Observações de Bernardo Kucinski sobre Israel, Palestina e mídia

Tempo de leitura: 10 min

por Conceição Lemes

Em 7 de setembro, postamos o artigo do pacifista judeu Uri Avnery, Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel. O jornalista e escritor Bernardo Kucinski questionou a tradução, assinada pelo Coletivo da Vila Vudu. Mandou dois comentários.

Em função da polêmica gerada, resolvemos ouví-lo. Como Kucinski é  colega jornalista, tratei-o por você. A entrevista foi por e-mail. Segue na íntegra, sem qualquer edição nas perguntas e respostas.

Viomundo – Você disse que houve um erro grave na tradução do artigo do Uri Avnery; que o original não fala em colonos judeus ou cães judeus ou judeus cães. Fala em colonos-cães ou cães-colonos, uma metáfora aos cães de guarda. São colonos que desempenham, na opinião do Avnery, o papel de cães de guarda de uma política de expansão territorial. Você disse que a inclusão da palavra judeu na frase dá uma conotação antissemita.

1. Por quê? A frase como foi traduzida é antissemita ou pode ser vista como tal? Você receia que a tradução possa levar as pessoas a estender a expressão a todos os judeus?

2. Considerando que para o leitor de Avnery [a publicação é de Israel] a palavra colono é autoexplicativa, você não acha que pelo menos uma ou outra vez poderia aparecer na tradução a expressão colono judeu sem ter a conotação antissemita observada por você?

3. Quando você rejeita a expressão colono judeu, não há o risco de se nivelar todos os judeus? Ou você não vê diferença entre Chomsky, Avnery, Finkelstein, Pappé e os colonos armados?

4. Ainda sobre o poder das palavras. Se os leitores do texto original entendem exatamente o que quer dizer settlement, os brasileiros com certeza não têm a mesma clareza. Quando fazemos uma tradução, não temos que adaptar para a capacidade de leitura do público-alvo? Desse ponto de vista, não é mais correto, para o leitor brasileiro, traduzir assentamentos como colônias para judeus em território palestino?

Bernardo Kucinski: As perguntas 1, 2, 3 e 4 são redundantes e repetem o argumento de Vila Vudu.

Eu apontei discrepância entre original e tradução; Vila Vudu reconheceu que tenho “alguma razão”. Bastava terem pedido desculpas por eventual mal entendido e pronto. Em vez disso, meteram os pés pelas mãos numa resposta confusa. O erro é aceitável no jornalismo desde que cometido de boa fé e corrigido.  Isso porque se considera (a) a essencialidade do jornalismo na democracia e (b) que ele trabalha contra o relógio. Na Lei de Imprensa, derrogada e até hoje não substituída, a correção do erro e/ou o exercício do direito de resposta eximem o autor de culpa. Por esse motivo, para que possa haver a reclamação e eventual correção de equívocos, a Constituição veda o anonimato. Confiram:

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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…) IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

O anonimato dos tradutores de Vila Vudu viola a Constituição. Além de atentar contra a ética jornalística.

Quanto a haver ou não antissemitismo na adulteração, endosso a colocação do Sergio Storch. O problema está em associar a palavra “judeu” à palavra “cão”.

Viomundo – Nós temos vários leitores-comentaristas judeus que contribuem para ótimos debates. Curiosamente no artigo do Avnery nenhum se sentiu ofendido ou pelo menos não se manifestou sobre o problema que você percebeu no texto. Como explicaria essa diferença de olhar?

Bernardo Kucinski — A crítica da mídia é minha especialidade; às vezes, vejo o que outros deixam passar. Não se trata de ofendidos. Trata-se de mau jornalismo. Isso é ruim para todos, para Vila Vudu, que perde espaços e credibilidade, e para os leitores que perdem uma fonte alternativa de informação em português.

Viomundo — Avnery diz:

“…que os colonos desempenham papel central no conflito entre Israel e o povo palestino. São os colonos que impedem que se faça qualquer tipo de acordo de paz. Não admitem, sequer, qualquer tipo de negociações de paz significativas, porque qualquer tipo de paz entre Israel e o povo palestino terá de basear-se em devolver a Cisjordânia, Jerusalém Leste e a Faixa de Gaza ao futuro Estado da Palestina…

…Isso implica que a paz, necessariamente, implicará remoção de grande número de colônias hoje ocupadas por judeus e a evacuação de todos os colonos das colônias exclusivas para judeus espalhadas por toda a Cisjordânia”.

Qual a sua opinião para os assentamentos dos colonos em territórios palestinos?

Bernardo Kucinski — Avnery não diz exatamente isso ou só isso. A segunda frase é seguida de outra que diz: “Um consenso mundial está hoje se formando sobre isso (a devolução dessas áreas). A única questão é onde exatamente a fronteira passará, já que há também um consenso sobre a troca mútua de territórios” (grifo meu, Kucinski). E continua Avnery: “Isso significa que a paz implicará necessariamente na remoção de grande número de assentamentos e evacuação de colonos ao longo do West Bank”.

Ou seja, remoção de “grande número” e não de “todos” os assentamentos. Como você vê, pequenas imprecisões modificam o sentido do texto, principalmente, ao apagar o componente de negociação (troca mútua de territórios), deixando apenas a de expulsão.

Outra imprecisão, do próprio Avnery, é dizer que os colonos se opõem a entregar “nem mesmo uma polegada quadrada de território”. A última enquete que eu localizei, de 2005, revelou que 47% dos colonos seculares eram favoráveis à retirada dos territórios ocupados e até mesmo entre os colonos religiosos, 37% eram favoráveis à retirada.

Feitos esses reparos, acho basicamente correta a avaliação de Avnery de que os colonos são hoje o principal empecilho à paz, embora não seja o único. A carta do Hamas que prega a destruição do Estado de Israel é um empecilho também sério.

Sobre minha posição em relação aos assentamentos, leiam as reportagens que escrevi para Carta Maior quando visitei os territórios ocupados junto com a ONG Machson Watch, que combate as barreiras colocadas pelo exército de Israel entre as diversas partes do território Palestino. Estão em www.cartamaior.com.br

Viomundo — Na próxima semana acontecerá em NovaYork a 66ª Assembleia Geral da ONU. Os palestinos pedirão à ONU que reconheça o Estado da Palestina. O que acha de a ONU aprová-lo já este ano?

Bernardo Kucinski — O Estado Palestino já deveria estar de pé desde quando a Assembleia Geral da ONU aprovou por 33 votos contra 13,  em 29 de novembro de 1947, a partilha da Palestina em dois estados, um judeu e um árabe. Na ocasião, as lideranças palestinas e os governos árabes rejeitaram a partilha. Em 14 maio de 48, o mandato britânico chegou ao fim, os judeus proclamaram o Estado de Israel. No dia seguinte, seis países árabes declararam guerra a Israel, a primeira das muitas que  se seguiram.

Viomundo – Judeus como Finkelstein, Pappé, Avnery, entre outros intelectuais, sofrem pressão, são perseguidos hoje em Israel. Como você vê isso?

Bernardo Kucinski — Não tenho notícia de que intelectuais sejam perseguidos em Israel. Cinqüenta dos mais proeminentes deles assinaram há dois meses um manifesto exigindo do governo a abertura imediata de negociações de paz com os palestinos e nenhum foi molestado, que eu saiba. Entre eles estava o grande e escritor pacifista David Grossman, vários detentores do Prêmio Israel, o maior prêmio outorgado pelo governo a intelectuais, acadêmicos e artistas, e a patrona do teatro Israelense, Hanna Maron, uma das minhas poucas parentes sobreviventes do holocausto e que leu para o público o manifesto. O principal jornal de Israel, o Haaretz, prega incessantemente a necessidade de negociar a paz e por fim à ocupação, denuncia sempre abusos cometidos contra palestinos e nem por isso é molestado.

Não conheço Finkelstein nem Pappé.

Avnery se reúne toda semana com um grupo de intelectuais num café de Tel Aviv à vista de todos e nunca foi molestado. Eu mesmo fui a um desses encontros.

Viomundo — Por que, em sua opinião, o governo americano vetou, na ONU, este ano, a resolução que condena os assentamentos, quando isso, na teoria, era política americana?

Bernardo Kucinski — Não sei.

Viomundo — Como essas mudanças no mundo árabe, com as revoltas populares do último ano, a ira que se viu no Egito contra a Embaixada de Israel, etc, podem mudar a política dos EUA e de Israel para o conflito com a Palestina, se é que podem?

Bernardo Kucinski — Temo que o aumento das tensões e conflitos internos não resolvidos no mundo árabe e em Israel, onde também houve manifestações de massa contra o neoliberalismo, possa levar a uma guerra geral na região. Há protagonistas demais hoje no Oriente Médio para os quais, no desespero, a guerra seria uma saída de emergência. A qualquer momento uma simples faísca pode fazer tudo explodir.  Essa guerra geral só não estourou ainda porque todos sabem que será muito pior do que tudo o que já aconteceu até hoje.

Viomundo — Antigamente um fato acontecia, a gente só tomava conhecimento dias, semanas, meses depois. Hoje, com a internet, isso mudou. Nós praticamente assistimos ao vivo, por exemplo, ao ataque do exército de Israel à flotilha de paz para Gaza, à Operação Chumbo Fundido… A imagem que o mundo tinha dos judeus mudou muito. De vítimas do holocausto passaram a ser vistos como produtores do “holocausto” de palestinos.

Você concorda que Israel passou de vítima a agressor? Quando isso se deu? Seria possível reverter essa situação? Afinal, sem revertê-la, não haverá paz nunca, concorda?

Bernardo Kucinski — A minha visão é a de que o conflito palestino passou a ser tratado como categoria mítica, a grande luta de hoje do bem contra mal, a mãe de todas essas lutas. Os judeus são os opressores, o mal absoluto,  e os palestinos, os oprimidos. Nesse tratamento, detalhes, complexidades e nuances, não têm espaço. A informação correta não interessa. Só entra aquilo que reforça o mito. Certamente o ataque à Gaza, no qual morreram mais de 1.300 pessoas tem muito a ver com a consolidação desse mito.

Não é preciso reverter essa situação para chegar à paz, porque esse mito tem vida apenas fora da região. Os próprios palestinos de Israel, dos territórios ocupados e da faixa de Gaza, assim como os judeus, vivem o conflito como algo do cotidiano,  embora exacerbado e alimentado por fanáticos dos dois lados. Além disso, é um dos vários conflitos da região e nem o mais sangrento no momento.

Assim como a guerra pode estourar a qualquer momento, a paz também pode vir a qualquer momento, embora eu não ache que será para agora.

Viomundo — Qual o papel da internet nessa nova compreensão do mundo em relação a Israel e aos próprios judeus? É positivo, negativo?

Bernardo Kucinski — Em princípio muito positivo. Além de informar a internet mobiliza, organiza e articula. Mas nunca estudei os aspectos negativos, que também existem, um deles as práticas do anonimato como o de Vila Vudu.

Viomundo — Até alguns anos atrás a visão que o mundo tinha de Israel e dos judeus era a transmitida pela mídia ocidental. Ficava-se refém de uma visão única, que funcionava como propaganda de Israel. Hoje, há a rede Al Jazeera, além da própria internet. Qual a importância da Al Jazeera para se entender o que acontece no Oriente Médio?

Bernardo Kucinski — A premissa de pergunta não está correta. A mídia inglesa, por exemplo, sempre foi hostil a Israel. A francesa, também, embora menos. Hoje, sim, prevalece a visão única, retratando Israel como agressor e dominador, e os palestinos como inocentes vítimas de um Holocausto. A Al Jazeera não adota essa visão. Ela se inspirou nos padrões do melhor jornalismo Ocidental e não do pior, privilegiando a informação veraz e a análise inteligente e o contraditório. Aplicou esse padrão a uma agenda alternativa, cobrindo conflitos e situações do mundo que a grande imprensa Ocidental ignora.  A Al Jazeera é fundamental para se entender o que se passa nas periferias do capitalismo, em especial África e Ásia. Na cobertura do Oriente Médio, tem a vantagem justamente de não tratar os conflitos como narrativas míticas. Também não exala ranço antissemita, como se vê algumas vezes na mídia Ocidental, especialmente na mídia que se diz de esquerda, talvez porque o antissemitismo não faz parte do imaginário das sociedades árabes.  Não há entre os arquétipos do inconsciente coletivo muçulmano a figura do judeu diabólico ou da conspiração mundial judaica dos protocolos dos sábios de Sion, por mais que Ahmedinajad insista nessa tese. Isso é coisa do ocidente cristão.

Viomundo — Você tem um longo trabalho de crítica à mídia. Como avalia a cobertura atualmente em relação a Israel e aos judeus?

Bernardo Kucinski –Tem obviamente todas as deficiências da mídia em relação a outros temas: irregular, sensacionalista, fragmentada, ideologicamente seletiva, falhas hoje agravadas pela crise dos grandes jornais, que levou ao corte drástico da reportagem, fonte insubstituível da apreensão jornalística da realidade. No caso de Israel acrescente-se o componente mítico de que eu falei e ultimamente um vácuo por não acompanharem os últimos grandes acontecimentos internos em Israel, justamente porque se dão fora da esfera do conflito palestino.  No entanto, o tema é mais complexo e há alguns desvios no noticiário que eu considero, em tese, patológicos e necessitariam um estudo mais profundo.

Viomundo — Há teorias que atribuem ao Mossad a manipulação de informações em favor de Israel contra palestinos. Na época das eleições, se ouviu muito isso. O que acha dessas teorias?

Bernardo Kucinski — O Mossad deve ter mais o que fazer do que ficar pegando no pé da mídia. Essa é obviamente uma variante da tese conspiratória dos protocolos dos sábios de Sion. Não vi isso em lugar nenhum e não sei a que eleições você se refere.  Há um serviço chamado Honest Reporting, de critica da mídia possivelmente apoiado pelo governo de Israel, mas ele é transparente, questiona matérias de jornais abertamente, aliás, essa parece ser sua proposta, fazer um debate público sobre a cobertura do conflito, e qualquer um pode pedir o seu boletim ([email protected]). Há também o oposto, o Keshev, uma ONG israelense de crítica da mídia que acusa a mídia de Israel de complacente em relação às políticas de Israel para com os palestinos, mais ou menos na linha das críticas do Chomsky ao New York Times (www.keshev.org.il). Ambos trabalham com análise de discurso.

Viomundo — Frequentemente críticas a Israel são tachadas de antissemitismo. Essa blindagem não é perigosa? Não seria uma forma de impedir o debate, ajudando a acobertar as atrocidades cometidas por Israel contra civis palestinos?

Bernardo Kucinski —Eu não tenho dúvidas de que um determinado tipo de narrativa crítica a Israel cruzou a linha e se tornou antissemita. Isso se dá em dois planos: um, que eu chamo de metafísico, totalmente inconsciente, no qual o atual mito da luta do mal absoluto (Israel) contra o bem (causa palestina) vai se encontrar com o velho mito do judeu que usava sangue de criancinhas para fazer o pão ázimo; o outro, mais visível, se dá no plano lingüístico, e é consciente, deliberado, como nesse incidente de associar a palavra cão à palavra judeu, ou quando você nas suas perguntas usa expressões como “Holocausto dos palestinos”  e “manipulação de informação pelo Mossad”.

Viomundo — Você não receia ser visto como sionista? Por quê?

Bernardo Kucinski — Não é ideologia que está em discussão (nem a minha nem a da Vila Vudu) e sim mentalidades e honestidade intelectual. Mas faço questão de dizer que tive a felicidade de ser formado pelas duas grandes utopias judaicas do século passado: o socialismo e o sionismo, e não renego nenhuma delas, embora ambas tenham sofrido pesadamente as agruras da história.  Nem o sionismo nem o socialismo são aventuras encerradas.

Viomundo — Como parte do movimento sionista, que brigou pela criação do estado de Israel, você nunca teve dúvidas a respeito da legitimidade do pleito, principalmente da maneira como se deu, com a expulsão de famílias palestinas?

Bernardo Kuckinski — Por partes:

1. A legitimidade de um movimento político-social é intrínseca, o que ele pode ser é mais fraco, mais forte, tolerante ou fanático, progressista ou reacionário, etc.

2.  O sionismo não “brigou” pelo Estado de Israel, lutou, com a perda de mais de 20 mil vidas, só do lado judeu, sem contar as vidas perdidas do lado árabe.

3. O fato gerador do exílio palestino foi a invasão de seis exércitos de países árabes que não aceitaram o plano de partilha proposta pela ONU em 1947. Tivesse a partilha sido aceita, haveria hoje dois estados e não haveria a diáspora palestina. Em Israel mesmo vivem hoje 1,5 milhão de árabes (20% da população).

4. A esquerda sionista repudia a atual política expansionista de Israel. Os palestinos reivindicam o direito de retorno, ponto muito mais delicado nas negociações de paz do que qualquer outro.

Viomundo — Em algum momento, você cogitou se a questão poderia ter sido resolvida de forma mais produtiva para a paz na região?

Bernardo Kucinski — Claro que poderia. Mas, infelizmente, as sociedades humanas ainda não amadureceram o suficiente para resolver seus conflitos por métodos produtivos e sensatos e as do Oriente Médio não seriam a exceção à regra.

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