Beatriz Mac Dowell: PEC no Senado torna o sangue mercadoria; autoriza coleta e compra de plasma

Tempo de leitura: 4 min
Doutora Beatriz Mc Dowell: 'Plasma é sangue! Sangue não é mercadoria!' Crédito da ilustração: Revista Arco, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Sangue não é mercadoria!

Por Beatriz Mac Dowell Soares, especial para o Viomundo 

A Constituição Federal, de 1988, “Constituição Cidadã”, diz no seu artigo 199:

“A assistência à saúde é livre à iniciativa privada… § 4º – A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” (o negrito é da autora)

Na época, há muito batalhava pela proibição da venda do sangue no país.

Foi uma vitória da sociedade civil e do movimento da Reforma Sanitária, do qual o saudoso mestre Sérgio Arouca era uma de suas grandes lideranças.

Essa luta, aliás, continuou.

Prova disso foi a aprovação, em 21 de março de 2001, da lei nº 10.205, que regulamenta o parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal, relativo a coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados.

Porém, 22 anos depois, uma Proposta de Emenda Constitucional quer alterar o artigo 199 da Constituição Federal, “para dispor sobre as condições e os requisitos para coleta e o processamento de plasma humano”.

Trata-se da PEC 10/2022, em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.

Em português claro: o objetivo da PEC é fazer do sangue uma mercadoria, autorizando a compra de plasma (parte líquida do sangue).

Só quem não viveu os horrores das décadas de 1970/1980, principalmente no Rio de Janeiro quando se trocava sangue por uma média com pão e manteiga, poderia defender essa ideia.

Sangue é vida! Sangue é saúde! Mas sangue pode também trazer doenças.

Tanto que, em 2001, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou a campanha que tinha como tema “O sangue seguro começa comigo”.

Ou seja, não é qualquer pessoa que pode doar. Os candidatos à doação precisam cumprir requisitos técnicos rigorosos.

A seleção de doadores não visa à discriminação das pessoas.

Ela se deve à necessidade de se afastar o risco acrescido de um candidato à doação transmitir alguma doença pelo seu histórico.

Desde o início da década de 1990, existem testes de triagem de sangue capazes identificar anticorpos contra os vírus da aids e das hepatites, entre outras doenças.

E, desde o começo deste milênio, há os testes de ácido nucleico (NAT), que podem identificar partículas dos vírus.

Mas em todos esses testes existe o que chamamos de janela imunológica. É o período em que não é possível identificar os anticorpos ou as partículas de vírus.

Portanto, a janela imunológica pode deixar passar sangue contaminado, mesmo que seja testado.

Não existe sangue/plasma 100% seguro, por isso o rigor na entrevista do doador e nos exames de sangue realizados.

Em agosto de 2004, o presidente Lula, por meio do projeto de lei 2399/03, do Poder Executivo, autorizou a criação da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás).

Só que passados quase 20 anos da criação da Hemobrás o Brasil ainda não processa todo o plasma excedente do sangue total coletado de pessoas que doam anônima e altruisticamente para todos os pacientes brasileiros.

Em outras palavras: no Brasil, ainda se descarta sangue de doadores.

A situação só não é mais grave porque as células vermelhas do sangue (hemácias) e outras são aproveitadas quase integralmente.

De tempos em tempos, os estoques ficam em baixa nos hemocentros do país, mas não se morre mais devido à falta de sangue como acontecia antigamente.

Por outro lado, mesmo que hoje processemos todo o sangue coletado (separar as “partes”), as imunoglobulinas Ig (anticorpos existentes no plasma) serão insuficientes para atender todos os pacientes com imunodeficiência hereditária ou adquirida.

No caso das pessoas com imunodeficiência hereditária, a dependência em relação às Ig é por toda a vida.

Essas pessoas dependem da importação de hemoderivados e outros para sobreviver.

Mas por que não tem faltado os produtos para as pessoas com hemofilia no país?

Porque uma política nacional que integra a estrutura do Ministério da Saúde (MS), delegada à Coordenação Nacional de Sangue e de Hemoderivados (CNSH), planeja a aquisição dos produtos com, no minimo, um ano de antecedência.

A CNSH/MS recebe e distribui os produtos/medicamentos para os Centros Tratadores de Hemofilia.

Ora, por que não planejarmos melhor a aquisição das Ig nos vários níveis de gestão do SUS?

A Hemobrás está quase pronta. Muito já foi investido nela.

Não podemos continuar retrocedendo na políticas públicas para a saúde, ainda mais desperdiçando altos investimentos, como aconteceu recentemente com as vacinas para covid-19.

Vamos colocar a Hemobrás em pleno funcionamento e processar todo plasma de qualidade (com o menor risco) excedente do uso terapêutico.

Aí, sim, poderemos pensar numa regulamentação específica para a doação do plasma com fins industriais, que não necessariamente precisa ser remunerada.

Portanto, não tem cabimento comprar sangue total ou plasma para obtenção dos seus produtos, sem se ter ainda a produção interna com todo plasma excedente do uso terapêutico.

Isso só vai aumentar o volume de descarte do plasma rico em proteínas, desperdiçando dinheiro do SUS que poderia ser usado na aquisição das mesmas Ig.

A PEC 10/2022, em trâmite no Senado Federal, é uma afronta aos brasileiros.

Ela acrescenta no artigo 199 da CF, o parágrafo 5º, que, se aprovado, permitirá a coleta de plasma pela iniciativa pública e privada.

Aí, é claro, estará embutida a compra do plasma.

A PEC 10/2022 é uma prova inequívoca de que a luta é permanente.

A intenção dos seus proponentes no Senado é solapar a Reforma Sanitária.

Afinal, qual a explicação plausível do ponto de vista político, ético, financeiro e sanitário de se comprar esses produtos do mercado?

E de se vender plasma para a indústria privada lucrar com ele?

A quem interessa essa iniciativa?

Depois da luta histórica que acabou com o horror na hemoterapia no Brasil, vamos retroceder?

Ou vamos nos esquecer das milhares de mortes por hepatites e AIDS, que ocorreram no Brasil por sangue contaminado?

O Brasil, repito, tem fábrica pública – a Hemobrás — para produzir todos os hemoderivados de que necessitamos.

Plasma é sangue!
Sangue não é mercadoria!
Sangue não está à venda no Brasil!

*Beatriz Mac Dowell Soares é médica, foi gerente geral de Sangue e Hemoderivados da Anvisa/ Ministério da Saúde.

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Comentários

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Ekaterini

Acho que antes de escrever textos assim, um bom jornalista costuma ouvir mais de um lado da história. Pois bem, para pacientes que necessitam desta medicação e para médicos que cuidam destes pacientes, a conversa é beeeeem diferente. POR FAVOR, que tal uma reportagem com representantes destes pacientes e destes médicos?! Precisamos ter voz!

JUçaíra

Sou representante das Associação de pacientes com imunodeficiências primárias – ELPIB, nós dependemos por toda vida de medicamento derivado do plasma(imunoglobulina) para sobreviver. Esse texto é lindo mas a realidade que vejo é : Hemobrás fundada há 20 anos sem produzir de fato uma gota de imunoglobulina até hoje e o Brasil comprando imunoglobulina importada a peso de ouro, feita com plasma de doadores remunerados. Uma vergonha nacional, no momento em que o mundo passa por desabastecimento desse medicamento um país com 200 milhões de habitantes não contribuir em nada com a produção mundial do medicamento

Marcelo Brum

O Brasil é gigantesco e cheio de corrupção de norte a sul. Acho que sempre será assim.
Dificilmente muda.
Vendem até órgão.
Infelizmente.
A nossa cultura é a do Zé Carioca, o desenho animado.
Não vai mudar. É cultural.
Mas tem muita gente honesta.

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