Débora Calheiros: Pressão popular impede sequestro do rio Cuiabá pelo poder econônico em conivência com o Estado

Tempo de leitura: 5 min
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Por Débora Calheiros

A mobilização popular foi fundamental para a Assembleia Legislativa de Mato Grosso derrubar o veto do governador e proibir a construção de pequenas hidrelétricas ao longo do rio Cuiabá. Fotos: Michael Esquer/ ((o)) eco

Lei proíbe a construção de pequenas hidrelétricas em toda a extensão do rio Cuiabá. Foto: Secom/Governo de MT

Rios sequestrados, mas nem sempre!

Por Débora Calheiros*

O termo correto é este mesmo: sequestro. Mas podemos também chamar de saque, rapinagem, ladroagem.

Sequestro de bens públicos pelo poder econômico, no caso aqui de rios.

Os rios são um bem público que toda a população pode usufruir de seus benefícios, que estão sendo expropriados por uma única atividade, um único setor usuário. Me refiro aqui ao setor elétrico para construção de hidrelétricas.

Os benefícios das fontes de água são inúmeros, como todos podem imaginar.

Sem a água, nenhuma vida consegue vingar, nenhuma atividade humana pode prosperar.

Abastecimento humano, urbano e rural, saneamento, dessedentação de animais, culturas agrícolas, navegação, atividades industriais, de serviços, de lazer, pesca, aquicultura, práticas religiosas.

Todas as atividades dependem de água, e o ideal que ela seja com qualidade e quantidade apropriadas.

Tanto que, em 1997, o Brasil instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, mais conhecida como Lei das Águas (lei nº 9.433/1997).

Ela determina que a água é um bem de toda a população e, por isso, seu uso deve acontecer mediante aprovação do poder público, seja estadual ou nacional.

Há tempos, porém, assistimos ao sequestro, saque, rapinagem dos bens naturais públicos, através das privatizações.

Tudo com a conivência do Estado que favorece uns poucos, socializando perdas ambientais e sociais, em detrimento da maioria.

Nos últimos quatro anos, esse quadro se agravou com as “leis” bolsonaristas do “chutar o balde” e “passar a boiada”, prejudicando a população em geral.

Isso aconteceu em todo o Brasil, inclusive em Mato Grosso, onde o governador reeleito Mauro Mendes (União Brasil), apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL), estava fazendo de tudo para  liberar a construção pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) no Pantanal.

Portanto, a sociedade tem de estar alerta o tempo todo para reagir rápido. 

É o que aconteceu recentemente. Aqui, houve resistência e a campanha de mobilização social #RioCuiabáLivre foi vitoriosa!

Explico. O rio Cuiabá é o principal tributário do rio Paraguai. Também é o mais rico em produção pesqueira de toda a bacia. Dele dependem milhares de famílias ribeirinhas, incluindo indígenas, além de de todo o setor de turismo, em especial o da pesca, e o do gastronômico.

Em fevereiro deste ano, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) aprovou o projeto de lei 957/2019, do deputado Wilson Santos (PSD),proibindo usinas hidrelétricas (UHE) e pequenas centrais hidrelétricas (PCH) ao longo dos 828 km de extensão do rio Cuiabá.

Foram12 votos favoráveis 2 abstenções.

Na época, a mobilização da sociedade civil, em especial dos pescadores profissionais, foi fundamental.

O governador Mauro Mendes vetou

Novamente, a mobilização social fez a diferença.

Mesmo os ruralistas sendo maioria na ALMT, a Casa derrubou o veto, pois a pressão popular foi forte!

Pesou o fato de ser ano eleitoral — a maioria dos deputados não quis se indispor com os eleitores.

Mas, principalmente, o engajamento da população na luta em defesa do rio Cuiabá.

Pescadores, ribeirinhos e pantaneiros acompanharam a votação na ALMT. Fotos: Michael Esquer/((o)) eco

Por exemplo, os pescadores e pescadoras profissionais – artesanais de Mato Grosso divulgaram um manifesto (aqui, a íntegra).

Carros de som convocando a população para a votação circularam por pontos estratégicos de Cuiabá e municípios vizinhos, como Várzea Grande.

Eu mesma gravei este vídeo abaixo.

A aprovação dessa lei protetiva foi um alívio para todos que amam o Pantanal, assim como para todos que vivem e amam a pesca: pescadores profissionais, amadores, setor de turismo, de comércio de equipamentos de pesca, restaurantes e de toda a população pantaneira que culturalmente adora pescar. Foi lindo!!

Trata-se de um marco importante na resistência para que os rios ainda livres de barragens permaneçam livres. Também para a conservação dos processos ecológicos essenciais que regem o ecossistema pantaneiro, como determina a Constituição Federal.

LEI DAS ÁGUAS

A nossa Lei das Águas (Lei 9433/1997) determina o respeito ao princípio de “usos múltiplos”, ou seja, todos os usuários devem ter direito ao acesso à água e ao usufruto dos recursos hídricos, não apenas um deles.

No caso de construção de barragens, usos como navegação, pesca, turismo (em especial, o turismo de pesca) e o lazer regional ficam prejudicados.

Isso necessariamente não acontece quando os rios são usados para abastecimento público, irrigação, uso industrial e aquicultura

As pequenas centrais hidrelétricas – PCHs (geração entre 5 e 30 MW) — são a grande maioria dos projetos previstos para o país.

As PCHs apresentam vários inconvenientes:

— Tem ínfima capacidade de geração de energia.

— São inconstantes, em especial na fase de seca que coincide com o período de maior demanda por ser inverno em grande parte do país, diminuindo ainda mais o potencial de geração de energia.

— causam estragos comparáveis às usinas hidrelétricas, as chamadas UHE (> 30 MW), com grandes reservatórios.

Em geral, os projetos preveem várias PCHs em sequência (“em cascata”) num mesmo rio, agravando sobremaneira os impactos ambientais.

Além disso, em geral, as PCHs desviam cerca de 80% do volume de água do rio, liberando apenas 20% para a manutenção do ecossistema aquático.

Para ter melhor ideia do que isso significa, pensemos no corpo humano.

Independentemente do peso de cada um de nós, 70% do nosso peso corporal é composto por água.

Portanto, manter-se hidratado é essencial para o funcionamento correto das funções de todo o nosso organismo.

Pense agora o que aconteceria se nosso corpo ficasse com apenas 20% da água necessária?

Adoeceria, claro! Poderia até inviabilizar a vida.

Pois isso aconteceria com o rio Cuiabá se os deputados tivessem permitido a instalação de pequenas centrais hidrelétricas ao longo do seu curso.

O rio é um ecossistema aquático em fluxo.

Ele tem “veias” e “artérias”, como o corpo humano.

Assim, se o rio sofre barramento — por apenas uma PCH com reservatório pequeno ou uma UHE com grande reservatório — , o fluxo sofre obstrução.

A água vai, então, se acumulando rio acima, e diminuindo rio abaixo.

Em consequência, nutrientes, sedimentos e organismos fundamentais para a conservação dos processos hidrológicos e ecológicos são alterados totalmente, causando danos ambientais, ou “adoecimento”.

Em especial, há o bloqueio da passagem dos peixes migradores rio acima na época da reprodução, diminuindo e até extinguindo muitas espécies de importância social, cultural e econômica.

As comunidades e povos tradicionais ribeirinhos e as populações urbanas vulneráveis socialmente são os segmentos sociais mais afetados pelas hidrelétricas, pois perdem seus modos de vida, afetam sua segurança alimentar, pela dificuldade de acesso ao peixe como fonte de proteína riquíssima, que passam de abundantes a escassos ou inexistentes.

Os peixes são alimento extremamente importante, culturalmente inclusive, em regiões ainda conservadas como Amazônia, Pantanal e Araguaia, escasseando nas bacias hidrográficas, como a do Paraná, Paraíba do Sul e São Francisco, justamente pelas sequências de barramentos..

Mas se a mobilização da população conseguiu salvar o rio Cuiabá, o mesmo ainda não se pode dizer quanto à toda a bacia hidrográfica do Alto Paraguai, formadora do Pantanal, que está gravemente afetada.

Além dos 47 barramentos já construídos, estão previstos outros 133 (maioria de PCHs). Um total de 180!!!

Há muito o que fazer, resistir é preciso.

A resistência e a continuidade da mobilização social têm que prosseguir, para MANTER os rios livres!

Débora Calheiros é bióloga, especialista em ecologia de rios do Pantanal e de conservação e gestão de bacias hidrográfica. É voluntária do FONASC – Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas.

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Débora Calheiros

Bióloga, especialista em ecologia de rios do Pantanal e de conservação e gestão de bacias hidrográfica. É voluntária do FONASC – Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas.


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Comentários

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Antonio de Azevedo

PRIVATIZAÇÃO DA CORSAN: Edital de venda da estatal por ser suspenso por insegurança jurídica.

O cerco à Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), se fecha a cada dia. De um lado está o governador estadual que precisa de grana para tapar os buracos no Estado e eleger o sucessor. Do outro lado estão o Banco Mundial (Bird) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que ditam as regras do neoliberalismo e exigir de nós como moeda de troca dos empréstimos para pagar empréstimos, a venda de todas as estatais, especialmente as estratégicas e lucrativas, como a companhia de saneamento. A Corsan, é uma sociedade de economia mista que atua na área de serviços públicos de abastecimento de água potável e de esgotamento sanitário, é lucrativa, é modelo de atendimento ao consumidor, trabalha com tecnologia de ponta e investe, sabiamente, em pesquisa e desenvolvimento tecnológico que muito tem contribuindo para o avanço científico e promovendo importantes inovações no setor do saneamento no estado gaúcho. Portanto, não por acaso, é uma das maiores empresas e uma das melhores no segmento de saneamento do Brasil. Só mesmo um governo adepto do neoliberalismo poderia ter a coragem de privatizar, em momento de escalada das tensões sociais no Brasil pós-eleição, crise na Argentina, Guerra da Rússia contra a Ucrânia com participação da OTAN cada vez maior e a imprevisibilidade da Urgência Climática no Mundo, com projeção de um cenário econômico e social desastroso, uma empresa tão importante e promitente para o desenvolvimento do Estado do Rio Grande do Sul, como a Corsan. Além disso, ronda nessa tentativa de privatização, a insegurança jurídica, com possibilidade real de suspensão do edital de venda da estatal, especialmente quanto à titularidade dos serviços de saneamento ambiental ser uma concessão dos municípios e não dos estados. Ademais, o povo gaúcho não vai se esquecer dos deputados que compactuaram com essa afronta e saberá dar o troco no momento propício: nas próximas eleições. Quanto ao governo estadual, este sempre será lembrado por todos nós, tanto pela privatização da CEEE Distribuidora e CEEE Transmissão, a primeira doada ao Grupo Equatorial e a segunda à CPFL Energia, como pelo cerco e provável venda do maior orgulho e símbolo de eficiência, qualidade e pujança dos gaúchos: a Corsan.

Antonio Sérgio Neves de Azevedo – estudante Curitiba/Paraná

    Nelson

    Vivemos cercados, em meio a um mar de alienados, que demonstram zelo zero para com aquilo que é seu, e a um outro mar de entreguistas-privatistas, que só querem “se arrumar” abocanhando o patrimônio coletivo para a obtenção de lucros individuais.

    Infelizmente, ainda que, entre outros enormes prejuízos, as privatizações estejam lhes roubando as oportunidades de emprego que poderiam ter no futuro, quando formados, no grupo dos alienados encontramos a maioria do estudantado.

    Assim, quando vejo um estudante escrever um comentário bastante lúcido como esse, não posso deixar de elogiar.

    É um alento, possibilidade de que o estudantado finalmente entenda que o seu futuro está indo pras cucuias com as privatizações e passe a se mobilizar na defesa do patrimônio e das riquezas da nação.

Zé Maria

Excerto

“sequestro.
Mas podemos também chamar de saque, rapinagem, ladroagem.
Sequestro de bens públicos pelo poder econômico,
no caso aqui de rios.”
.

Esse foi Crime Contra a Humanidade

que a Privatização da Eletrobras causou.

.

JAIRSON DE LIMA

Nasci no Pantanal de Mato Grosso do Sul
Graças a Deus existem guerreiras(os) como a Débora Calheiros que, junto com o Povo de Mato Grosso, evitou o andamento do processo de destruição do Rio Cuiabá e de mais um pedaço da Mãe Terra, que está reagindo ao precesso de destrição que está sofrendo. Creio que já deu para perceber esta reação no planeta inteiro. Vamos acordar.

abelardo

Parabéns a Cuiabá, a população é parlamentares que honraram o a confiança recebida pela resistência e pela campanha de mobilização social #RioCuiabáLivre, que foi vitoriosa! A mobilização da população conseguiu salvar o rio Cuiabá, a biodiversidade, a vida, o meio ambiente e a natureza.

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