Neurocientista Miguel Nicolelis faz paraplégicos crônicos voltarem a andar na China
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Por Conceição Lemes
Junho 2014. O Projeto Andar de Novo (Walk Again Project, em inglês), liderado pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, realiza uma exibição científica pioneira, no Itaquerão, em São Paulo.
Juliano Pinto, jovem com o corpo paralisado do peito para baixo, dá o chute inaugural da Copa do Mundo.
Nas pernas, Juliano “vestia” um exoesqueleto. É uma “roupa robótica”.
Na cabeça, por baixo do capacete, múltiplos eletrodos (não invasivos) embutidos numa espécie de touca aplicada no couro cabeludo, imediatamente acima das áreas cerebrais envolvidas no controle motor.
Essa tecnologia inovadora permitiu que Juliano controlasse os movimentos do exoesqueleto e, ao mesmo tempo, recebesse dele sinais táteis nos pés e, assim, desse o pontapé inicial da Copa do Mundo de Futebol 2014.
Durante vários meses, Juliano submeteu-se a um protocolo de neurorreabilitação desenvolvido por Nicolelis e equipe: o Walk Again Neurorehabilitation (WANR).

2014. Juliano Pinto dá o chute inicial da Copa do Mundo, no Itaquerão, em SP, Brasil. 2025. Paraplégica participante de ensaio clínico sino-brasileiro, liderado pelo neurocientista Miguel Nicolelis, recupera a capacidade de andar por seus próprios meios, voltando a caminhar pelas ruas de Pequim
usando apenas andador e uma órtese
Dezembro 2025. A tecnologia de ponta criada no Brasil pelo Projeto Andar de Novo para Juliano se movimentar permite agora que paraplégicos crônicos na China recuperem parte dos movimentos das pernas, voltem a andar autonomamente e apresentem sinais de reversão da atrofia cerebral, causada pela lesão medular, um fenômeno considerado até recentemente improvável.
É o que revela estudo clínico (randomizado, controlado, com avaliação cega) desenvolvido por pesquisadores chineses e brasileiros, tendo Nicolelis à frente.
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Uma colaboração entre Hospital Xuanwu, da Capital Medical University, em Pequim, e o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro, São Paulo, Brasil.
Os resultados do estudo foram publicados em 5 de dezembro, no medRxiv como preprint.
‘’DESPERTADOR NEURAL’’
O protocolo de neurorreabilitação baseia-se em interface cérebro-máquina (ICM).
Ele combina captura de sinais cerebrais externos não invasivos, simulações em realidade virtual imersiva, feedback visual-tátil realista e locomoção assistida por robô.
Durante o treinamento, o paciente controla um avatar em ambiente virtual enquanto seu corpo é conduzido por uma ‘’roupa’’ robótica, que recebe estímulos sensoriais que ajudam o cérebro a reconstruir a sensação de movimento.
“Essa abordagem funciona como um despertador neural’’, explica Nicolelis.
‘’Ela reativa circuitos que ficaram adormecidos por muitos anos e dá ao cérebro um novo contexto para reaprender funções motoras que haviam sido interrompidas pela lesão”, acrescenta.
PROTOCOLO WARN VERSUS FISIOTERAPIA CONVENCIONAL
Ao todo, 19 pacientes participaram do ensaio clínico conduzido por pesquisadores chineses e brasileiros.
Os pacientes tinham entre 21 e 59 anos de idade, e tempo de lesão medular que variava de 13 meses a 25 anos.
Foram divididos em dois grupos.
Um, de controle (9 pacientes), que recebeu apenas a fisioterapia clássica, convencional.
O outro, experimental (10 pacientes), que se submeteu ao treinamento completo com o protocolo WANR durante nove meses.
Aos cinco meses de treinamento com o WANR, os pesquisadores detectaram recuperação motora significativa nos pacientes do grupo experimental.
Ao final do estudo, após 9 meses de treinamento, 50% dos participantes tinham passado do estado de paraplegia completa para parcial (de ASIA A para ASIA C), recuperando movimentos voluntários das pernas e, em alguns casos, a capacidade de caminhar por seus próprios meios.
Uma participante até voltou a caminhar pelas ruas de Pequim, utilizando apenas andador e uma órtese.
E um outro paciente, mesmo com lesão medular de 20 anos, obteve recuperação clínica significativa, tornando-se capaz de andar com muletas após o treinamento com o WANR.
Já no grupo controle, que fez apenas terapia convencional, não se observou nenhuma melhora significativa.
REVERSÃO PARCIAL DA ATROFIA NO CÉREBRO
Ao longo do ensaio clínico, os 19 participantes foram submetidos periodicamente a exames de ressonância magnética.
No início do treinamento, o cérebro dos pacientes dos dois grupos apresentava atrofia cortical em relação ao cérebro de pessoas saudáveis, corroborando o que está demonstrado na literatura científica.
Isto é, pacientes com lesão medular crônica costumam apresentar perda de 15% a 22% da espessura cortical. É um processo de atrofia que afeta praticamente todos os lobos corticais e está associado a ocorrência de déficits cognitivos.
Porém, após os pacientes fazerem o treinamento com o protocolo WANR, a ressonância magnética revelou um achado surpreendente: reversão parcial da atrofia no cérebro causada pela lesão medular, além dos benefícios motores.
Segundo os pesquisadores, o grupo experimental exibiu aumento significativo da espessura cortical e maior conectividade funcional entre regiões do cérebro, indicando que o programa de neurorreabilitação induziu processo de reorganização neural profunda.
Já os pacientes do grupo controle exibiram pouco ou nenhum aumento da espessura cortical.
‘’Isso representa uma mudança de paradigma’’, festeja Miguel Nicolelis.
Por muito tempo acreditou-se que o cérebro perderia progressivamente sua capacidade de reorganização após uma lesão grave.
O que os pesquisadores brasileiros e chineses estão mostrando agora é justamente o contrário.
Sob os estímulos certos, o cérebro humano é capaz de recuperar-se funcionalmente, usando circuitos neurais alternativos, ou mesmo recuperando alguns dos que foram afetados pela lesão medular original.
Os resultados deste estudo sino-brasileiro abrem novas perspectivas para pacientes com grande variedade de doenças neurológicas.
Para Nicolelis, é o começo de uma nova etapa da área da neurorreabilitação por interface cérebro-máquina inventada por ele e seu colega John Chapin, no final dos anos 1990:
“Estamos entrando em uma nova era em que as interfaces cérebro-máquina não invasivas podem oferecer as condições terapêuticas necessárias para recuperar funções cerebrais perdidas devido a lesões do sistema nervoso, mesmo anos após o início do quadro clínico”.
”Tais avanços vão mudar a prática clínica de manejo terapêutico de doenças neurológicas, além de oferecer esperança de melhora significativa da qualidade de vida para centenas de milhões de pessoas em todo o mundo que sofrem com distúrbios do sistema nervoso central”,
Segundo estudo epidemiológico global recente, em 2021, cerca de 3,4 bilhões de pessoas no mundo (43% da população total) sofriam de um dos 37 distúrbios neurológicos mais prevalentes.
Somente na China, estima-se que atingiam 468,29 milhões de pessoas. Ou seja, 32,91% de toda a população do país e 34,5% de todas as doenças na China.
A propósito. No artigo sobre o ensaio clínico, os pesquisadores chineses e brasileiros alertam:
Nossos achados também indicam categoricamente que não há justificativa clínica nem ética para o uso de implantes corticais altamente invasivos no tratamento de paraplégicos, visto que protocolos não invasivos, como o WANR, podem ser suficientes para induzir a recuperação neurológica.




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