Sobre Mandela e Mugabe

Tempo de leitura: 4 min

por Luiz Carlos Azenha

Quando eu era correspondente em Nova York, nos anos 90, uma de minhas diversões favoritas era acompanhar a chegada de novos jornalistas brasileiros à cidade. Eu e outros veteranos no posto acompanhavamos com interesse a “descoberta” dos recém-chegados. Escreviam no jornal ou falavam na televisão como se ninguém antes deles tivesse pisado em Nova York. “Descobriam” as nevascas, o melhor hamburguer, as noitadas “exclusivas” em recantos pouco frequentados de Manhattan.

Agora, afinal, terei a oportunidade de ver uma reprise do que testemunhei. Em alguns dias teremos centenas de repórteres brasileiros na África do Sul e eles vão “descobrir” o apartheid, a cidade racista onde só vivem africâners e a estátua de Nelson Mandela no centro de Joanesburgo. Ah, sim, Mandela será devidamente reconhecido como o herói que foi — hoje em dia, até os racistas de ontem se escondem atrás de Mandela.

A imagem de Mandela se encaixa perfeitamente na narrativa que deverá acompanhar a venda da Copa do Mundo da África do Sul ao mundo, aquela narrativa maniqueista, bland, cujo objetivo principal, ainda que inconsciente, é fazer o telespectador/leitor/ouvinte se sentir bem. Sim, Mandela é o “nosso herói”. Mas um herói só pode ser apresentado em contraposição a alguém diabólico e, na falta de um bom africâner, talvez meus colegas optem por falar de Robert Mugabe, o eterno presidente do Zimbábue, país vizinho da África do Sul.

Mugabe foi devidamente demonizado pela mídia ocidental, especialmente pela britânica, embora não seja o mais cruel, nem o pior dos ditadores da África. Mugabe não foi demonizado apenas pelo que fez de ruim, mas provavelmente pelo que fez de bom para aqueles que o defendem. Mugabe fez a reforma agrária! Tirou terras dos brancos e as transferiu para fazendeiros negros. Foi o único líder africano, desde o fim do colonialismo europeu, nos anos 50, que mexeu neste vespeiro.

Terra, como vocês sabem, é o principal bem de um africano. A maioria dos habitantes do continente depende da terra para sobreviver. Todas as grandes rebeliões do período colonial, na África, foram causadas pelo avanço dos brancos sobre terras de povos locais. A rebelião do herero, na Namíbia, foi assim. A rebelião dos mau mau, no Quênia, foi assim. A rebelião dos maji maji, na Tanzânia, também. Na África do Sul, ainda hoje, os fazendeiros brancos controlam a maior parte das terras férteis.

Isso se deve aos compromissos que o Congresso Nacional Africano (ANC), o partido de Mandela, assumiu ao fazer a transição do fim do apartheid. O ANC, que um dia foi um partido revolucionário, escreveu uma espécie de “carta aos sulafricanos”, na qual prometeu mudanças lentas, graduais e seguras. Para todos os efeitos, a reforma agrária prometida pelo ANC nunca saiu do papel. Os problemas mais graves foram resolvidos com o pagamento de indenizações.

Por incompetência governamental, os fazendeiros negros que tiveram acesso à terra não tiveram acesso a insumos ou assistência técnica. Em vez de resolver o problema da terra, o ANC voltou-se para a criação de uma classe média negra, urbana. Meus colegas certamente notarão isso: as leis do apartheid sumiram, os sulafricanos hoje tem total liberdade de movimento, mas o apartheid social é tão dramático quanto o que existia 15 anos atrás. Para todos os efeitos, brancos e negros sulafricanos vivem em universos distintos.

No Zimbábue a situação econômica melhorou desde que um governo de coalizão foi formado. A reforma agrária era uma demanda nacional, não apenas dos partidários de Mugabe, embora estes tenham sido os mais beneficiados pela distribuição de terra. Aliás, esta é a origem da força política que sustenta Mugabe no poder: ele fez, aos trancos e barrancos, a reforma agrária! Podemos discutir os métodos e o resultado final. Mas é indiscutível que Mugabe só se sustenta no poder por ter atendido à demanda da base rural do Zanu-PF, o partido que ele comanda.

Para minha própria surpresa, descobri na África que muitos africanos apóiam e elogiam Mugabe fazendo a comparação entre ele e Nelson Mandela: um fez a reforma agrária; outro, não. É óbvio que as coisas não são tão simples assim. Quem pesquisar melhor, vai descobrir que Mugabe e Mandela estão do mesmo lado.

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Uma das críticas recorrentes da mídia internacional a Thabo Mbeki, o antecessor do atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma, se relacionava ao fato de que ele nunca retirou o apoio do ANC e da África do Sul ao ditador do Zimbábue.

Isso tem duas explicações: de um lado, a retirada dos fazendeiros britânicos do Zimbábue interessa à própria África do Sul e aos interesses do agronegócio sulafricano, que se expandem além-fronteira; de outro lado, Mugabe é um parceiro histórico do ANC.

Quando o regime racista da África do Sul se sentia crescentemente ameaçado, optou por estabelecer um cordão sanitário na vizinhança: financiou a guerra civil em Angola, em Moçambique e no Zimbábue (então chamado de Rodésia) e ocupou militarmente a Namíbia. Foi então que se forjou a aliança que, mais tarde, teria um papel importante no isolamento político e econômico da África do Sul e no fim do apartheid.

Portanto, Mandela se tornou quem é um pouco por causa de Mugabe; e Mugabe está onde está em parte por força do ANC de Mandela. Mugabe e Mandela foram aliados históricos, contra regimes racistas que tiveram origem na filosofia de superioridade racial dos africâners.

Seria mais simples ter escrito que um é mocinho e o outro bandido, não?

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