aprender uma pessoa que está com plena saúde”(3).

Notas

1) Seguem algumas reportagens em que esse tema pode ser encontrado em: 

https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-03/governo-quer-reavaliar-pisos-para-gastos-com-saude-e-educacao; 

https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/05/fazenda-planeja-mexer-na-correcao-dos-pisos-dos-gastos-com-saude-e-educacao-diz-secretario-do-tesouro.ghtml; 

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/09/28/governo-ainda-avalia-saidas-em-relacao-a-volta-do-piso-constitucional-da-saude-afirma-ceron.ghtml;

https://outraspalavras.net/crise-brasileira/orcamento-o-indesejavel-consenso/; 

https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/12/03/governo-trabalha-em-novas-regras-para-piso-de-saude-e-educacao-em-2025-diz-secretario-de-orcamento.ghtml; 

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/12/22/haddad-diz-que-eventual-revisao-de-pisos-da-saude-e-educacao-dependera-de-decisao-de-governo.ghtml

2) OCKÉ-REIS, Carlos Octávio; BENEVIDES, Rodrigo; FUNCIA, Francisco; MELO, Mariana. Evolução do piso federal em saúde: 2013-2020. Brasília, DF: Ipea, out. 2023. 12 p. (Disoc : Nota Técnica, 109). DOI:http://dx.doi.org/10.38116/ntdisoc109-port. Disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/12482/1/NT_109_Disoc_Evolucao.pdf

3)Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2023-06/lula-recursos-para-educacao-e-saude-sao-investimento-nao-gasto 

*Francisco R. Funcia é Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP) e Doutor em Administração (USCS). Professor dos Cursos de Economia e Medicina da USCS e Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde/ABrES (gestão dez2022-nov2024).

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