Moradores do Rio: “Morte por queda” esconde crimes da polícia

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Elizabeth Gomes Silva, esposa de Amarildo — Fotos Catarina Pedroso

Antes da morte do dançarino DG, moradores já contestavam laudos de “morte por queda”

por Catarina Pedroso do Rio de Janeiro, especial para o Viomundo

A morte de Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, dançarino do programa “Esquenta!” da Rede Globo, desencadeou protestos dos moradores da favela Pavão-Pavãozinho, na zona Sul do Rio de Janeiro, que ganharam destaque na mídia nos últimos dias.

Durante os protestos, outra pessoa foi morta. Edilson da Silva dos Santos morreu com um tiro na cabeça, provocando ainda mais indignação na população. Mas não é de hoje que os moradores do complexo de favelas Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, localizado entre os bairros de Copacabana e Ipanema, se queixam e se organizam contra a violência dos policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) instalada no complexo.

Deize Carvalho é, hoje, uma das lideranças no morro do Cantagalo e uma das principais vozes a denunciar os abusos policiais. Seu filho, Andreu Luis da Silva de Carvalho, foi morto no dia 1º de janeiro de 2008.

Na versão oficial, muito semelhante à sustentada por laudo preliminar da Polícia Civil sobre a morte do dançarino DG, Andreu teria caído do muro em uma tentativa de fuga. Mas, segundo denúncia oferecida pelo Ministério Público três anos depois, o jovem foi espancado e torturado até a morte por agentes do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas).

As “mortes por queda” parecem ser argumento tão frequentemente utilizado pela polícia, quanto contestado pelos moradores.

Andando pelas vielas do morro do Cantagalo, uma senhora interpela Deize com a mesma indignação: os policiais alegavam que seu sobrinho tinha caído de uma laje. “Mentira!”, dizia ela. “Ele foi espancado por PMs da UPP”.

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O relato foi feito em alto e bom som ao lado de um grupo de PMs, que se faziam indiferentes.

Deize Carvalho, mãe de Andreu Luis da Silva de Carvalho 

A história de Andreu

Andreu já tinha passado duas vezes pelo antigo Instituto Padre Severino (hoje Centro de Socioeducação Dom Bosco), no Rio de Janeiro, ligado ao Degase, quando foi apreendido novamente no final de 2007.

Desde a primeira internação, Deize denunciava os maus-tratos pelos quais os garotos passavam no Instituto.

“Eu via os adolescentes sendo espancados. Meu filho aparecia machucado. Era um calor de 40°C, aqui na rua, lá eram 50°C. Os meninos usavam casaco e calça de moletom para esconder os hematomas de pancada que eles tomavam. Quando eu ia denunciar, na diretoria do Degase, meu filho apanhava mais. Ele ficou marcado pelos agentes”.

Uma empresária, cujo nome Deize prefere não revelar, sensibilizou-se com a história de Andreu e passou a ajudá-lo. Ela chegou a evitar que ele fosse apreendido mais uma vez, afirma a mãe, pagando propina aos policias.

No dia 31 de dezembro de 2007, quando um coronel norte-americano foi roubado na praia de Ipanema, policiais subiram no morro do Cantagalo e apreenderam Andreu, de 17 anos, acusando-o de ter cometido o crime.

Levado ao Centro de Triagem e Recepção (CTR) do mesmo Instituto Padre Severino, Andreu, segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público, foi torturado até a morte por seis agentes do Degase.

Deize conta que soube dos detalhes das agressões através de outros adolescentes que também estavam no Instituto.

Segundo os relatos, Andreu foi sufocado com saco plástico, obrigado a comer sabão em pó, apanhou com barra de ferro, teve 30 perfurações no corpo feitas com um cabo de vassoura rompido ao meio, foi pisoteado e teve a mandíbula e o pescoço quebrados, além de descolamento de retina. Quando os agentes perceberam que ele não respondia mais, teriam ordenado que outros adolescentes limpassem seu corpo para que fosse levado ao hospital.

Anos depois, o corpo de Andreu foi exumado por determinação da Justiça. Na abertura do caixão, Deize pôde ver as marcas da violência sofrida por seu filho.

“O crânio estava rachado. Mas o legista omitiu todos esses fatos, as fraturas. Disse que ele teve uma fratura craniana, mas não disse do que foi. Se foi de uma pancada ou se foi de uma queda”, diz.

“Até hoje eu não consigo me ver nesse vídeo [a gravação da exumação] porque é uma dor muito grande, me faz relembrar tudo aquilo”, conta Deize. “Ouvir o meu grito de dor, de desespero, é muito dolorido. E saber que o legista omitiu fatos importantes, também. O corporativismo dos agentes do Estado é muito grande”.

Morro do Cantagalo

“Eles não nascem com fuzil empunhado no braço”

A luta de Deize, que começou dentro dos muros do Degase, se estendeu para a comunidade onde mora, fazendo com que ela se tornasse uma referência para denúncias de arbitrariedades cometidas por agentes do Estado.

“Nenhuma mãe gera um filho, vê o filho crescer, para vê-lo nessa situação que eu vi. Hoje eu luto por justiça para que outros jovens não venham a ter o mesmo fim que meu filho”.

Hoje, muitos jovens do Cantagalo, egressos de institutos de medidas socioeducativas ou de penitenciárias, recorrem ao auxílio de Deize afirmando serem perseguidos pelos policiais da UPP.

Com a chamada “pacificação” do Cantagalo, em 2009, seu trabalho se intensificou. Segundo Deize, é muito frequente que policiais da UPP persigam egressos do sistema penitenciário, com ameaças e intimidações. Espancamentos e torturas, diz, também seriam comuns.

São as UPPs as responsáveis por autorizar ou vetar festas, bailes e outros eventos comunitários. No Cantagalo, não é incomum que organizadores de eventos não permitidos pela UPP, contam os moradores, sejam detidos por desobediência e desacato à autoridade.

Deize coloca em questão a única forma pela qual o Estado se faz presente para as populações pobres: com a violência. “Não somos nós, mães, que geramos nossos filhos com fuzil. Eles não nascem com fuzil empunhado no braço”.

O caso Amarildo e a “Paz armada”

“Paz armada”. É este o nome da operação policial de combate ao tráfico durante a qual o pedreiro Amarildo Dias de Souza, 47, desapareceu, na Rocinha. Hoje, 25 PMs envolvidos no caso são acusados pelo Ministério Público pelos crimes de tortura, ocultação de cadáver, fraude processual e formação de quadrilha. Destes, 13 estão presos.

O nome é emblemático da situação que o Rio de Janeiro vive hoje com a política de pacificação empreendida pelo governo do Estado, de Cabral e Pezão (ambos do PMDB).

A tranquilidade das principais ruas das favelas cariocas se mantém à custa de um policiamento ostensivo e pouco amigável. Mais do que isso, à noite e nas vielas, dizem os moradores, a aparente segurança não existe.

Michelle Lacerda, sobrinha de Amarildo, diz que os policiais da Rocinha trabalham sem identificação durante a noite.

“Parece que os policiais do dia são completamente diferentes dos da noite. Durante o dia, parecia que a gente morava no paraíso. À noite, é aquele desrespeito geral.”

A dimensão da violência policial vivida pela comunidade vai além das agressões físicas. Michelle Lacerda conta que, ainda hoje, os olhos de dona Jurema, mãe de criação de Amarildo, se enchem de lágrima quando alguém fala no nome do filho. “Meu coração dói muito”, ela diz.

Elizabeth Gomes Silva, esposa de Amarildo, está recebendo atendimento psicológico na UPA (Unidade de Pronto-Atendimento), mas diz achar que não está funcionando. “Não tiro o pensamento da morte do meu marido da cabeça.”

Cidadania barganhada

Se a implementação de unidades de policiamento permanentes trouxe alguns benefícios à comunidade, principalmente por substituir as chamadas incursões bélicas – operações pontuais, e sempre desastrosas, de combate ao tráfico feitas pelo Bope e pelo Exército –, a convivência com os PMs revela a violência da militarização da vida cotidiana e a criminalização da pobreza.

Sob a justificativa de acabar com o tráfico nas comunidades e de levar cidadania aos seus moradores, o Estado se faz presente através de forças policias que, além de estarem muito longe do que seria desejável como polícia comunitária, alargam sua atuação repressiva e incidem de forma autoritária sobre as mais diversas questões do cotidiano.

Para Renato Cinco, vereador pelo PSOL, a UPP não é um projeto de segurança pública, mas “um projeto de cidade” voltado para a especulação imobiliária.

“É um projeto de gestão militar da pobreza e da miséria. Tem como objetivo principal abrir áreas da cidade para o mercado imobiliário”. Essa gestão militar se dá, segundo Cinco, sob a justificativa da guerra às drogas.

“Não existe uma guerra às drogas, isso é uma falácia”, diz. “Guerras não são contra coisas, são contra pessoas. Essa é uma guerra contra os pobres. É uma guerra que tem origem racista”.

Também para Orlando Zaccone, delegado que investigou a morte de Amarildo, a “pacificação”, muito mais do que uma política de segurança pública, é uma política de controle social.

“Para a pessoa ‘ser cidadã’, tem que aceitar ser revistada na saída da sua casa. Tem que aceitar não ter a autorização para bailes em determinado horário, aceitar que o comércio funcione com leis totalmente diferentes do que no restante da cidade”, lembra. “É uma cidadania barganhada na base desse estado policial”.

Em agosto de 2013, Cabral derrubou a “resolução 013”, que dava ao comando da UPP o direito de vetar a realização de eventos artísticos. Mas, segundo Deize, apesar de a resolução não estar mais em vigor, o veto continua ocorrendo.

“Eles continuam impedindo qualquer evento cultural, mesmo que seja um baile funk, de acontecer dentro da comunidade.”

Mas de que maneira se desfaz a cidadania dos moradores de favelas? Tais arbitrariedades só podem ser cometidas, segundo Zaccone, graças à construção social da figura do criminoso.

“Ninguém vai imaginar, diz o delegado, que o sistema financeiro é beneficiário do tráfico. Vai achar que o beneficiário do tráfico é o favelado, o varejista. Essas são subjetividades que vão sendo construídas no ambiente social e que definem o crime e o criminoso. A distinção de usuário e traficante não está na lei, está nas decisões que os operadores do direito fazem com base nesse critério seletivo”.

É essa construção social, segundo o delegado, que legitima os espaços de pobreza como espaços de exceção, que podem ser submetidos a regimes de controle arbitrários.

Em entrevista recente ao Viomundo, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), afirmou que a UPP “não foi pensada para ter mediação da sociedade civil”.

“[A UPP] Não é pensada para gerar direitos”, disse Freixo, que definiu o projeto como “uma produção de silêncio em áreas estratégicas”.

Segundo os moradores, os mecanismos de diálogos com a população praticamente não existem. Com muito custo, dizem, eles conseguem reuniões para discutir alguns assuntos. Além disso, eles relatam que esses encontros, longe de serem momentos democráticos, são marcados por tensão e autoritarismo.

“Algumas pessoas querem [denunciar], mas outras têm muito medo, porque eles ameaçam: ‘Eu sei onde você, mora, eu sei o que você faz. Eu já ouvi policial dizer isso: ‘Abre o olho, a madrugada é longa, na madrugada ninguém é de ninguém’”, conta Deize.

Quando pergunto a Elizabeth Gomes Silva, mulher de Amarildo, se ela sente medo de represálias, ela responde que não.

“Mas, de tanto as pessoas perguntarem se eu tenho medo, já está batendo aquela neurose em mim”, diz. “Se eu sumir, foram eles que me pegaram, foram eles que aprontaram. Mas eu vou ficar em casa presa? Não, eu tenho que andar”.

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