O cabelo “invocado” do Paintsil e o apartheid português

Tempo de leitura: 3 min

por Luiz Carlos Azenha

Um narrador brasileiro da Copa do Mundo notou o cabelo “invocado” do Paintsil, jogador de Gana. Outro achou um exagero o cabelo do Prince Tagoe, da mesma seleção. Jogador de futebol gosta mesmo de inventar moda. Eu me lembro de uma Copa em que uma seleção europeia, aparentemente para demonstrar solidariedade de grupo, tingiu os cabelos todos de uma mesma cor. Tivemos, também, solidariedade capilar entre jogadores que ficaram carecas em grupo, aquele corte diferente do Ronaldo e, mais recentemente, a garotada do Santos inventando uma arrumação comum de cabeleira.

Em alguns lugares da África, no entanto, por incrível que pareça o corte de cabelo já foi afirmação de liberdade individual e expressão de resistência cultural.

Hoje as centenas de jornalistas que desembarcaram na África do Sul frequentam o museu do apartheid, em Joanesburgo, para ver de perto os objetos e imagens que marcaram o regime racista. Ficam boquiabertos, muitas vezes, com o fato de que um regime como aquele sobreviveu até 1994! O que poucos deles sabem é que, para os padrões africanos, embora tenha sido extremista, não se tratou de um regime de exceção: o racismo institucional foi a regra desde que os europeus fizeram a partilha da África até o fim das guerras de independência.

Nos paises de colonização portuguesa, por exemplo — em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, especialmente — foi instituído um sistema informal de castas. No topo estavam os europeus brancos. Depois os mulatos. Em seguida os negros assimilados. E finalmente os negros “indígenas”, aos quais eram negados todos os direitos.

A categoria de “negros assimilados” foi criada para fornecer aos portugueses uma elite local que ajudasse a governar a colonia em postos subalternos. Para receber o documento de assimilado, o negro tinha de apresentar a um tribunal duas pessoas brancas, para atestar diante do juiz: “Esse sujeito fala português, dorme na cama, come com garfo e faca, etc.”. Ou seja, já abandonou completamente sua cultura e, apesar da cor da pele, é “um dos nossos”. Aos negros não assimilados, ou indígenas, eram negados direitos básicos, como a liberdade de ir e vir. E eles podiam ser recrutados a qualquer momento, as vezes à força, para o trabalho em obras públicas. A “obra” colonial, portanto, foi erguida com trabalho escravo ou semi-escravo.

Na Guiné-Bissau, onde estourou cedo a luta pela independência, a guerra cultural foi levada ao extremo: alguns cortes de cabelo eram proibidos (assim como danças tradicionais das diferentes etnias em cerimônias públicas). Era, literalmente, a proibição do “cabelo rebelde”. Aos homens negros era permitido usar o cabelo curto, às mulheres fazer “maria chiquinha”. E só. Mais tarde, nos anos 60, nos Estados Unidos, durante a luta dos negros por direitos civis, surgiu o famoso cabelo “black power”. Portanto, como vocês podem notar, as elaboradas tranças africanas não refletem apenas as diferentes culturas locais, mas se tornaram também um símbolo de resistência e de afirmação cultural.

Talvez o Pantsil e o Prince Tagoe, jogadores de Gana, estejam apenas expressando sua vaidade, o que muitos outros jogadores de futebol fazem, cada um à sua maneira. Que o façam, livres da patrulha capilar.

Nota do Viomundo: Como notou o Hélio Paz, identifiquei erroneamente como sendo Pimpong o jogador de Gana que se chama Prince Tagoe (ele aparece na foto que agora ilustra esse post). O texto foi corrigido. Peço desculpas aos leitores.

Apoie o VIOMUNDO

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Leia também