
Gerson: “Evitei fotogravar miséria. E vi muito”
por Gerson Carneiro, especial para o Viomundo.
Fragmentos do Haiti.
Para fechar a trilogia dessa aventura deixei para escrever o último relato aqui no Brasil. Primeiro porque quis concluí-la, depois em razão de sua imprevisibilidade e do desgaste prazeroso físico e emocional.
Foi uma aventura gratificante, repleta de expectativas e surpresas.
Esse terceiro relato não será um texto lógico e cadenciado, mas, sim, um registro aleatório de memorias. Por isso, fragmentos do Haiti.
A noiva apressada
Sábado, 10 de agosto, véspera do início da minha viagem ao Haiti. Fui padrinho de um casamento. Planejei tudo para que não desapontasse minha esposa, amiga de infância da noiva, e não alterasse o calendário de minha viagem.
Mas, apreensivo com a expectativa da viagem, fugiu de mim o horário exato do casório. Eis que me encontrava em casa no finalzinho da tarde e o telefone tocou. Era a noiva informando que eu, o padrinho, estava atrasado. Foi aí que pus em prática toda a rapidez baiana e tudo deu certo. Celebração e festa maravilhosas.
Na manhã da segunda-feira, dia 12, encontrei meus afilhados no aeroporto na Cidade do Panamá. Estavam indo curtir a lua de mel em Punta Cana na República Dominicana.
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— O que você está fazendo aqui? — me perguntaram.
— Esqueceram? Sou o padrinho. Tenho que tomar conta de vocês. Por isso estou acompanhando-os.
Estava nada. Foi uma tremenda coincidência. Eu estava indo para o Haiti e eles para a República Dominicana, que faz fronteira com o Haiti e unicamente divide o espaço geográfico da ilha com este.
FBI haitiano
Como se esperaria, com emoção e expectativas, estava eu no aeroporto de Porto Príncipe, aguardando o check in para voltar ao Brasil.
Cheguei por volta das 11h e o meu voo só seria às 18h30. Como o traslado do acampamento ao aeroporto é complicado, aproveitei e fui junto com meu amigo Bryan Avey, que estava de partida para Los Angeles, cujo voo era às 13h15.
Ele fez o check in e seguiu viagem. Eu fiquei aguardando a abertura do balcão da companhia aérea, o que ocorreu por volta das 15h.
Antes disso, quando Bryan já estava voando, a energia elétrica do aeroporto caiu por cerca de meia hora. Encostei em uma parede e minha cultura preconceituosa me fez tenso, mas nada aconteceu.
No saguão do aeroporto, observei que cinco policiais conduziam, continuamente, seus cães em direção às malas para que as cheirassem, imagino que à procura de drogas ilícitas. Mas os cães, tão magricelas e apáticos, não se mostravam animados para cumprir a tarefa. Tanto que os policiais até abriam e vasculhavam as malas eles próprios, ficando os cães sentados, sem fazer nada.
Era notório que aqueles cães não estavam preparados para a tarefa a que estavam sendo submetidos, gerando, assim, um espetáculo grotesco de imitação de policiais do FBI. Temi: esses cães estão famintos, se cheirarem minha mala ficarão excitados com o meu sanduíche de pão com frango que trouxe do acampamento (pra aguentar a longa espera!) e estarei ferrado.
Logo percebi que minha preocupação era inútil e precipitada.Os policiais haitianos vasculhavam as malas apenas de outros haitianos, não incomodavam os estrangeiros a quem chamam de “brancos”. Lembrei imediatamente da letra da canção do Gilberto Gil e do Caetano Veloso: “O Haiti é aqui”.
Hostilidade no Haiti
Reservei uma tarde para visitar a base militar brasileira. Chegando na portaria fui informado por soldados que para adentrar à área restrita e permitida seria necessária autorização de algum superior.
Como estava acompanhado por um missionário brasileiro, que mora no Haiti e visita lá com frequência, este entrou em contato com o capelão da base, que veio a nós e autorizou nossa entrada.
Andei pela pequena área permitida, tirei algumas fotos, vi de longe o monumento aos soldados brasileiros mortos no terremoto (21 no total) e retornei.
No trajeto de volta, um soldado raso brasileiro, de nome Couto, me interpelou se eu tinha autorização da ONU para estar ali. Disse que não tinha autorização da ONU mas de um superior dele. Ele então disse que era proibido tirar fotos. No instante em que falava isso, dois soldados tiravam fotos da gente (estávamos em três). Nisso o missionário brasileiro perguntou: se é proibido tirar fotos, por que seus colegas estão tirando da gente? O soldado respondeu que eles eram da segurança.
Engraçado que éramos brasileiros, visitando a base militar brasileira, falando português…Foi a primeira e única vez que fomos fomos hostilizados no Haiti. E por brasileiros.
Concluí que eram soldados que precisavam comprovar serviço naquele dia e encontraram uma oportunidade.
O preço do bem
Ainda durante o planejamento da viagem procurei saber o volume de malas permitido para transporte sem cobrança de taxa. Rapidamente li no site da companhia que eram permitidas duas malas de 32 quilos cada. Tudo bem. Minha mala com pertences pessoais pesava 15 quilos e a mala de donativos pesava 30 quilos.
Lá fui para o check in quando surpreendentemente fui informado que a franquia dependia do destino, e para o Haiti eram permitidas duas malas somando ambas 32 quilos. O excedente seria cobrado US$ 125 até 45 quilos. Para os EUA (indo ou voltando) eram, sim, permitidas duas malas de 32 quilos cada. Como minhas duas malas somavam exatamente 45 quilos, tive que pagar os US$ 125, mesmo informando para a atendente que a mala de 30 quilos tratava-se de donativos. A resposta obtida: “Não vou poder te ajudar nessa. Deus te recompensa”.
Ok. Deus já está me recompensando.
Haiti fragmentado
O Haiti é a síntese de toda interferência maligna humana no mundo. Percebi que todo problema do Haiti, toda miséria, toda violência, toda ignorância, é resultante exclusivamente da ganância do homem que anula qualquer preocupação com o futuro do planeta e da população.
É forte o sentimento de segregação no Haiti.
É tão evidente e marcante a questão da opressão no Haiti que a maioria dos haitianos detentores de um emprego qualquer se sente autoridade. Até o funcionário da companhia aérea, na fila para fazer a triagem dos passageiros, age como se fosse um policial interrogando um suspeito. E quando se trata de um haitiano pobre saindo do país, é humilhado. Eu presenciei isso.
É constrangedor ver haitianos humilhando haitianos.
Tratam com certa simpatia brasileiros. Poderia ter tirado proveito e ter vestido minha camisa do Brasil para conquistar alguma simpatia… Mas nem a camisa levei comigo, pois não fui ao Haiti fazer propaganda do meu país nem obter vantagens. Tampouco minha viagem foi patrocinada pelo meu país.
A população do Haiti (pelo menos da capital, há regiões diversas que não lembram em nada a capital) está à míngua. Não há transporte público, não há saneamento básico, não há hospitais, não há escolas públicas, não há segurança. A cidade inteira, exceto o bairro dos ricos, que não fiz questão de conhecer, é uma grande favela. A sensação de andar pela cidade é a de que estava andando em uma extensa favela.
É tão triste e vergonhoso que uma série de ditadores passou pelo Haiti e jogou o país na miséria total.
E o governo haitiano cobra US$ 400 dólares para um cidadão haitiano obter um simples passaporte.
Passei em frente à casa do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide que se encontra exilado em sua imensa mansão. Em uma rua esburacada, poeirenta, de repente aparece um muro alto, cercando um quarteirão inteiro. Lá dentro está o mundo particular do ex-presidente. Imagino um verdadeiro oásis.
Nessa mesma rua está o Jardim dos Pássaros. Uma enorme praça que seria pública, cercada por muros aonde só tem acesso o atual Presidente e os seus chegados.
No Haiti tudo funciona perfeitamente bem e rápido se for através de suborno. Até adoção de criança. Para um estrangeiro adotar uma criança haitiana o processo dura em média três anos. Se for através de suborno não demora três meses. O que menos importa ao esquema corrupto é a criança.
O material para construção de uma igreja, proveniente dos EUA, ficou esperando liberação no porto por sete meses.
Outra coisa chocante: vi seis vales que antes eram rios que desembocavam nos arredores da capital (um deles no centro da capital). Esses vales estão preenchidos de areia e pedras; o da capital, além de areia e pedra, por muito lixo.
Eram rios, que não mais voltarão a ser rios. Não há árvores na cadeia de montanhas que cerca a capital. Resultado de anos e anos de exploração, sem reposição, para fabricação de carvão. Matou os rios. Quem pensa que aquela conversa de extinção de rio é bobagem, que vá a Porto Príncipe conferir que não o é.
A capital do Haiti não é para turistas. É muito perigoso. Há muito ladrão. Os tiros que ouvi em duas madrugadas eram conflitos relacionados a ladrões. Aqui tenho que tomar o necessário cuidado para não cair na síntese simplista e ignorante de que a miséria aleija o caráter de um povo. Não. O Haiti tem um povo bom.
Mas uma população submetida à miséria extrema (vi pessoas lavando o rosto na água que corria na rua), ao desemprego extremo, mas com necessidades básicas e naturais de sobrevivência. Acredito que deva haver alguma ligação para explicar o alto índice de violência. Alguém com conhecimento específico saberá explicar. Não sou especialista em nada, conto apenas o que presenciei, senti, vi, e ouvi.
O índice de desemprego é altíssimo. E não é por não ter o que fazer. A ONU e o governo local deveriam estar de fato empenhados na reconstrução da capital. Implantando tudo o que necessário é e já relatei sobre a ausência: escolas, saneamento, segurança, pavimentação, transporte. Chego a pensar até no despropósito da MINUSTAH (Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haiti) com a reconstrução do Haiti.
Em nome de Jesus
Em que pese a mensagem transmitida no filme “Quanto Vale ou É por Quilo?”, a presença de missionários evangélicos no Haiti é um alento para o povo sofrido.
Tive a oportunidade de estar em um culto evangélico e presenciei a entrega do povo à alegria de estar ali louvando, cantando e dançando. Em dado momento pareceu que estava eu em um salão de festa, sentindo o calor de adultos e crianças cantando e dançando.
Eles lêem o evangelho, pregam um pouco e depois caem na “farra”. Muito diferente dos cultos evangélicos no Brasil.
Como se vê no vídeo amador gravado por mim (está abaixo). Nele, o pastor haitiano Frederick Nozil aparece tocando baixo elétrico. Aliás, o pastor morou nos EUA e estava prestes (faltava um dia para vencer o prazo) a assinar a documentação para ganhar o visto americano permanente, mas teria que residir para sempre lá. Decidiu voltar para o Haiti para cuidar do seu povo.
Fiquei a pensar o que seria daquele povo sem a oportunidade de manifestar tamanha alegria.
Muintos dançam sem ter comido nada naquele dia. Observei que naquela tarde ninguém havia comido nada. Apenas bebido água.
Conheci um missionário evangélico americano, Thomas Osbeck, que está no Haiti desde 1998. Passou por vários momentos tensos. Apanhou diversas vezes de milicianos. Não foi assassinado porque gerenciava um orfanato, mas sofreu extorsão várias vezes. Hoje gerencia também uma escola que fundou para dar continuidade aos cuidados às crianças órfãs. Em torno de 250 crianças.
O governo haitiano só autoriza o funcionamento de igreja se esta mantiver uma escola em suas dependências. Transferindo assim a função e responsabilidade da Educação.
Fiquei hospedado com missionários evangélicos brasileiros que lá estão há dois anos: Marlon Mata, Rafael Lira, Vanessa Thomaz, Dilenee Lopes, Cristilene Pereira e Lucas Sobreira. Fazem um trabalho relevante para manter elevada a autoestima do povo haitiano.
Água mole em pedra dura…
Nem sempre fura. O povo haitiano tem uma resiliência vigorosa (capacidade de, após momento de adversidade, conseguir se adaptar ou evoluir positivamente frente à situação adversa). É um povo sorridente.
Caem na gargalhada quando são surpreendidos por brancos que se arriscam a conversar com eles no dialeto Kreyol. O missionário brasileiro Marlon Mata (o mesmo que me acompanhou à base militar brasileira) gostava de surpreendê-los quando vinham conversando em inglês. Respondia em Kreyol: “Desculpe, não falo inglês, só Kreyol”.
Ouvíamos então uma gargalhada só.
“O índice de suicídio é baixo e não se vê haitiano deprimido. Desenvolveram resistência ao sofrimento”, contou-me Marlon.
Vaidade não tem nacionalidade
No geral, o haitiano é vaidoso, talvez até seja uma inconsciente fuga do seu estado de carência. É comum ver nas ruas haitianos trajando roupa social em pleno sol escaldante que produz no forasteiro a sensação térmica de 40 graus positivos. O que me disseram é que muitas vezes falta-lhes comida, mas fazem questão de se mostrarem bem vestidos.
Evitei fotogravar miséria. E vi muito.
Recompensa
Aceitei o convite e fui ao Haiti, daqui do Brasil, sozinho. Fui convidado por meu amigo americano, Bryan Avey, que reside em Los Angeles. Nos encontramos no aeroporto de Porto Príncipe. Foi uma viagem cheia de expectativas, até de medo. A volta, do momento que saí do acampamento até o em que entrei em casa, durou 24 horas. Toda a viagem produziu um cansaço físico e emocional, por tudo que vivi. Mas foi muito gratificante.
No penúltimo dia, aproveitei para ir à praia. No Haiti, paga-se para frequentá-las. Há praias de US$1, 10, 20 e 40 dólares. O diferencial é a infraestrutura, mas todas são naturalmente lindas. A que fui, fica a 70 quilômetros da capital. E custava U$ 20 dólares.
Cheguei em casa no Brasil na quarta-feira, 21 de agosto, às 10h. Fiquei de quarentena, vivendo o estado do choque cultural reverso. E na manhã do dia seguinte, ou seja, hoje, registrei estas memórias.
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